30 setembro 2009

"Notas & Neurónios" ou o poder da escala pentatónica



O que nos faz acreditar que a linguagem musical está "internalizada" e pode ser antecipada por qualquer um de nós.
Bobby McFerrin assegura que, onde quer que ele faça este show, as pessoas produzem os mesmos sons. Conclusão: todos nascemos a saber música. O problema é que só uma minoria é estimulada a desenvolver essa capacidade artística.
Bobby McFerrin  é conhecido pela sua enorme extensão vocal (até quatro oitavas), pela habilidade de usar a voz para criar diversos efeitos e ainda por ser capaz de entoar o canto difónico (produção de intervalos harmónicos e acordes a partir de uma só voz), prática muito comum em certos países asiáticos.

Ver mais de Bobby M. aqui

País


Anda um rato no meu computador.
É um rato que se transforma em jornalista, assessor, comentador.
Às vezes parece-me um gato reflectido no ecran.
Será um vírus, a gripe H1N1, ou a sazonal?
Sinto-me vigiada, insegura, não sei se me andam a escutar, a filmar.
O rato não está esclarecido, salta de tecla em tecla, desenfreado, à procura de fontes criminosas.
Se eu mudar de país, será que ele vai atrás de mim?

29 setembro 2009

Há dias assim...

---*













Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo nos cai
em cima. Depois
ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam.
Não lhes sei o nome. Uma
ou outra parece-se comigo.
Quero eu dizer: com o que fui
quando cheguei a ser
luminosa presença
da graça,
ou da alegria.
Um sorriso abre-se então
num verão antigo.
E dura, dura ainda.

Eugénio de Andrade, Os Lugares do Lume, Fundação Eugénio de Andrade, 2ª ed, 1998
Charles Lloyd - Fish out of water

28 setembro 2009

Esta gente não aprende



O presidente da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP) afirmou, esta segunda-feira, que gostava que o actual ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, continuasse no cargo, no novo governo socialista saído das eleições de ontem. Ao mesmo tempo, Francisco Van Zeller deixou avisos ao PS quanto a acordos à esquerda.


...................

Os que constantemente exigem mundos e (sobretudo) fundos para desenvolver a economia - ao mesmo tempo que estão no centro do descalabro da economia, com as apostas na especulação e nos off shores, cá estão, de novo, a dar conselhos. "Oportunos" e incansáveis.

Pintura Paula Rego

27 setembro 2009

O caminho faz-se a caminhar


Sonho (de silêncio)



Vejo muitos turistas vestindo camisas da Nazaré. Dum grupo deles, à varanda de um grande hotel de luxo, digo: como estão pobres os que deveriam frequentar esses lugares. Estou com uma família inglesa. Vestem fatos de teweed de cores admiráveis. Pergunto: is it hand woven? Estou sentada a uma mesa com os turistas, falo do canto dos pássaros. Digo: sei imitar muito bem o melro. Então surge à janela um pásssaro fulvo, ruivo, que identifico com um falcão mas que na verdade era um pequeno faisão. Chama, parece pedir qualquer coisa. Parece cansado duma viagem. Dou-lhe pedacinhos de pão, mas ele não come. Surge então um gato preto que se atira ao pássaro e o mata. Vejo o gato agarrá-lo pelo pescoço. Vejo o sangue dele. O gato vai comer o pássaro. Num restaurante onde parece que faltou a luz, uma senhora turista manda tirar de cima da mesa o maior número de coisas possível e diz: é preciso deixar espaço para o silêncio.

Ana Hatherly, ANACRUSA 68 sonhos, Cosmorama Edições
Pintura Eric Fischl

Fazendo pirraça pra sobreviver



No novo tempo apesar dos castigos
Estamos crescidos, estamos atentos
Estamos mais vivos pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
Da forma mais bruta, da noite que assusta
Estamos na luta pra sobreviver
Pra que nossa esperança
Seja mais que a vingança
Seja sempre um caminho
Que se deixa de herança
No novo tempo, apesar dos castigos
De toda fadiga, de toda injustiça
Estamos na briga pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
De todos pecados, de todos enganos
Estamos marcados pra sobreviver
No novo tempo, apesar dos castigos
Estamos em cena, estamos nas ruas
Quebrando as algemas pra nos socorrer
No novo tempo, apesar dos perigos
A gente se encontra cantando na praça
Fazendo pirraça pra sobreviver

25 setembro 2009

Vamos lá!


...golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado, feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Alexandre O'Neil, Portugal (fragmento), in Feira Cabisbaixa, 1965

24 setembro 2009

Ah... e tal, queria assistir a uma sessão e calhou entrar.

Lobo Xavier, Pacheco Pereira e José Manuel Fernandes juntos em iniciativa do PSD.
....
José Manuel Fernandes partilhou o jantar-debate com Pacheco Pereira (cabeça-de-lista do PSD por Santarém), António Lobo Xavier, Vasco Cunha, (líder distrital do PSD) e ainda com Isaura Morais, candidata da coligação que confessou no final do jantar a surpresa pela presença na mesa principal do director do Público, que não fez qualquer intervenção, limitando-se a seguir a discussão.
Aqui

Foto: Diane Arbus

23 setembro 2009

Histograma pré-eleitoral

valemos quanto? - quanto valemos.
a quanto se vendem quantos? - uns quantos se vendem a quanto.
um vale quanto? - quanto vale um.
quanto vale cada um? - em média, a média.

[Roubado (a)o lado esquerdo da amizade. Ele sabe que não é furto, mas fruto. Da cumplicidade.]

Entre nós e as palavras há metal fundente

 *

Ruhrpottlady - Light Spot

Não, não me devias ter mentido acerca do mundo – (e eu, que só queria acreditar em tudo o que dizias.)
Devias ter-me ensinado a inclinação perfeita do gume, ter-me treinado no golpe contido e certeiro nas asas das vespas (os brinquedos eram de madeira, seriam perfeitos).
Devias ter insistido comigo no ajuste das receitas: metade mel, metade cicuta. Aprenderia a arder um fósforo na falange, sem gemidos, sem vacilação das pálpebras, sem paixão.
Em vez da lógica de todas as demências, em vez da geografia dos êxitos, em vez da fuga aprazada, ensinaste-me a dormir sobre a consolção da alma, esse interstício insaciavelmente obscuro.
Devias ter-me dito a verdade acerca do choro dos homens e do riso das bestas. Sempre achei incrível como os cães podiam sorrir às ameaças dos donos. Nunca acreditaste que isso era possível. E ensinaste-me que nunca se jura sobre o que não se sabe. Mas juravas pelos anjos e arcanjos das pagelas e santinhos que havia uma bondade natural no coração dos homens.

Não, não me devias ter mentido sobre o mundo. Eu teria aprendido a desconfiar da minha própria condição de humano e não seria incauto viajante ou obstinado pescador de estrelas. Devias ter-me dito a verdade: que ninguém escapa, ninguém escapa à sedução da posse da palavra soberana. Que ninguém avisa da vilania e que ninguém... ninguém tem o coração puro.
Devias ter-me dito: a alma é um intestino que se enche - nuns dias frango gourmet noutros paté e vinho maduro; e o mais é trabalho de fotógrafo em dias de feira. Devias ter-me dito, eu ia perceber tudo. Eu tinha os olhos sempre acesos noite dentro, como se ela trouxesse a verdade insofismável da brancura.

O que me devias ter ensinado – hoje sei – é do silêncio dos livros e do labor das rosas.

E eu apenas venho aprendendo a morrer esse amor.

Título: transcrição do primeiro verso do poema You are welcome to Elsinore, de Mário Cesariny
* Nick Cave & Warren Ellis - The Road, do álbum White Lunar, 2009

21 setembro 2009

assessor (ias)

assessor (ô)
(latim assessor, -oris, ajudante, auxiliar)
adj. s. m.
1. Que ou quem assiste ou assessora.
s. m.
2. Pessoa que tem como função profissional auxiliar um cargo superior nas suas funções.

(Foto Aqui)

Sobre a alternância (na hora das escolhas)


O "efeito de alteração máxima" é um conhecido princípio que rege o processo de discriminação na aprendizagem dos animais. Por exemplo, se ensinarmos um rato a distinguir um quadrado de um rectângulo, e se o premiarmos ao reconhecer o rectângulo, ele aprenderá muito rapidamente a reagir aos quadrados. Mais ainda, se treinarmos o rato com um protótipo de rectângulo de determinadas dimensões, o rato reagirá ainda mais positivamente se lhe for mostrada uma figura ainda mais fina e comprida. Este curioso resultado implica que o que o rato aprende a valorizar, na realidade, não é um rectângulo em particular, mas sim uma norma: neste caso que os rectângulos são melhores do que os quadrados. Quanto maior for a proporção entre os lados curtos e os compridos, isto é, quanto menos aspecto de quadrado tiver, "melhor" rectângulo parecerá ao rato.
É o chamado
peak shift effect

Eduardo Punset,Viagem à Felicidade, Dom Quixote 2007
Fotografia
Diane Arbus


20 setembro 2009

Ton Sur Ton


Na brancura intemporal
as meninas rompem da terra
diáfanas e breves
cantando uma canção sem rosto

O azul inventado dos pássaros
e a nudez morena das árvores
esculpem o tempo

Ton sur ton

Há uma flor que espreita
e acena levemente

Por vezes pode haver um relâmpago
um grito
ou a pequenez de uma pomba na paisagem

Mas sempre ton sur ton
um abraço envolvente
festivo ou suplicante
como a marca do ser
na terra antiquíssima imortal

(Pintura: Lúcia Maia)

19 setembro 2009

O rapaz, o comboio e o tango


Foram conhecidos em Portugal através da Sons em Trânsito e são um fantástico grupo de tango electrónico.
Bajofondo Tango Club é formado por músicos argentinos e uruguaios. O seu elemento mais conhecido, Gustavo Santaollala, já foi premiado com 2 Óscares para Melhor Banda Sonora: em 2005 no filme O Segredo de Brokeback Moutain e em 2006 Babel.
O clip é uma magnífica realização a partir de uma das composições mais conhecidas dos Bajofondo, Pa Bailar, onde se sente a infinita capacidade que o cinema tem para contar uma estória.

18 setembro 2009

Uma flor para Fawziya


Fawziya Abdullah Youssef, uma menina de 12 anos, morreu no Iemen depois de três dias em trabalho de parto. O seu bébé morreu também.
Fawziya Abdullah Youssef sangrou até morrer na sexta-feira, num hospital em Al-Zahra, cerca de 200 quilometros da capital, disse a Organização Iemenita para a Protecção da Infância (Seyaj).
Segundo ONG, Fawziya foi forçada pela família a abandonar a escola e a casar quanto tinha 11 anos. O casamento teria sido forçado pela família para, com o dote obtido, fazer face a extremas dificuldades económicas.
A ONG refere que quase a metade das meninas na zona rural no Iemen têm de casar antes dos 15 anos de idade.
A brutalidade que tudo isto representa exige que, pelo menos, saibamos que este horror existe.
E nos indignemos.

17 setembro 2009

Respostas a Marta (e ganhámos outro selo)

Há (muita) vida em Marta e simpatia e amizade e ... honrou o Marcas com mais um selo: Blog bom para ler.
Aqui vão, cara Marta, as minhas respostas ao inquérito:

1- O livro que estou a ler é "Transa Atlântica",de Mónica Marques;
2-O meu livro preferido é "Amores No Tempo Da Cólera", de Gabriel Garcia Marquez;
3-Geralmente, escolho os livros por recomendação, ou por instinto;
4-Acho que terminei sempre os livros, até para não gostar é preciso ler;
5-Os livros que tenho, agora, na mesa de cabeceira são: "Férias De Agosto",de Cesare Pavese;"Boquitas Pintadas",de Manuel Puig;"O Violencelo De Sarajevo", de Steven Galloway.
6-Camões, Eça, Aquilino,Agustina, Sophia, Derrida, Tolstoi, tantos!
7- Recomendo, neste momento, "Trilogia Milenium"e "As Benevolentes".
8-Não sou capaz de responder, custa-me.

Transa Atlântica


"Transa Atlântica", de Mónica Marques, portuguesa, nascida em 1970, a viver e a trabalhar como jornalista no Brasil, é, seguramente, o livro mais desconcertante que já li.
A cidade, percorrida pela narradora, entra-nos pelas páginas dentro, acutilante, inesperada, brutalmente intrigante.
Impressões, sentimentos, coisas do Brasil, coisas de mulheres, de homens, da natureza humana, são-nos atirados, num arremesso ousadíssimo, completa e politicamente incorrecto.
Fez-me lembrar Almodovar, nos primeiros filmes, quando misturaca rosa vivo com verde alface, quando desnudava a caricatura de nós.
Mónica está completamente impregnada pela cultura brasileira, mas não deixa de ser portuguesa, no espanto pelas coisas, no desencanto.
Ela não o diz, mas é um livro sem esperança, com muita verdade, muita força, humor, mas sem saída, como o filme de Tarantino "Sacanas Sem Lei", de que não gostei, embora compreenda as alusões ao cinema, a sua força.
Mónica também desmonta a escrita, dialoga constantemente connosco, põe a nú os efeitos literários, os truques dos editores.
O livro é para adultos. Não dá para ler ao pôr do sol, nem num jardim romântico. Tem a força de um grafitti, numa parede suburbana.

15 setembro 2009

Do contentamento dos loucos

Hugo Pinto - Surface: other

A moeda

Não há legislação para a música como não há legislação para a doença. A natureza é ilegal e bruta e nós não somos natureza enquanto estamos vivos e ricos, com o corpo esquecido. Mas quando somos velhos somos natureza e quando estamos doentes somos natureza, e quando morremos somos ainda natureza.

E não ter dinheiro é isso: é ser mais natureza, estar mais dependente da falta de legislação que há na música e nos bichos: as coisas escuras amedrontam, tornam-te cobarde, escondes os teus filhos atrás do teu corpo, mas sabes que a bala virá por trás.

Dizem que Lúcifer caiu durante nove dias, mas tal viagem não amedronta ninguém. Não foi uma queda, foi um passeio. Porque nove dias são nove dias, por isso o diabo caiu tão bem, com a roupa direita, engravatado, sem uma dorzinha. Percorre as ruas e parece aos outros o corpo de quem subiu até aqui, e não de quem desceu tanto: nove dias, dizem, foram os dias que demorou Lúcifer a cair.

A maldade não se distingue; como as meninas gémeas que vão para o colégio de mãos dadas, com a vestimenta azul, igual. A maldade não tem uma marca na testa como as vacas que têm doenças e foram marcadas na testa pelo dono.
- Esta é para ser morta, não é para ser vendida.
A doença tem marcas, a pobreza tem marcas, mas a maldade não tem marcas. Os feios têm marcas.

Um vagabundo pedia esmola num semáforo. Passou de um carro para outro, depois para outro. Um deles abriu o vidro da sua porta só uns centímetros e deixou cair uma moeda valiosa ao chão, depois arrancou porque o semáforo estava verde. O pedinte baixou-se para apanhar a moeda e veio um carro que só viu o semáforo verde e atropelou-o. Apanhou-o em cheio, partiu-lhe os ossos da anca.
Já numa maca, em cima do passeio, o dedo esticado do vagabundo não era compreendido por ninguém porque ele não conseguia falar.
- Alguém conhece este homem? Sabem se já não falava antes?
Ele apontava para a moeda no meio da estrada, mas ninguém percebia. E foi levado.

( A química não estuda aquilo que muda na matéria quando a matéria é o nosso corpo e alguém o abraça no momento exacto.)

Três meses depois, quando saiu do hospital, ele coxeava e não falava. Ninguém sabe se foi do acidente ou se antes já ele era mudo e com olhos de louco, porque ninguém o conhecia. (Ninguém podia confirmar se ele já era louco antes. Mas agora era louco.) Nesse mesmo dia ele foi ao sítio do acidente e no meio da estrada perigosa ainda estava a moeda. Meteu-a no bolso. Um carro aproximou-se e ele correu para o passeio. Ficou em segurança e acariciou a moeda com os dedos.
Do carro, que novamente quase o atropelara, uma mulher chamou-lhe maluco. Mas ele, o louco, estava contente.

Gonçalo M.Tavares, in Água, Cão, Cavalo, Cabeça, Ed. Caminho, 2006

14 setembro 2009

Middle sex


… Enquanto Miss Grotowski escreve as suas equações no quadro, todos os colegas à minha voltam começam a transformar-se. As coxas de Jane Blunt, por exemplo, todas as semanas parecem crescer mais um bocadinho. A sua camisola vai inflando à frente. Um belo dia, Berveley Maas, que se senta mesmo ao meu lado, põe o dedo no ar e eu vejo uma mancha escura pela sua manga acima: um tufo de pelos castanho- claros. (…..)
A voz de Peter Quail é agora duas oitavas mais baixa do que o mês passado, sem que ele dê por isso. E porquê? Está a voar demasiado depressa. Os rapazes começam a ganhar uma penugem de pêssego por cima dos lábios. As testas e os narizes começam-lhes a rebentar. Mais espectacularmente ainda, as raparigas começam a tornar-se mulheres. (….)
Só Calliope, na segunda fila, permanece imutável, como que paralisada na sua secretária, de modo que é ela a única a reconhecer a verdadeira amplitude das metamorfoses em curso à sua volta. Enquanto resolve os problemas, está ciente da carteira de Tricia Lamb no chão na mesa ao lado, e do tampão que lobrigou lá nessa manhã – e como é que isso se usa ao certo?- e a quem perguntar? Embora ainda seja bonita, Calliope não tarda a tornar-se a rapariga mais baixa da turma. Deixa cair a borracha, mas já ninguém lha vem apanhar. Na peça de Natal da escola, já não é escolhida para fazer de Maria, como nos últimos anos, mas sim de elfo…Mas ainda há esperança, não haverá? ( ....) os alunos voam vertiginosamente através do tempo, de tal modo que um dia, ao levantar os olhos do seu papel manchado de tinta, Callie vê que é Primavera, as flores a desabrochar, forsítias em flor, ulmeiros verdejantes; no recreio, meninos e meninas de mãos dadas, beijando-se por vezes atrás das árvores, e Calliope sente-se enganada, traída. “Então e eu?”, diz ela à natureza. Estou à espera. Ainda aqui estou”.

Jeffrey Eugenides, Middlesex, D. Quixote, 2oo4
Fotografia Diana Arbus
.............................................................
O fascinante Middlesex de Jeffrey Eugenides (acima citado) começa assim: nasci duas vezes: primeiro como menina bébé, num dia invulgarmente limpo na cidade de Detroit, em Janeiro de 1960. Depois outra vez, como rapaz adolescente, numa sala de urgências perto de Petoskey, Michigan, em Agosto de 1974. O narrador e figura central do livro é Calliope / Cal , um intersexo.
Intersexo é alguém que, ao nascer, tem uma ambiguidade sexual : há uma discrepância entre o sexo cromossómico e o aspecto dos genitais. A "definição" social do bébé é feita, naturalmente, a partir da aparência dos genitais (nome, educação, roupa, penteado, brinquedos, etc.).
No caso de Calliope / Cal, o sexo cromossómico era 46XY, masculino, mas os genitais tinham uma aparência feminina. Educada como menina, foi na adolescência que o conflito se manifestou.
O nome "Caster Semenya" (atleta da África do Sul recentemente "desclassificada" numa prova feminina de velocidade) introduzido no motor de busca Google remete-nos para 2.710.000 entradas.
A forma absolutamente preversa e sem princípios como os mídia abriram a vida de Caster e a vasculharam, expondo os detalhes mais íntimos à vista de todos sem o mínimo pudor, terá consequências irreparáveis na sua vida e dos que lhe são próximos.
A enorme complexidade desta questão decorre da existência de uma identidade de género oposta à configuração dos genitais e coloca problemas dificílimos, como se compreende, relacionados com equilíbrios em múltiplos planos. Mas não é, seguramente, matéria para jornalismo de escândalos.

13 setembro 2009

A distância entre as coisas



Não tece a tela
Não fia o fio
Não espera
Por nenhum Ulisses

Às portas do sangue
O herói adormecido
Agora está deitado
Ao Polifemo abraçado
Seu próprio satélite forçado

Há um intervalo nímio
Nas coisas
Que entre si independem.

Ana Hatherly, A Neo Penélope, &etc 2007

Fotografia de Paulo

Debates


O vazio que fica disto tudo. Será que alguém poderá mudar o sentido de voto depois desta política espectáculo?
O nosso pequeno mundo fica ainda mais restrito.
As divergências, as gaffes, o inefável Alberto João, o Francisco, o Jerónimo, o Paulo, o José, a Manuela.
E o povo, pá?
As casas deles, os filmes em que choram, ou não, a retórica, ou não, os momentos, as feiras, os programas, a asfixia democrática, ou não, os jornais, os comentadores, a liberdade, o défice, a crise, as piadas, os cenários, as sondagens, os cenários, as sondagens, pá, a ideologia, pá, a esquerda, pá, o país, pá , direita, pá,quem ganhou, é provável,jamais, pá, Uff!
E a democracia? O país, pá,o desemprego, pá, as campanhas, a violência, a rua, o despesismo, pá, a rentrée, a gripe, as vacinas, o spread, e tudo, pá?
E tudo, pá?

12 setembro 2009

Um desafio "major" para Obama

http://www.nytimes.com/interactive/2009/09/10/us/politics/20090910-obama-health.html#

Recomendo a leitura e audição deste notável documento que todos devem conhecer.
O discurso ao Congresso Americano do Presidente Obama sobre a Reforma do Sistema de Saúde dos Estados Unidos (a consulta e compreensão são fáceis).
Os norte americanos, sobretudo os cerca de 30 milhões de cidadãos sem qualquer sistema de protecção na saúde, sentem todos os dias o drama em que se tornou a sua vida com a entrega dos cuidados da saúde do país em exclusivo às grandes seguradoras .
Apaixonante e actual, lá como cá.


11 setembro 2009

Bem vindo, Jorge de Sena


...Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça. Apenas como elas.
Mas brilha. Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.

We are the Web

Via: dennishollingsworth.us, blogue onde o autor mantém, desde 2003, não só uma espécie de sketchbook das suas obras, mas também reflexões sobre o quotidiano - aspectos do seu percurso de pintor, as galerias, artigos sobre as várias manifestações tecnológicas e artísticas no mundo contemporâneo .
Comecem por descobrir a originalíssima Timeline bio do autor, ou a entrada About this blog. Conheci-o através de uma amiga ligada às artes plásticas (obrigada Lurdes!) que mo aconselhou vivamente. Está feita , também, a minha partilha “em rede”. Espero que vos interesse.

Quanto ao vídeo ali em cima... pois... cada vez mais somos “feitos” da linguagem que nos diz: We are the web, afirma Dennis H.. Estou em crer que somos mais qualquer coisa, sei lá... mas como dizê-lo?

10 setembro 2009

Apetites na revolução

Daqui e dali, isto é, de todas as zonas revolucionárias na história salta o ódio feroz das classes inferiores contra as superiores, porque estas tinham reservado em coutadas a caça. Isto dá-nos a medida do apetite enorme que eles, os de baixo, sentiam por caçar.
Uma das causas da Revolução Francesa foi a irritação dos camponeses porque não se lhes permitia caçar, e por isso um dos primeiros privilégios que os nobres se viram obrigados a abandonar foi este.
Em todas as revoluções, a primeira coisa que fez sempre "o povo" foi saltar as cercas das coutadas e demoli-las, e em nome da justiça social perseguir a lebre e a perdiz.

José Ortega y Gasset, Sobre a Caça e os Touros, Ed. Cotovia 2009

09 setembro 2009

Anoitece






Colhe a luz, as sombras
e os cheiros do dia.
(anoitece)

Madeleine Peyroux - Weary Blues
Fografia - C.

Ganhar vícios!

Olha um prémio!


Estamos muito gratos ao Há vida em Marta, ao Bicho Carpinteiro e ao Catharsis pela atribuição deste selo distintivo (com a devida vénia, cumprimentamos três dos blogues que mais gostamos de visitar e onde lemos/aprendemos imensas coisas interessantes).

Segundo as indicações, após a atribuição temos de assumir três compromissos para o futuro (Paulo, Clara, não percam a vossa vez, ouviram?)
(ai, isto hoje está a dar uma trabalheira!!!) Da minha parte, os meus compromissos são:

- Tentar ser mais disciplinada.
- Cuidar melhor de mim, da minha saúde física (no seguimento do compromisso anterior, não me desculpar com a falta de tempo e dosear o trabalho, estabelecer limites).
- Estar mais atenta aos amigos e à família - que tanto bem me fazem.

Para concluir, devo agora apresentar também uma lista de dez blogues viciantes a quem devo passar o prémio. Dos blogues que visito assiduamente, e pelas mais variadas razões, os que nomeio são:

Vá Andando - pelos belíssimos poemas que já aqui encontrei. Deles me chega uma voz singular, muito musical, de que, seguramente, ainda ouviremos falar.
Há Vida Em Marta - pela variedade de temas/textos e pela energia realmente contagiante.
Bicho Carpinteiro - pela qualidade e originalidade dos temas que partilha. Pela elegância nas intervenções.
Catharsis - pelo tom humanista, delicado e reflexivo com que apresenta as ideias/textos. Também pelas escolhas musicais.
Vida Abstracta - pela genuinidade na procura do sentido das coisas e pela forma natural como as apresenta. Vou continuar atenta.
Da Janela - imperdível o trabalho destes dois fotógrafos. Aconselho vivamente.
A Natureza do Mal - pela acutilância e lucidez dos textos, que são magnificamente ilustrados.
Paços d'Água - uma escrita rente às vozes mais profundas do ser.
A Matriz dos Sonhos – Conheci o blogue através do "Vá Andando". Acho-o de uma imensa beleza gráfica, de muito bom gosto. A acrescentar, visitem a página web da autora.
Menina Idalina - pela mordacidade da escrita e o laborioso trabalho das imagens. O que eu já me ri com aquelas coisas sérias!

Com renovados agradecimentos aos três blogues acima referidos.
(Austeriana, já viajei pelo Abencerragem. Estou fã. Obrigada pela dica)

08 setembro 2009

Cartões Vermelhos

Fomos desafiados, pelo Bicho Carpinteiro, a atribuir cartão vermelho a dez atitudes, pessoas ou factos que nos incomodassem. Ora, como vivem nesta casa vários inquilinos, se calhar temos de fasear a arbitragem. Começo eu? Então, aí vai cartão vermelho para:

1. Toda e qualquer atitude de prepotência ou despotismo. Fico logo com brotoeja.
2. O exercício obscuro e moroso da justiça em Portugal (e no mundo, em geral). Uma mão lava sempre a outra e etc e tal... e não se encontra nunca os verdadeiros responsáveis.
3. As famílias que não cuidam dos seus idosos. Sei de casos em que as pessoas são literalmente abandonadas nos hospitais, após o internamento, por exemplo.
4. As chamadas de call centers para oferecer, questionar sobre, propagandear produtos e serviços. Já me aconteceu ter chamadas dessas de madrugada...
5. Os homens (nunca me apercebi disto nas mulheres... mas eu sou distraída) que escarram para o chão. E aquela tossezinha ruidosa no fim... a arranhar a traqueia. Nhaaque!
6. Os encontrões (reais e simbólicos) infligidos por todo o xico-esperto que "tem de chegar primeiro" a todo o lado. Basta ver a condução nas auto-estradas ou as filas de espera onde não há senhas de prioridade.
7. As pessoas que passam a vida a dizer: “olha que não fui eu quem disse, eu até concordo contigo”, e blá, blá, blá. E ainda fazem menção de nos tocar no ombro a sublinhar a verdade da afirmação. Que arrepio!
8. A nossa proverbial queda lusitana para acreditar num D. Sebastião que nos há-de valer, quer seja ele o pai, a mãe, o estado ou a divina providência.
9. O lixo nas ruas, a céu aberto.
10. A arrogância, acompanhada, não raramente, por um excessivo culto de uma imagem de juventude a qualquer preço.

E, seguindo as regras do jogo, aqui fica o desafio para cinco outros blogues:

Vá andando
Há vida em Marta
Vida Abstracta
Paços d'Água
Da janela

Fim do primeiro jogo amigável da Liga Bloguista!

Outro exemplo de "bom governo"

Os administradores executivos do Metro do Porto ganham mais do dobro do que os seus homólogos do Metro de Lisboa: o presidente executivo do Metro do Porto, Ricardo Fonseca, tem um salário-base mensal de 10 723 euros, mais do dobro que os 4752 euros recebidos por Joaquim Reis, do Metro de Lisboa, e os vogais executivos ganham 9748 euros, contra 4204 euros no metropolitano da capital.
Em 2008, ambas as empresas apresentaram prejuízos elevados: o Metro do Porto contabilizou um resultado líquido negativo de 148,6 milhões de euros e o seu homólogo de Lisboa registou um prejuízo de 126,7 milhões de euros.
O Metro do Porto gastou, em 2008, com as remunerações dos seus 12 administradores executivos e não-executivos, segundo as informações da página da internet da empresa, um total de 545 186 euros. Só a comissão executiva, constituída por três membros, absorveu 66 por cento daquele total, correspondente a 362 628 euros.
Até ao final de Março de 2008, Valentim Loureiro, Rui Rio e Mário Almeida, presidentes das autarquias de Gondomar, Porto e Vila do Conde, e Narciso Miranda, ex-autarca de Matosinhos, eram administradores não-executivos. Rui Rio e Mário Almeida mantêm o cargo e Marco António Costa, autarca de Vila Nova de Gaia, substituiu então Narciso Miranda. Em 2008, segundo o site da empresa na internet, foram pagas remunerações-base de 3708 euros a Valentim Loureiro,21 918 euros a Rui Rio, 16 834 euros a Marco António Costa,14 310 euros a Mário Almeida e 9750 euros a Narciso Miranda.
No final de Março de 2008, a comissão executiva de Manuel Oliveira Marques foi substituída pela equipa de Ricardo Fonseca. Ontem, Ricardo Fonseca confirmou ao CM que o seu vencimento-base "é basicamente o mesmo" daquele que foi atribuído a Oliveira Marques, que está fixado no estatuto remuneratório, mas frisou que abdicou do cartão de crédito.
Face às diferenças salariais entre as duas empresas, Ricardo Fonseca afirmou: "São as remunerações fixadas no Metro do Porto quando para lá fui". E comentou ainda que "o salário é também em função da dificuldade de gestão [nas empresas]".
Fonte: Aqui
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Prometo que só excepcionalmente voltarei a temas ligados a bons exemplos de bom governo por parte da gente que nos tem "governado".
No mesmo dia em que se conhecem os dados da OCDE sobre o Abandono Escolar, que regista Portugal no último lugar entre os 30 países da Organização - depois da Turquia e do México -, é útil saber que no pagamento a "gestores" somos, seguramente, uma vanguarda destacada.

07 setembro 2009

"O melhor exemplo de um bom governo"















M. Ferreira Leite usa carro do Estado em campanha eleitoral na Madeira (Aqui )

Viajando pelas mulheres

....Por isso, ao longo da região (Beira Litoral), as mulheres impõem saborosas diferenças. Não evidenciam um tipo tão definido como as de outras terras mas, apesar de viverem numa região tão desfigurada, entregue à pior construção civil e à confusão urbanística, percebem-se sensuais por todo o lado e a corrupção do ambiente parece fortalecer-lhes a arte. Guardo as melhores recordações das mulheres da Bairrada em cima das suas bicicletas pela Anadia, Cantanhede, Mogofores, OLiveira do Bairro, Mamarrosa. Relembro os fornos de cal e as fábricas de cerâmica à beira dessas estradas percorridas por mulheres pedalando lenta e sensualmente, cruzando-se, na Primavera, com os peregrinos pedestres que demandavam Fátima. E em Vagos e na Pateira de Fermentelos, mulheres tão fortes como o húmus que exala da terra úbere que pisam, dirigindo carros de bois carregados de moliço e estrume para as vessadas. E outras a mungir as vacas com os rostos afogueados. E lembro-me de ver as mulheres cansadas da xávega da Tocha e em Vagos, depois de escolherem o peixe, sentadas,na praia à tardinha, enquanto as nebelinas cada vez mais espessas iam envolvendo os bois e as pessoas, juntando o mar e os verdes prados. E as raparigas na Festa das Colheitas, em Arouca, a comparar os tamanhos dos nabos e das batatas e dos calondros? E as da Murtosa, de perna maciça e curtida pelo sol e pela salmoura? Para aumentar as diferenças, juntar-lhes-ia tricanas e lavadeiras de Ovar e de Coimbra e as jovens senhoras coimbrãs a olhar para as ruas por detrás das sedutoras janelas das suas vivendas. Todas estas mulheres são herdeiras dos mais refinados segredos das mais refinadas goluseimas conventuais e habilidosas no desfiar dos dulcíssimos ovos moles. Desde as castanhas doces de Arouca aos pastéis de Tentúgal. Reconheço, no entanto, a dificuldade em definir a mulher beirã do Atlântico. Com manifesta coragem, resolvi perguntar a algumas delas como se achavam a si próprias. A resposta vem de Leiria - da Laura, da Paula e da Isabel, e resulta da demorada reflexão com investigação sob competência psicológica e tudo. Como são as mulheres da Beira Litoral? Reproduzo ipsis verbis a sua resposta: "Muito sensuais. Bastante comunicativas, metediças na vida alheia. Faladoras: chegam a ser agressivas na fala. São espalha-brasas e abertas. Gostam de ostentar a riqueza dos atributos físicos e dos materiais. São muito invejosas das vizinhas. São declaradamente matriarcais. Mas paradoxalmente, e segundo pensamos, são submissas, com medo de arranjar um amante e têm medo que o homem lhes bata se gastam muito dinheiro. São limpas e asseadas elas, principalmente nas suas casas. Descuidam muito os filhos embora lhes comprem coisas muito caras, mas para se afirmarem pessoalmente. De resto são supersticiosas, tradicionalistas e religiosas. Lembramos Fátima, a Santa da Ladeira, etc. Quer dizer, são visionárias".
Só lamento que as estradas sejam tão velozes nesta província. Sugerem-se uns dias parados na Curia ou no Luso e ver o deslizar das lentas bicicletas ao entardecer. Regressam a casa deixando um rasto de luxuriosa santidade. Cresce então a lua insubmissa sobre os viçosos vales do litoral."

Manuel Hermínio Monteiro, Revista K,nº19, Abril 1992
Fotografia Rodrigo Budag

Um belíssmo texto carregado de luz, cheiros e poesia, numa viagem com um intenso e original roteiro.

06 setembro 2009

03 setembro 2009

Coisas poucas





Quando analiso a conquistada fama

Quando analiso
a conquistada fama dos heróis
e as vitórias dos grandes generais,
não sinto inveja desses generais
nem do presidente na presidência
nem do rico na sua vistosa mansão;
mas quando eu ouço falar
do entendimento fraterno entre dois amantes,
de como tudo se passou com eles,
de como juntos passaram a vida
através do perigo, do ódio, sem mudança
por longo e longo tempo atravessando
a juventude e a meia-idade e a velhice
sem titubeios, de como leais
e afeiçoados se mantiveram
— aí então é que eu me ponho pensativo
e saio de perto à pressa
com a mais amarga inveja.

Walt Whitman, Folhas de Erva (Edição bilingue, 2 vols.), Tradução de Maria de Lourdes Guimarães, Relógio D'Água, Lisboa, 2002
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Karunesh - Call of the Tribes
Foto de Lourdes Castro, Sombras

02 setembro 2009

como que uma cadeira sentada

A música vinha duma mansidão de consciência
era como que uma cadeira sentada sem
um não falar de coisa alguma com a palavra por baixo
nada faria prever que o vento fosse de azul para cima
e que a pose uma nostalgia de movimento deambulante
era-se como se tudo por cima duma vontade de fazer uma asa
nós não movimentamos o espaço mas a vida erege a cifra
constrói por dentro um vocábulo sem se saber
como o que será
era um sinal que vinha duma atmosfera simplificante
silêncio como um pássaro caído a falar do comprimento.

(António Gancho )

01 setembro 2009