31 janeiro 2010

31 de Janeiro


A 31 de Janeiro de 1891, decorre na cidade do Porto um levantamento militar contra a aceitação do Rei de portugal à imposição da Coroa Inglesa contida no Ultimatum de 1890 e que previa a saída de tropas portuguesas do território entre Angola e Moçambique que ficou, assim, sob o controle dos ingleses.
A revolta do 31 de Janeiro, esmagada no mesmo dia, com a prisão dos seus autores, foi a precursora da implantação da República em 1910.
Em 31 de Janeiro de 1969, nas comemorações da revolta, Mário Sacramento profere um discurso no Teatro Aveirense de que aqui reproduzimos alguns excertos.
É interessante notar que, apesar das limitações da censura que obrigavam a um texto fortemente metafórico, há uma análise do acontecimento histórico que é extremamente crítica para os que apelam e propõem a mudança das coisas na sua superfície, sem que haja transformações estruturais que levem a reais mudanças no País.
O que foi dito há 40 anos, tem hoje, com as adaptações necessárias, uma indiscutível actualidade.

Em 1507, Afonso de Albuquerque — o terrível fundador do Império Português do Oriente — enviou ao sultão de Ormuz um ultimato impondo-lhe a submissão ao rei de Portugal e dos Algarves. Em 1890, sua majestade britânica — rainha dos mares há muito navegados, mandou ao último rei de Portugal e dos Algarves, senhor já da África e do mais que sabeis, um ultimato semelhante, em que exigia a desguarnição do território interposto entre Angola e Moçambique. (Como haveis notado, chamei a D. Carlos o último rei português. D. Manuel foi, de facto, um "post scriptum" da monarquia apenas, pois a data que hoje comemoramos é a da implantação virtual da República entre nós - a sua data-chave).
Entre aqueles dois marcos - o de 1507 e o de 1891 - medeia uma viagem histórica, que fez de um país pioneiro de progresso a lanterna vermelha de todas as nações europeias.(...)
Em 1507, o porto de Ormuz ficara cor-de-rosa também, mas do sangue que correu, pois Albuquerque não aguardou a rendição dos atacados e abriu fogo de bombardas, mandando às almadias que lançassem os que pelas águas do naufrágio bracejavam. Em 1891, a cor de rosa que enfeitava as lapelas dos cortesãos parasitários do trono retingiu-se na cor rubra da primeira bandeira da República. O navio de guerra que aguardara em Vigo o embaixador inglês, um ano antes, para o repatriar no Caso de o ultimato não ser aceite, não precisou sequer de recolher o passageiro, pois o rei de Portugal, súbdito inglês — como lhe chamou Guerra Junqueiro — apressara-se a ceder, sem regateio, o que cobiçara não se sabia bem para quê, já que se mostrava inepto para prospectar, propulsionar e desenvolver o que há muito possuía.
É neste para quê que se joga toda a nossa História, do século XV até hoje. E adquirir a consciência disso é conhecer (de fonte viva) o passado e programar (de fronte lúcida) o futuro. Habituados a viver de recursos estranhos ao nosso solo europeu e à nossa iniciativa doméstica, saqueámos e mercadejámos a pimenta, o gengibre, o cravo, o sândalo, o pau-brasil, o benjoím, o azougue, a seda, o ouro, o aljôfar, as pedrarias, os chamalotes, o açafrão, a cera, o cardamomo, os brocados, o marfim, a prata, o cobre, os escravos, o café, a emigração e o petróleo. Mas não soubemos investir na metrópole toda essa riqueza.(...)
O 31 de Janeiro de 1891 foi, assim, o estrebuchar de um povo que supôs bastar-lhe a mudança de patrão — o rei, no caso — para resolver os seus dramáticos problemas. Não há dúvida que o patrão se tornara um mero feitor de interesses absentistas, pois Os verdadeiros donos do País eram os proprietários ingleses do vinho do Porto, por exemplo, ou as companhias estrangeiras que exploravam os nossos recursos metropolitanos e ultramarinos. Merecia que o escorraçassem, e a quantos partilhavam tais despojos! Mas mudar de feitor não é transformar as estruturas que administre por conta alheia. Distinguir o falso dono do verdadeiro proprietário — seja ele inglês, americano ou alemão — é o passo fundamental que desde sempre se nos impôs dar para que a Pátria seja verdadeiramente nossa e, como tal, soberana, independente e livre.

Mário Sacramento, Teatro Aveirense, 31 de Janeiro de 1969
Quadro: Proclamação da República na varanda da Câmara Municipal do Porto 31 Janeiro.

30 janeiro 2010

Janelas para lugar nenhum (fim)


...Talvez a mulher não se lembre, mas em vindas anteriores, os olhos do homem eram pássaros coloridos, esvoaçando novidades, descobertas que fazia e de que falava sem cessar: a viagem bordejando a margem do rio, os petiscos comidos debaixo da latada, o trabalho enfim retomado para clientes que começavam a aparecer e dos filhos, finalmente, reconciliados. De tudo isto falava aquele homem agora esfíngico.
No verão passado, começou com frio. Veja lá, nós a querermos a casa fresca, a procurarmos a sombra e ele no quarto com dois aquecedores ligados. A princípio não liguei, depois comecei a estranhar, achei que estaria doente, levei-o ao centro de saúde. Não encontraram nada e ele fechado no quarto. Olhe que nem para fumar saía. Deixou quase por completo, sempre deitado, embrulhado num cobertor, “tenho frio, mulher, tenho frio”, era isto sempre. De repente, foi o comer. Começou a comer de dia e de noite como se fosse sempre de dia. Jantava às 7h, que nós somos de comer cedo, mesmo no verão; à meia-noite tomava o pequeno-almoço, o café e a carcaça, vá; às 3 ou 4 da manhã o caldo, o conduto e alguma fruta; às 8 da manhã era como se jantasse e por aí fora. Sem dormir como nós, isso é que me assustou. Deixou de dormir de todo, quer dizer, dormia uns bocados, mas começou a baralhar as horas todas.Já se esqueceu, a mulher, de tudo o que viveram depois da primeira operação. De como teve de o ajudar a fazer a paz com o corpo mutilado.
Foi a primeira vez que falou do inesquecível olhar que sentia quando chegava perto dele. Levou tempo, mas a vida entrou outra vez nos seus dias quando ele, sereno, lho trouxe de novo.
Um dia, pouco antes da festa da aldeia, o padre chamou-me. O pretexto era pedir para ele fazer um estrado de madeira. Fomos os dois, já se vê, eu quis mesmo porque era uma oportunidade de sermos aceites. Foi um desastre, uma vergonha. Comportou-se como uma criança: à frente do padre, enquanto falávamos sujou-se todo. Imagine, pelas pernas abaixo… o padre a fazer que não via nada, eu só pensava em desaparecer e terminar aquele momento gelado de qualquer forma.
Pensa que ele deu por isso? Qual nada, o mesmo ar apalermado e indiferente, trouxe-o pela mão e acabei a dar-lhe um banho. Depois meti-o na cama, fechei as portadas e chorei até de manhã
.
Falámos um dia do significado que o encontro com este homem tivera na vida dela. Dizia viver agora no meio do azul forte, depois de ter vivido a negrura da adolescência e no vazio branco do namoro com o irmão dele. Sentiu, mais tarde, ser, afinal, este cruzar de mãos e pele que procurava quando queria saltar para fora de tudo o que a tolhia e odiava: a aldeia fechada a mãe conformada e o pai brutal e alcoolizado.
Só tive um tempo feliz antes deste. Foi azul, mesmo azul, o último verão com a Inês.
A Inês foi a única pessoa, antes dele, que gostou de mim por eu ser quem era. Aprendemos juntas o riso doce da fruta no verão, corríamos pelo outeiro e nadávamos no rio até ao fim do dia, sem ninguém saber onde estávamos. Sonhávamos futuros à sombra da velha figueira perto do fundão. Quando ela teve de partir, foi uma tristeza tão escura que chegámos a falar em ir até lá e deixarmo-nos ir ao fundo juntas. Faltou-nos depois a coragem.
A sua voz carrega agora um cansaço amargo, que torna ásperas as palavras e inunda de desilusão o olhar que continua preso na janela suja.
Vamos voltar. Hoje faço-lhe um almoço especial, talvez tomemos um vinho e ele queira fumar um cigarro na porta da oficina. Os comprimidos não lhe têm melhorado a memória, continua a perguntar-me quem eu sou a cada hora que passa, mas trouxeram-lhe de novo a vontade do cigarro, o que é bom.
Está a chegar o tempo da limpeza das árvores. Vamos fazê-la os dois, depois quando nascer um dia bem azul, vou levá-lo pelo outeiro, mostro-lhe a figueira e, juntos, ficamos por lá.
Foto: C.

27 janeiro 2010

Janelas para lugar nenhum



A vida pode ser muito perra, digo-lhe eu. E digo isto agora, mesmo sabendo que no próximo mês é o aniversário da primeira operação. Fixa o olhar por cima do meu ombro na janela suja com o vidro estalado.
A mulher que assim fala, carrega um olhar baço e triste nos ombros frágeis. Conta do homem que traz pela mão como se ele ali não estivesse, como se a sua presença fosse o espesso vazio que lhe enche o peito.
Acordou de madrugada, noite ainda, vestiu-lhe o fato gasto, escovou a caspa dos ombros do casaco e sentou-o à mesa, na cozinha húmida, em frente a uma caneca de cevada quente.
Antes viu-o, como sempre nos últimos meses, deitado na cama a seu lado, olhos abertos, fixos no tecto de madeira. Parece-lhe desperto, mas duvida. Imóvel apenas. Não sabe quando dorme.
Lembro-me sempre dessa operação porque foi no começo do ano em que ele fez os cinquenta e dois, estávamos juntos há cinco. Pensávamos ter um filho nesse ano.



O toque do telefone não lhe perturba a fala, e nem o facto de me ver desligá-lo, sem atender, a leva a inflectir o tom.
Demoram sempre mais de duas horas para percorrer os trinta quilómetros que separam a casa onde moram desta sala, da secretária que agora nos liga e da janela suja que continua a fixar enquanto fala.

Diz-se perdida na vida que tem agora, na casa e na aldeia onde vive e, sobretudo, dos sonhos que tiveram no princípio.
A lonjura foi uma necessidade para construir um amor proibido e reprovado. Por isso tinham vindo para a aldeia. O mesmo lugar de onde ela tinha saído para casar um ano antes. Arranjaram a velha casa com as próprias mãos, pois ninguém lhes dera mais do que olhares curiosos.
Conta que quem agora observar a casa de fora, com a oficina de carpintaria anexa, de porta escancarada, chão forrado de aparas e serradura, pode sentir ainda o respirar dos sonhos que a habitaram.

Era um artista, sabe, um marceneiro de primeira, lá no norte tinha encomendas de gente a mais de 100 quilómetros, do Porto e tudo, um homem bom em tudo o que fazia, mas do que eu gostava mais era do olhar que me trazia quando eu entrava na oficina e ele, inclinado na bancada, se virava para mim. Era um brilho de estrela e depois, o cigarro ao canto da boca dava-lhe um tal ar… não resisti.


A carpintaria está agora ocupada com restos de móveis nunca acabados, serve de abrigo a dois velhos cães e tem uma tristeza negra a escorrer das paredes.
A mãe da mulher olhou-a por trás da sua janela, manhã cedo, quando ela saiu com o homem. Moram casa com casa e mal se falam. Nem a doença dele fez recuar o marido na decisão de afastar a filha. Vê-os a caminharem para a paragem da carreira e nota como parecem dois bêbados em fim de festa.

Ao menos a minha mãe pensei que entendesse e me ajudasse. Bem sei que eu voltava à aldeia acompanhada dum homem que era o irmão mais velho daquele com quem tinha saído para casar. Para mais, o falatório tinha vindo antes de nós, este era casado, tinha deixado a mulher e os filhos para viver com a noiva do irmão. E o irmão era como um filho para ele... Mas a gente não manda no coração, não é?


Na casa da mãe, o silêncio de chumbo amplia a solidão que ali habita. A velha mulher, quando os perde de vista na curva, senta-se, mergulha o pão seco no café e come devagar as sopas. A filha toda a vida fora diferente das outras, sempre de se isolar, muita leitura, muito passeio sozinha, nunca de se preocupar com empregos, com dinheiro, nada. Ajudava, contrariada, no campo e pouco mais. Apenas lhe conheceu uma amiga, a Inês, vivia com os avós, os pais estão emigrados. Tinha um defeito numa perna, coxeava, houve um tempo que não se largavam. Estará com os pais na Suiça.
Foi uma surpresa quando um dia a filha apareceu com um namorado. Assim, sem aviso. E para mais, com a decisão de ir para a terra dele e casar. Deu cabo do pai, já se sabe. E do resto, claro.


A doença quase nos deitou abaixo. Valeu-nos o riso dele, a força que punha quando me falava do que sonhava, parece que os olhos mudavam de cor, ficavam mais azuis. São bonitos aqueles olhos, mesmo agora que não dizem nada.
Quatro vezes operado. Depois da primeira, nunca acreditei que recuperasse. Ele, sim, tinha força e ficava mais forte ainda quando vinha aqui. Consigo sentia-se bem, dizia: "este olha para mim quando fala e deixa-me fumar." Confiava sempre no que lhe falava da doença, confiava muito. Agora já não sei, este golpe foi tão inesperado, fiquei à deriva.
Não se estranha o discurso feito no passado, referido a alguém que está vivo e, mais ainda, presente. A nossa estranheza não desponta porque esta presença é uma dolorosa visão dum ausente.


(continua)

26 janeiro 2010

Pandemias, medos e enganos

Quadro: String of Lies, Tad Lauritzen Wright

Não era necessário estar munido de grande informação (científica ou outra) para se ter sido mais cauteloso. Bastava bom senso, acrescido da dignidade ética de governar sem ser pelo ritmo da abertura dos telejornais.
O caso da chamada Pandemia de Gripe A/H1N1, agora em vias de esclarecimento, mostra à evidência duas coisas: a absoluta irresponsabilidade com que certa gente gasta o dinheiro de todos e a capacidade manipuladora que a comunicação social pode ter na sociedade actual, podendo ser (consciente ou inconscientemente) colocada ao serviço dos interesses mais obscuros.
Há neste processo objectivas cumplicidades: os governantes que precisavam ter visibilidade em período eleitoral - houve conferências de imprensa diárias no Ministério da Saúde para dizer apenas que nesse dia nao havia nada para dizer -, as cadeias noticiosas que necessitam vender notícias (mesmo que sejam não-notícias) e os pequenos e grandes beneficiários de toda a trama: desde os vendedores das máscaras, luvas, gel de limpeza e outros gadgets que hoje jazem, comprados e pagos, em arrecadações, até às multinacionais que facturaram os milhões que tinham planeado. Em todo este plano a criação dos "medos" é sempre a peça fundamental e, aí também, as agências noticiosas intrevêm com profundo conhecimento.
Dois textos noticiosos esclarecedores, um de Outubro de 2009 e o outro com 2 ou 3 dias.

Aos 45 milhões de euros gastos pelo Ministério da Saúde na compra de seis milhões de doses da vacina Pandremrix, produzida pela farmacêutica GlaxoSmithKline, juntam-se os 22,5 milhões de euros aplicados desde 2007 na aquisição do fármaco Oseltamivir (Tamiflu) à Roche. As contas são avançadas pela agência Lusa. Excluindo os custos indirectos, cujo apuramento será determinado pela progressão do vírus H1N1, o Estado já desembolsou mais de 67 milhões de euros.
Uma projecção elaborada pela Deloitte, com a colaboração da Intelligent Life Solutions, apontava, há cerca de três meses, para um impacto directo de 330 a 500 milhões de euros nos cofres do Estado. A previsão assenta nas quebras expectáveis em sede de IRS, nos descontos para a Segurança Social e nos subsídios de doença.
A estimativa da consultora aponta ainda para um recuo do Produto Interno Bruto (PIB) de 0,3 a 0,45 por cento, levando em linha de conta o absentismo laboral. Em suma, a redução do PIB pode ir de 490 a 740 milhões de euros.
Vacinas chegam a Portugal a 20 de Outubro
O Ministério da Saúde havia previsto receber os primeiros lotes da vacina sintetizada pela GlaxoSmithKline na próxima segunda-feira. A entrega, adiantou uma fonte da farmacêutica citada pela Lusa, foi adiada para 20 de Outubro.
A campanha de vacinação contra a Gripe A vai estar em marcha a partir do dia 26. Numa primeira fase serão administradas 49 mil vacinas aos grupos considerados prioritários. Desde logo os profissionais de saúde que, "pela especialização e especificidade das suas funções", sejam "dificilmente substituíveis", na terminologia da tutela.
Quanto ao grupo das grávidas, as vacinas destinam-se às mulheres que se encontrem no segundo ou no terceiro trimestres de gestação e sofram de doenças graves associadas. O terceiro grupo prioritário abarca os trabalhadores que têm a cargo "actividades essenciais" em sectores como a distribuição de gás, electricidade, saneamento, segurança, comunicações e órgãos de comunicação social.
Empresas identificam "indispensáveis"
Várias entidades empresariais contactadas pela agência Lusa revelaram que já têm em prática os respectivos planos de contingência para a nova variante do vírus da gripe. Parte das empresas já fizeram chegar à Direcção-Geral da Saúde a lista de trabalhadores considerados prioritários no âmbito da campanha de vacinação.
Na TAP, por exemplo, existe um programa de vacinação "integrado no plano de contingência", enquanto a EPAL, responsável pelo abastecimento de água em Lisboa, dá prioridade a funcionários "afectos a áreas operacionais e técnicas".
O Metropolitano de Lisboa dispõe, por sua vez, de "reservas de material de protecção pessoal", designadamente "máscaras e medicamentos para os seus trabalhadores". A empresa garantiu ainda o "aprovisionamento de materiais de limpeza e de desinfecção, bem como o reforço da higiene e a limpeza nos locais de trabalho, zonas de acesso e circulação, balneários, instalações sanitárias e comboios".
Também o Ministério da Justiça indica que já definiu "os grupos assinalados para vacinação". No domínio da segurança, a PSP atribui a prioridade aos agentes com funções de atendimento ao público.
10/10/09, Aqui

O presidente da Comissão da Saúde da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, Wolfgang Wodarg, acusou esta segunda-feira a Organização Mundial de Saúde de conivência com a indústria farmacêutica e de ter obrigado os Governos a comprarem vacinas por causa do que considera ter sido a “falsa pandemia” da gripe A/H1N1. A correspondente da Antena 1 em Estrasburgo, jornalista Fernanda Gabriel, registou as críticas do responsável europeu.
25/10/2010, Aqui

Entretanto, dizem os engravatados, que não sei quê da despesa e que é preciso cortar nos gastos para termos a confiança dos da Europa que nos vão emprestando o que não temos.

24 janeiro 2010

Amor Amoras



   Nasci no tempo de amoras bravas
   no tempo de silvas em brancos muros
   de borboletas gentis e abelhas rápidas
   de fontes frescas em verdes campos

   Nasci no tempo em que amoras sangram
   é por isso que me encanto
   quando me ofereces assim
   um cesto de amor
   do tempo em que amoras sangram
   
   
   
   

Estes prémios dão cá uma trabalheira!



Pela mão generosa da Austeriana, gestora do excelente Bicho Carpinteiro, o "Marcas" recebeu mais este certificado de qualidade. Todos vaidosos, agradecemos e cumprimos o preceito: distinguir pelo menos outros cinco blogues. Como fui indigitada para a tarefa, e as minhas viagens na net têm variado pouco de itinerário, aqui estão alguns dos indefectíveis. Há outros, mas como já foram laureados... Mais uma vez, obrigada, Austeriana. E o prémio vai para:

Catharsis
A Matriz dos sonhos
Abencerragem
Vaandando
Há Vida Em Marta

Bem, vamos lá então responder, que isto parece coisa séria:

a) Tens medo de quê?
Do mar. Se começo a pensar que estou “sem pé”, é uma desgraça. É um trauma.

b) Tens algum "guilty pleasure"?
Com franqueza, acho que não. A “culpa” dá cabo de tudo. (Mas ontem vi um cachecol muitagiroooooo. Hei-de ir lá outra vez.)

c) Farias alguma "loucura" por amor/amizade?
Sem contar com as que já fiz?... São as melhores loucuras.

d) Qual o teu maior sonho? [Não vale responder Paz, Amor e Felicidade ;) ]
Sinceramente, não tenho esse “maior sonho” – tenho muitos, mas pequeninos. E lá vou chegando, lá vou chegando.

e) Nos momentos de tristeza, abatimento, isolas-te ou preferes colo? (Não vale brincar)
Primeiro preciso de estar comigo; depois começo a ficar farta e a pedir colo.

f) Entre uma pessoa extrovertida e outra introvertida, qual seria a escolha abstracta?
Abstractamente, fico intimidada com as pessoas muito fechadas, mas as pessoas são mais do que isso, portanto, para mim, esse aspecto não é relevante.

g) Sentes que te sentes bem na vida, ou há insatisfações para além do desejável?
Tenho feito, sempre, por me sentir bem na vida. Se passar a noite a chorar pelo sol, como posso ver as estrelas?

h) Consideras-te mais crítico ou mais ponderado? (mesmo sabendo que há críticas ponderadas)
Sou crítica, sem margem à ponderação quando estão em risco valores que considero essenciais: o respeito, a liberdade, a igualdade ou a justiça. Sou uma pessoa pacífica, mas não procuro o consenso a qualquer preço.

i) Julgas-te impulsivo, de fazer filmes, paciente ou... (define o que te julgas no geral).
Ainda bem que tenho seguido alguns impulsos, embora os filmezitos que fiz em miúda fossem de muito má qualidade. Agora, procuro entrar em cena num estilo slow motion. É um excelente exercício.

j) Consegues desejar mal a alguém e eventualmente concretizar? (Responder com sinceridade)
Felizmente, nunca me aconteceu desejar verdadeiramente o mal de alguém. Mas arrepio-me só de pensar que há coisas que me poderiam fazer sentir isso.

k) Conténs-te publicamente em manifestações de afecto (abraçar, beijar, rir alto...)
Ahahahahah! Claro que não. Mas acho que o faço com peso e medida, sem dar show.

l)Qual o lado mais acentuado? Orgulho ou teimosia?
Algum orgulho, alguma teimosia. Várias vezes me orgulhei da minha teimosia.

m) Casamentos homossexuais e/ou direito à adopção?
Há dois textos que respondem por mim a esta questão: um, aqui do Marcas, - "A modernidade e os equívocos"; outro, o do Luís Januário, em A Natureza do mal.

n) O que te faz continuar com o blogue?
Encontrar motivos de reflexão, trocar pontos de vista, alargar conhecimentos; o divertimento de criar pontes entre vários registos (fotos, textos, músicas).

o) O número de visitas ou de comentários influencia o teu blogue?
Da minha parte, não, porque tenho prazer em fazê-lo. Mas é sempre gratificante o eco (concordante ou discordante) dos comentadores, claro. Para “falar” sozinha, não precisava do blogue.

p) Na tua blogosfera pessoal e ideal, como seria ela?
Oups! Essa coisa “dos ideais”… Quando não me agrada o tom, faço delete ao comentário. O tom, sim, o tom boçal de muitas coisas que se escrevem na net, desagrada-me. Para se exercer a crítica ou discordar não é preciso isso.

q) Devia haver encontros de bloguistas? Caso sim em que moldes e caso não porquê?
Já há, tanto quanto sei, e muito publicitados; parece-me um caminho natural, quando se encontra afinidade com os interlocutores e se tem curiosidade em conhecê-los. Não tenho nada contra.

r) Sabes brincar contigo mesmo e rir com quem brinca contigo? (Não vale responder com ironias).
Quase sempre me rio das minhas parvoíces. Quase sempre rio com quem brinca comigo. Gosto de quem tem sentido de humor, fina ironia.

s) Já agora, qual ou quais os teus principais defeitos?
Um certo grau de perfeccionismo que, não raro, é contraproducente. O resto são idiossincrasias que vão bem com o meu tom de pele.

t) E em que aspectos te elogiam e/ou achas ter potencialidades e mesmo orgulho nisso?
(Ai elogiam? Quem, quem? O quê?) Alguma coisa em mim que eu desconheça?

u) Entre uma televisão, um computador e um telemóvel, o que escolherias?
Dispensaria facilmente a televisão.

v) Elogias ou guardas para ti?
Sempre que me parece merecedor, teço o elogio. Sobretudo se pode ser uma forma de reforço positivo.

w) Tens a humildade suficiente para pedir desculpa sem ser indirectamente?
Sim. Sempre directamente.

x) Consideras-te, grosso modo, uma pessoa sensível ou pragmática?
Sensível e pragmática, grosso modo.

y) Perdoas com facilidade?
Depende. Se alguém que eu prezo e respeito me fizesse uma sacanice, acho que não. (Para perdoar, é preciso que não se esqueça o conflito, não é? E se a gente o esquece? É porque já perdoou?)

z) Qual o teu maior pesadelo ou o que mais te preocupa?
Várias coisas: que os filhos e a família não estejam bem (com eles e com a vida); perder a sanidade mental ou ficar fisicamente dependente de outros; sobrecarregar a família.

23 janeiro 2010

O amor, o fascíno e os enganos


Estava como que entorpecido pelo fascínio do incompreensível. Ela levantou-se diante dele, alta e indistinta, como um fantasma negro no crepúsculo vermelho. Por fim, com uma aguda incerteza face ao que iria acontecer caso abrisse a boca, ele murmurou:
- Mas se o meu amor for suficientemente forte – hesitou.
Ele ouviu algo estalar ruidosamente na inflamada quietude. Ela tinha partido o leque. Caíram duas finas peças de marfim, uma após outra, sem qualquer ruído, sobre o tapete grosso, e, instintivamente, ele dobrou-se para as apanhar. Enquanto tacteava aos pés dela, lembrou-se de que aquela mulher tinha nas mãos uma dádiva fundamental, que não podia vir de mais nada neste mundo; e quando se levantou, estava invadido de uma crença avassaladora num enigma, pela convicção de que o autêntico segredo da existência, a certeza imaterial e preciosa estava ao seu alcance e a escapar-lhe! Ela dirigiu-se para a porta e ele foi atrás dela, procurando uma palavra mágica que desvendasse o enigma, que a levasse a conceder-lhe a dádiva. E essa palavra não existia! O enigma só pode ser revelado através do sacrifício, e a dádiva do paraíso está nas mãos de qualquer homem. Mas eles tinham vivido num mundo que odiava enigmas, e apenas se interessa pelas dádivas que podem ser compradas em lojas.
Ela estava a aproximar-se da porta. Ele disse, apressadamente:
- Palavra de honra que te amava, ainda te amo.
Ela parou por um momento, quase imperceptível para lhe dirigir um olhar indignado, e depois seguiu. Aquela penetração feminina tão inteligente e maculada pelo eterno instinto de auto preservação, tão pronta a reconhecer uma vilania evidente em tudo aquilo que não é capaz de compreender, inundou-a de amargo ressentimento contra ambos os homens que nada podiam oferecer ao conflito espiritual e trágico dos seus sentimentos, a não ser a rudeza do seu materialismo abominável. A raiva que sentia pela forma ineficaz como se enganava a si própria chegava para os odiar aos dois. O que queriam eles? O que queria mais este? E, quando o marido voltou a olhar para ela, com a mão na maçaneta, perguntou a si própria se ele era irremediavelmente estúpido ou simplesmente desprezível.
Nervosa, afirmou rapidamente:
- Estás a enganar-te a ti próprio. Nunca me amaste. Querias uma esposa, uma mulher, qualquer mulher que pensasse, falasse e se comportasse de uma determinada forma que tu aprovasses. Amavas-te a ti próprio.
- Não acreditas em mim? – perguntou ele, devagar.
- Se eu tivesse acreditado que me amavas – começou ela, com fervor, inspirando profundamente; pausa em que ele conseguia ouvir o batimento do sangue nos ouvidos. – Se eu tivesse acreditado. Nunca teria regressado – terminou com ousadia.
Joseph Conrad, in O Regresso, Editora Quadra, 2009

O conto O Regresso (1898), de J.Conrad (1857-1924), narra de forma magistral e intensa algumas horas da vida de um casal. Durante essas (poucas) horas, a vida dos dois é irremediavelmente marcada pela discussão, motivada por uma carta de despedida da mulher e o seu posterior regresso a casa. A escrita revela-se duma invulgar intensidade, conseguindo Conrad (em finais do século XIX) levar o leitor a sentir, ouvir e ver com uma agudíssima precisão toda a trama narrativa.
O seu ritmo levou, naturalmente, ao interesse em transpô-lo para o cinema. Deu origem ao filme Gabrielle (2005), de P.Chéreau, com Isabelle Huppert.

21 janeiro 2010

Sobreviveremos?


Amamos porque somos uma espécie que nutre os filhos. A união sexual pode ser aleatória, tal como a dispersão do fruto dessa união. Muitas espécies que se reproduzem sexualmente põem os ovos e abandonam-nos, fundando a sua posteridade no acaso, na sorte, na contingência e no excesso de produção. No entanto a assistência paterna aos filhos tem as suas vantagens. Os pais podem proteger os filhos, dar-lhes o alimento que estes não são capazes de obter sozinhos, reservar território num mundo de território escasso e transmitir aos filhos uma série de conhecimentos, incluindo coisas que não devem fazer pois os animais jovens aprendem observando as trapalhadas dos mais velhos, tal como aprendem observando os seus sucessos. O comportamento paternal tem tantos aspectos positivos que pode ser encontrado em todo o espectro filogenético, entre os peixes e os insectos, bem como entre os peixes e os mamíferos, estes famosos por serem paternais.
Diz Cort Pedersen, da Universidade da Carolina do Norte A protecção paterna sustentada e a criação dos filhos até estes serem capazes de tomarem conta de si mesmos deram origem a uma taxa de sobrevivência muito mais elevada e proporcionaram um período de desenvolvimento cerebral muito mais longo. Os cuidados paternos foram, portanto, um pré - requisito para a evolução da inteligência superior. As espécies que tomam conta dos filhos têm vindo a dominar todos os nichos ecológicos que habitam. (...)
Um progenitor, uma mãe tem de se sentir ligada aos filhos, os quais, por sua vez, têm de sentir-se ligados à mãe, e o corpo e cérebro de uma espécie que nutre os filhos têm de saber amar e ser amados.
Natalie Angier, in Mulher, Uma Geografia Íntima, Gradiva 2001
(no texto paterno ou paternal tem, quanto a mim, o significado de parental, Paulo).
Esta a teoria. Parte do estudo dos biólogos, como a Autora, a que juntam conceitos vindos da antropologia e da sociologia, para obter uma caracterização científica da nossa espécie.
Um grupo, os Humanos, que se terá tornado dominante porque pensa, comunica e, sobretudo, ama. Segundo parece desde que nasce.
Como integrar hoje nesta marca de amor da espécie humana, inerente a partir do seu núcleo primordial, uma marca de onde vem a sua energia vital, como se pode considerar ser seu o desprezo crescente dos filhos pelos pais que deixam abandonados nos hospitais ou nos asilos, ou as brutais agressões a que são sujeitas algumas crianças por parte dos próprios pais, muitas vezes até lhes tirarem a vida, ou mesmo os genocídios em massa que fazemos uns aos outros, humanos como nós, também eles filhos e pais, mas com cor, ideias ou sonhos diferentes.
Não há ciência que explique.

19 janeiro 2010

Aniversário do poeta e falência da Fundação



Li a notícia em dois jornais e fiquei deveras triste. Dezasseis anos depois de ter sido criada, a Fundação Eugénio de Andrade pode ser extinta, assim o solicitaram, ao Governo, os membros da Direcção.

Com direito apenas a uma pequena percentagem dos direitos de autor, sem outra fonte de rendimento, para além do apoio da Câmara do Porto, e acrescentando-se a insolvência das distribuidoras Diglivro e ECL, a Fundação encontra-se na falência e a questão está a ser analisada pela Presidência do Conselho de Ministros.
O facto de ter beneficiado, durante sete anos, de um financiamento com base num acordo verbal - o que coloca, naturalmente, questões de ordem jurídica - não invalida que, de 1997 até hoje, não tenha havido nenhum compromisso oficial para manter esta instituição. Não deveria ter sido esse o interesse dos seus gestores?
Parece-me também que, se a Fundação não prestou contas à família do poeta - que ele adoptou e que o acompanhou nas piores e melhores horas do último período da sua vida - quando ela lhas pediu... algo fica muito pouco transparente nesta história. Que deveria ser de poemas, mas é agora, também, de "notas"-de- roda-pé mal explicadas.
É uma pena, porque o Eugénio, não obstante o seu contacto muitas vezes difícil e ríspido, muitas vezes vestido de uma vaidade irreprimível, era um ser humano extraordinário. Não merecia nada disto. Felizmente, a sua poesia será imune a tudo.

Coração habitado

Aqui estão as mãos.

São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.

Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

Alguns pensam que são as mãos de deus
– eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.

Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.

Sobrevivente


O japonês Tsutomu Yamaguchi, a única pessoa a sobreviver às explosões atómicas de Hiroshima e de Nagasaki, em Agosto de 1945, morreu recentemente de um cancro, aos 93 anos de idade. Yamaguchi, única vítima dos dois bombardeios oficialmente reconhecida, faleceu em Nagasaki, sudoeste do Japão. "Perdemos uma testemunha das mais importantes desta história", declarou em comunicado o prefeito de Nagasaki, Tomihisa Taue. Yamaguchi, engenheiro de profissão, residente em Nagasaki, estava a trabalhar em Hiroshima, oeste do Japão, no dia 6 de Agosto de 1945, quando a aviação americana lançou a primeira bomba atómica da história. No momento da explosão, Yamaguchi caminhava a dois quilómetros do chamado ponto zero, a zona terrestre localizada na linha vertical da explosão, dado que a bomba explodiu sobre a cidade sem tocar no solo. Yamaguchi sofreu queimaduras graves nos braços, mas dois dias depois, conseguiu regressar a Nagasaki. No dia 9 de Agosto de 1945, Yamaguchi estava no escritório a contar aos seus colegas o horror de Hiroshima ,quando explodiu a segunda bomba atómica lançada pelos americanos. "Acreditei que o cogumelo atómico me tinha seguido até aqui", recordou mais tarde Yamaguchi, que estava a três quilómetros do epicentro da explosão. As bombas atómicas de Hiroshima e Nagasaki causaram 140.000 e 75.000 mortos ,respectivamente, seja no acto, por causa do calor ou da onda expansiva, seja nos meses seguintes devido a radiações. Yamaguchi começou a contar sua história em 2005, depois da morte por cancro de seu segundo filho, também sobrevivente de Nagasaki. Em 22 de Dezembro passado, Yamaguchi tinha recebido a visita do cineasta James Cameron, o director de "Titanic" e "Avatar", que pretende fazer um filme sobre as duas bombas atómicas. "Missão cumprida", declarou Yamaguchi ao despedir-se, então, de Cameron, recordou a sua família.

14 janeiro 2010

O Haiti, agora, é só ali



Nos anos 90 decorria no Brasil uma campanha de ajuda humanitária ao Haiti, após um furacão ter devastado aquele país das Caraíbas.
Caetano Veloso e Gilberto Gil fizeram esta música (álbum Tropicália II) onde utilizavam a campanha para chamar a atenção da situação de miséria em que, também no Brasil, milhares e milhares de cidadãos viviam. Problema, aliás comum a milhões seres humanos no planeta inteiro, designadamente no hemisfério sul.
Hoje, entretanto,o Brasil está na primeira linha de apoiantes ao Haiti e toda a ajuda que o mundo ali fizer chegar será pouca para aquele povo martirizado. Porque, agora, o Haiti é ali...
Fica, no entanto, o grito de alerta para a necessidade de tirar da miséria extrema milhões de cidadãos que vivem noutros pontos do globo numa situação de intolerável indignidade para qualquer ser humano.
É que o Haiti não é só ali
(Entretanto, hoje mesmo um comentador com responsabilidades dizia na RTPN que na Tailândia o aparecimento do Tsunami - ao contrário do Haiti - tinha sido favorável já que tinha "limpo" o terreno de todos os feridos, ultrapassando assim as dificuldades de apoio logístico que, inevitavelmente, iriam surgir. .. Abjecto)

13 janeiro 2010

Que crime, que pecado cometeu o Haiti?

...Ces femmes, ces enfants l'un sur l'autre entassés,
Sous ces marbres rompus ces membres dispersés;
Cent mille infortunés que la terre dévore,
Qui, sanglants, déchirés, et palpitants encore,
Enterrés sous leurs toits, terminent sans secours
Dans l'horreur des tourments leurs lamentables jours!
Aux cris demi-formés de leurs voix expirantes,
Au spectacle effrayant de leurs cendres fumantes,
Direz-vous: "C'est l'effet des éternelles lois
Qui d'un Dieu libre et bon nécessitent le choix"?
Direz-vous, en voyant cet amas de victimes:
"Dieu s'est vengé, leur mort est le prix de leurs crimes"?
Quel crime, quelle faute ont commis ces enfants
Sur le sein maternel écrasés et sanglants?...


Voltaire, Poème sur le désastre de Lisbonne (1756)

Em cerca de um minuto, a destruição, o terror e a morte. A somar à miséria extrema, à fome e à SIDA endémica, esta tragédia que, segundo alguns, poderá chegar aos 500.000 mortos.
Os comentadores na TV, à distância, dizem que havia factores negativos: um epicentro muito próximo da costa e a miséria em que vive o povo do Haiti.
Nada como ter uma saúde de ferro, dinheiro a rodos, muita sorte e epicentros distantes.

12 janeiro 2010

A modernidade e os equívocos

... Aceder assim a tão poderoso e antigo edifício simbólico (o casamento) pode parecer uma revolução, mas é uma revolução conservadora. Todos nos devemos regozijar com a resolução de problemas práticos e legais. Mas é preciso não esquecer que integrar a ordem do discurso a que pertencem as representações sociais do casamento significa uma submissão à linguagem que sempre procedeu pela violência e pelo poder discursivo de impor uma definição de homossexual.

António Guerreiro, in Actual, suplemento do Expresso, 09/01/2010

11 janeiro 2010

Desafio

Desafio aos amigos deste blogue:
A partir desta pintura tão expressiva de Luis Darocha, escreva uma frase que seja uma espécie de legenda.
Esperamos pelos amigos todos.

09 janeiro 2010

A erosão da memória e o demónio do esquecimento

Tinha-me encaminhado automaticamente para o Pierluigi's na certeza de que tinha sugerido que jantássemos ali, e agora não me lembrava se tinha pedido a Amy que sugerisse um restaurante de que gostasse. Se tinha, é claro que não conseguia lembrar-me de qual era esse restaurante. E a ideia de que ela pudesse lá ter estado sentada este tempo todo sozinha a pensar que eu a tinha deixado plantada - por causa da forma como ela tinha descrito a sua aparência - levou-me a correr para o telefone da cave e telefonar para o hotel a saber se tinha mensagens. Tinha uma: "Esperei uma hora e fui-me embora. Compreendo."
Horas antes tinha entrado numa drogaria para comprar os artigos de higiene pessoal que me tinha esquecido de trazer de casa. Depois de pagar, pedi à empregada: " pode meter-me essas coisas numa caixa?" Ela olhou para mim espantada. "Nós não temos caixas", disse. "Eu queria dizer um saco", disse eu, "num saco, se faz favor". Um erro insignificante, mas ainda assim preocupante. Andava a ter disfasias como esta quase diariamente, e apesar dos apontamentos que aplicadamente tomava no meu caderno de tarefa, apesar de um esforço persistente de me concentrar naquilo que estava a fazer ou a planear fazer, esquecia-me frequentemente das coisas. (...)
E também não me parecia que a vigilância fosse de grande utilidade contra aquilo que, mais do que a erosão da memória, parecia ser um resvalar para a incongruência, como se alguma coisa diabólica que estivesse instalada no meu cérebro mas fosse dotada de mente própria - o diabinho da amnésia, o demónio do esquecimento, a cujos poderes de destruição eu não conseguia opor nenhuma força eficaz - me fizesse sofrer estes lapsos pelo simples prazer de assistir à minha degenerescência, a meta gloriosa e suprema na redução de alguém, cuja acuidade de escritor era alimentada pela memória e pela precisão verbal, à condição de homem inútil.
Philip Roth, O Fantasma Sai de Cena, D. Quixote,2008
Pintura: Eric Fischl

A cada segundo,tudo o que os sentidos nos trazem é transformado em percepções e estas em memórias. O processo de memorização é permanente e, na maior parte dos casos, independente da nossa vontade o que faz com que sejamos incapazes de prever o que guardaremos de tudo o que vemos e sentimos.
A consolidação da memória depende duma estrutura cerebral, com a forma de um cavalo marinho, o Hipocampo, espécie de entroncamento de inúmeras vias onde circula informação que aí é tratada, depois de triada em todo o sistema límbico e, depois, armazenada noutras zonas do cérebro.
A Doença de Alzheimer tem como característica determinante, na sua fase inicial, a alteração da memória. Sabe-se hoje que uma das causas é a acumulação tóxica no Hipocampo duma proteína que ali forma placas que destroem as suas células com as consequências dramáticas conhecidas. É a Proteina Beta Amiloide e a sua acção nefasta está identificada.
Há, neste momento, várias linhas de investigação em torno desta descoberta e os primeiros resultados da utilização de um anticorpo anti-P.Beta Amilóide usado já em 4000 pessoas (sem efeitos secundários) mostrou resultados muito promissores. Prevê-se que, em 4 ou 5 anos haja, finalmente, terapêuticas eficazes e sem risco.

08 janeiro 2010

Sem Abrigo

Ser sem abrigo, hoje, não é simplesmente não ter onde dormir. É mais do que isso, já que alguns se recusam a ser recolhidos, por não quererem cumprir regras, ou porque já estão sem discernimento para tomar decisões. Ser sem abrigo, hoje, é mais do que isso, é um fenómeno urbano, uma postura de desistência, um desafio.
Haverá, no entanto, diversas razões, certamente, múltiplas posturas, conforme a idade, a história de vida, ou as razões próximas que levaram a essa renúncia. Alcoolismo, dependência de drogas, vício de mendicidade, confusão mental.
Uma jornalista francesa resolveu disfarçar-se de sem abrigo e foi viver essa experiência durante uma semana. É um relato pungente, doloroso, incrédulo dos diversos sofrimentos e solidões, violências e solidariedades que foi testemunhando.
Há uma coisa de que tenho a certeza: ser sem abrigo não é, certamente, ser feliz.

06 janeiro 2010

A milonga no samovar




Duas desengonçadas ventoinhas fingem arrefecer o bafo quente que sobe da rua e entra no bar.
Nas paredes há posters roídos pelo tempo e anúncios de cinema dos anos sessenta, que mal deixam perceber a cor rosa que as cobria à nascença.
As mesas e cadeiras, de baquelite, fazem frente ao balcão de madeira que, à direita, acompanha toda a parede do espaço. Ao fundo, uma pilha de velhas malas de viagem preenche um estranho cenário onde não falta um espelho de quarto.
Uma perna cai do tecto e a hora matinal desaconselha os habitués. Mas o improvável tangueiro, o mesmo que nas paredes se exibe abraçado a Pavarotti e Mike Jagger, brinda os espantados viajantes com uma milonga sentida, até ao momento apenas escutada pelo olhar adormecido de um asmático cão de guarda.


(El Samovar de Rasputin, Calle del Valle Iberlucea, 1251, La Boca, B.A:Tel.541143023190. Horário: de terça a domingo das 10 às 19h e das 22h até ao último cliente)
Fotografia de C.
Voz: Daniel Melingo

05 janeiro 2010

Resposta A Bicho-Carpinteiro


Dez livros que Não mudaram a minha vida: o desafio da cara Austeriana.
Será que percebi bem? Brincar com os títulos? Hum, Ora vejamos:

Remédicos Da Vida De Um Talho- F. Namora
Retratos E Auto Valente-Vasco Pulido Retratos
Doutor Matias-Enrique Vila Passavento
A Vida Com A Minha Irmã Madona- Cristopher Ciccone
Graça- Vasco Prazer Moura
Na Praia De Ian-Chesil Mcewan
O Cláudio Da Bússula- Mário Eixo
As Cidades De Calvino-Italo Invisível
Diário Da Tua Ausência- Margarida Repinto Belo
Nuno Nogueira Pereira- Jaime Alvares Pinto

YES! Era assim? Cá está, com um abraço.

04 janeiro 2010

"e despedir-se de tudo é um ofício inquieto"



When my lifetime had just ended
And my death had just begun
I told you I'd never leave you
But I knew this day would come

Give me blood for my blood wedding
I am ready to be born
I feel new
As if this body were the first I'd ever worn

I need straw for the straw fire
I need hard earth for the plow
Don't ask me to reconsider
I am ready to go now

I'm going in I'm going in
This is how it starts
I can see in so far
But afterwards we always forget
Who we are

I'm going in I'm going in
I can stand the pain
And the blinding heat
'Cause I won't remember you
The next time we meet

You'll be making the arrangements
You'll be trying to set me free
Not a moment for the meeting
I'll be busy as a bee

You'll be talking to me
But I just won't understand
I'll be falling by the wayside
You'll be holding out your hand

Don't you tempt me with perfection
I have other things to do
I didn't burrow this far in
Just to come right back to you

I'm going in I'm going in
I have never been so ugly
I have never been so slow
These prison walls get closer now
The further in I go

I'm going in I'm going in
I like to see you from a distance
And just barely believe
And think that
Even lost and blind
I still invented love

I'm going in
I'm going in
I'm going in

"I'm going in" é a faixa 11 do último álbum da cantora - Lhasa - gravado em Abril de 2009.
Título: verso de Herberto Helder, in Ou o Poema Contínuo, Assírio & Alvim, 2004.

03 janeiro 2010

Lhasa




Morreu Lhasa de Sela.

Lhasa nasceu em 1972, em Big Indian, estado de Nova Iorque.
De origem mexicana, americano-judaica e libanesa. O pai, professor e escritor, a mãe fotógrafa. Com as suas três irmãs, cresceria num meio culto e irreverente. Numa carrinha, com toda a família, percorreu o espaço entre o México e os Estados Unidos, onde os pais espalhavam a sua multifacetada cultura. Neste ambiente informal, erudito, multilinguístico, Lhasa tornou-se, desde os treze anos, uma cantora diferente, expressando-se em espanhol, francês e inglês. Dos blues à música cigana, dos ritmos sul-americanos à música country, Lhasa, com a sua voz sem fronteiras, trazia-nos o mundo, todos os sons, perfumes e cores. Às vezes era como Billie Holiday, outras BjorK, outras ainda, Brell. Dava-nos poesia, conversava connosco, contava histórias.
Faleceu hoje, no Quebec, Canadá.