30 março 2011

Samanta Schweblin


Tego fez uns ovos mexidos mas quando finalmente se sentou à mesa e olhou para o prato, descobriu que era incapaz de os comer.
- O que é que se passa?- perguntei-lhe.
Demorou a tirar os olhos dos ovos.
- Estou preocupado - disse, - acho que estou a perder velocidade.
Mexeu o braço de um lado para o outro, de uma forma lenta e exasperante, suponho que de propósito, e ficou a olhar para mim, à espera do meu veredicto.
- Não faço a menor ideia do que estás a falar - disse, - ainda estou demasiado a dormir.
- Não viste o tempo que eu demoro a atender o telefone? A ir até à porta, a beber um copo de água, a escovar os dentes... É um calvário.
Houve um tempo em que Tego voava a quarenta quilómetros por hora. O circo era o céu; eu arrastava o canhão até ao centro da pista. As luzes ocultavam o público, mas ouvíamos o clamor. As cortinas aveludadas abriam-se e Tego aparecia com o seu capacete prateado. Levantava os braços para receber os aplausos. O seu fato vermelho brilhava sobre a arena. Eu encarregava-me da pólvora enquanto ele trepava e enfiava o seu corpo magro no canhão. Os tambores da orquestra pediam silêncio e ficava tudo nas minhas mãos. Nessa altura, as únicas coisas que se ouviam eram os pacotes de pipocas e uma ou outra tosse nervosa. Eu tirava os fóforos dos bolsos. Levava-os numa caixa de prata que ainda conservo. Uma caixa pequena, mas tão brilhante que podia ver-se do útimo degrau da bancada. Abria-a, tirava um fósforo e encostava-o à lixa da base da caixa. Nesse momento todos os olhares estavam sobre mim.Com um movimento rápido, o fogo surgia. Acendia a mecha. O som das faíscas expandia-se em todas as direcções. Eu dava alguns passos teatrais para trás, dando a entender que algo terrível ia acontecer - o público atento à mecha que se consumia -, e de repente: Bum. E Tego, uma seta vermelha e brilhante, saía disparado a toda a velocidade.
Tego afastou os ovos e levantou-se com esforço da cadeira. Estava gordo e estava velho. Respirava com um ronco pesado, porque a coluna lhe apertava não sei o quê nos pulmões, e deslocava-se pela cozinha usando as cadeiras e a bancada para se aparar, parando a cada instante para pensar, ou para descansar. Às vezes suspirava simplesmente e proseguia descansado. Caminhou em silêncio até à porta da cozinha e parou:
- Eu acho mesmo que estou a perder velocidade - disse.
Olhou para os ovos
- Acho que estou à beira da morte.
Encostei o prato ao meu lado da mesa, apenas para o irritar.
- Isso acontece quando uma pessoa deixa de fazer bem o que sabe fazer melhor - continuou -. Foi nisso que estive a pensar, que uma pessoa morre.
Provei os ovos mas já estavam frios. Foi a última conversa que tivemos; depois disso deu três passos torpes em direcção à sala e caiu morto no chão.

Uma jornalista de um jornal diário vem entrevistar-me alguns dias depois. Assino-lhe uma fotografia para a notícia, na qual estamos, eu e Tego, ao lado do canhão, ele com o capacete e o seu fato encarnado, eu de azul, com a caixa de fósforos na mão. A rapariga fica encantada. Quer saber mais sobre Tego, pergunta se há alguma coisa especial que eu queira dizer sobre a sua morte, mas já não tenho vontade de continuar a falar disso, e não me ocorre nada.
Como não se vai embora, ofereço-lhe algo para beber.
- Café?- pergunto
- Claro! - diz ela. Parece estar disposta a ouvir-me uma eternidade. Mas risco um fósforo na minha caixa de prata, para acender o lume, várias vezes e não acontece nada.

Samanta Schweblin, Pássaros na Boca, Ed.Cavalo de Ferro, 2011

27 março 2011

Mas... onde está o Povo?



Um PS e um PSD que discutiam a posse de um Povo submeteram o caso ao julgamento de um FMI. Este, depois de ouvir uma longa argumentação, abriu a boca para proferir a sentença.

- Já sei qual vai ser a decisão – interrompeu o PSD. – Devido ao nosso fraco desempenho, o Povo não pertence a nenhum dos dois e serás tu mesmo a comê-lo. Permite-me que te diga que é uma decisão injusta, como provarei.

- Para mim – disse o PS – está claro que darás o Povo ao PSD, o PSD a mim e que tu ficas comigo. Já tenho experiência destas coisas.

- O que eu ia a dizer – disse o FMI, bocejando – é que, durante a argumentação deste caso, a propriedade em disputa pôs-se a andar. Talvez consigam arranjar outro Povo.

Nota: Inspirado numa fábula de Esopo.

retirado daqui, à descarada, mas com a devida vénia.

22 março 2011

Redacção para o exame da ludoteca: xeque-mate de rei e dama


É uma técnica simples, que apenas requer um trabalho de conjunto e dinamismo, por parte do rei e da dama atacantes, para restringir o rei adversário. Nunca se deve desprezar a chamada “jogada de espera”. Entretanto, há que limitar as filas de alcance do rei atacado (não sei como se faz, mas já vi que resulta noutros tabuleiros).

Para viabilizar (o que eu gosto deste termo!) a execução deste mate, o Rei precisa de apoiar a dama - tanto para forçar o movimento do Rei adversário para as bordas do tabuleiro, quanto para efectuar o mate.
Para que a dama tenha poder estratégico, deve estar colocada em L ou posição de cavalo com o rei adversário.
Quando o Rei estiver sem saída é só gritar bem alto "XEQUE-MATE!". Se disserem "vai-te embora antes que o cheque te mate", não vale. Não queremos cheques sem cobertura. 

Alguns peões, que neste jogo nunca podem retroceder, estão agora nos bastidores, com cara de parvos, porque nunca aprenderam jogos estratégicos - só se lembram do anelzinho e do jogo do ringue nas avenidas, idas, de restritas liberdades, quando ainda se cantava Ó-ai-ó-linda e não havia carros nem buzinas. Pensavam que era um jogo a brincar e estão quase a dar-se conta de que vai ser tudo a sério depois do torneio.

E há também peões a dar de frosques porque não querem ser obrigados a PEC(ar) sem fazer batotice, coisa a que seriam obrigados em caso de empate.

Esta redacção não foi escrita ao abrigo do novo Acordo Ortográfico, mas deu-me um grande gozo, porque aprendi imenso sobre a técnica de copipeiste.

imagem: Final de Partida, obra de Andrea Conde (Buenos Aires)

19 março 2011

Berceuse

 


Canção de embalar é talvez
demasiado melódico e além disso
um desuso. Já ninguém canta a adormecer
os filhos. Coisa imprópria para o crescimento
de criaturas autónomas
e hiper-activas que devem fugir
ao sedentarismo e à obesidade.
O Canal Panda faz isso muito melhor
ou qualquer brinquedo mecânico e perfeito.

Também já ninguém canta
nos lavadouros públicos ou nos campos. Os
únicos campos onde se cantam as brumas
da memória são os estádios. Os
pedreiros deixaram de cantar à pedra:

Hou! pedra, hou!
Hou! linda pedra, hou!

e as canções de trabalho (uma espécie
de berceuses da fadiga) passaram
a matéria etnográfica. Por isso os
estudantes de português já não entendem
Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura ou
Sete anos de pastor Jacob servira.

Mesmo o Schöne Müllerin do Schubert que
se ouve ainda nos concertos clássicos
com vaga subserviência patega
(porque em alemão, não se percebe nada),
só os amantes do lied reconhecem.

E se percebessem?
A moleira já não seria schön
e não teria 80 anos, bem bonito rol
como a de Junqueiro,
pela estrada fora, toc, toc, toc, mas agora reclusa
numa casa geriátrica, em contagem crescente
da inacção.

Muito pouco,
tão pouco, para um mundo
embalado na pesquisa espacial
de água em Marte.


Inês Lourenço, Coisas que nunca, & etc, 2010
Imagem: Pipas, tela de Cândido Portinari

17 março 2011

O horror






















Uma harpa envelhece.
Nada se ouve ao longo dos canais e os remadores
sonham junto às estátuas de treva.
A tua sombra está atrás da minha sombra e dança.
Tocas-me de tão longe, sobre a falésia, e não sei se
foi amor.
Certo rumor de cálices, uma súplica ao dealbar das
ruínas,
tudo se perdeu no solitário campo dos céus.
Uma estrela caía.
Esse fogo consumido queima ainda a lembrança do
sul, a sua extrema dor anoitecida.
Não vens jamais.
O teu rosto é a relva mutilada dos passos em que me
entristeço, a absoluta condenação.
Chove quando penso que um dia as tuas rosas floriam
no centro desta cidade.
Não quis, à volta dos lábios, a profanação do jasmim,
as tuas folhas de outubro.
Ocultarei, na agonia das casas, uma pena que esvoaça,
a nudez de quem sangra à vista das catedrais.
O meu peito abriga as tuas sementes, e morre.
Esta música é quase o vento.

José Agostinho Baptista, in Paixão e Cinzas

Foto: AQUI

14 março 2011

Womadelaide, música no outro lado do Mundo

Womadelaide é um importante Festival Internacional de Música e Dança que hoje termina em Adelaide, Austrália.
Para nós, acresce de importância pela presença, em lugar de reconhecido destaque, de Ana Moura.

13 março 2011

Melingo


Hoje acordámos com dois países.
Um, acomodado, medroso, engravatado, ancorado em esquemas e submissão e em fazer pela vidinha.
O outro, começa a gatinhar.


Melingo canta os inconformados, desalinhados e sonhadores de futuros.
Hoje, na Gulbenkian.


10 março 2011

Bomarzo

Vim ao mundo em tempos de violência. Nesse ano de 1512 o velho Júlio II – o papa terrível, infatigável, que, apesar do mal gálico e da gota que o retorciam, arrastava cardeais, príncipes e chefes militares em furiosas cavalgadas, e que vivia entre soldados, com a pele de carneiro que punha sobre a couraça suja de sangue e lama – trocou as armas da guerra pelas da astúcia e fingiu estar morto, com um ardil de raposa que passa da rigidez à dentada, para atrair à armadilha de Roma os prelados hostis que, obedecendo à política estrangeira, se haviam reunido em concílio em Pisa. Quando os teve em seu poder aterrorizou-os e reduziu-os à obediência. Nesse ano faleceu Pandolfo Petrucci, déspota de Siena, sem ninguém que o chorasse já que a sua vida era plena de crimes. Depois de um longo interregno republicano, os Médicis tornaram a Florença, também nesse ano, com os seus dois futuros papas e os seus dois duques anódinos e bem parecidos, o "Pensieroso" e o tio, que se contemplam eternamente nos sepulcros de Miguel Ângelo; e Maquiavel, contra sua vontade, retirou-se para meditar sobre as décadas de Tito Lívio e planear o seu retrato do Príncipe, breviário de sábia perfídia.
Nesse ano subiu ao trono o sultão Selim I, o poeta parricida que assassinou toda a sua família e viveu para guerrear. E a Europa eriçou-se de pânico. O mais insigne dos antepassados do pobre Toulouse – Lautrec (que herdou, se não o seu porte, a sua desdenhosa audácia senhoril), Odet de Foix, visconde de Lautrec, em cujas fileiras o meu pai se bateu, foi perigosamente ferido em Ravena nesse ano. Nesse ano morreu Gastão de Foix, um jovem sobrinho de Luís XII, com quinze cutiladas no rosto, e o rei perdeu a Itália. Toda a Itália ressoava e crepitava com o fragor das armaduras que se entrechocavam. E nesse ano começou a mostrar as garras Alexandre Farnese, esse que viria a ser Paulo III, recebendo ordens de diácono. Mas também nesse ano, seis meses depois do meu nascimento, Miguel Ângelo Buonarroti mandou retirar os andaimes que cingiam como diques de enredado madeiramento as pinturas da Capela Sistina; desceu, qual ermitão profeta que sai da sua longa clausura, e a criação do mundo revelou-se, potente, gloriosa, voluptuosa, intimidante, num apaixonado entrelaçado de músculos ágeis e jovens, perante o espanto da corte pontifícia que acorria dos campos de batalha, sacudida pela constante presença da morte e do rancor nos acampamentos militares, para ver, lá em cima, lá no alto, sobre os perfis torcidos, sobre a dor das nucas, sobre o arquejar das respirações e o trémulo silêncio, algo que parecia, na sua robusta confusão, um mar multicolorido de espumas prestes a precipitar-se, gritando, bramindo, livre dos diques e do mago de nariz partido que o imobilizavam, sobre a Itália frenética, órfã de Deus.

Manuel Mujica Lainez, Bomarzo, Trad. Pedro Tamen, Sextante Editora

Atrevo-me a dizer que os amantes da leitura se podem dividir entre os que já leram Bomarzo e os que, por enquanto,  ainda não o leram...
Bomarzo é um romance que nos conduz numa magnífica e vertiginosa aventura . É  um extenso fresco do Renascimento, um retrato fantástico da Itália do século XVI, dado através da vida do atroz Pier Francesco Orsini, Duque de Bomarzo e construtor do seu Sacro Bosque.
Nas 630 páginas desta fabulosa narrativa, Manuel Mujica Lainez pinta a Renascença ´em toda a sua glória e nas suas mais tenebrosas misérias.
No final fica a vontade de continuar, seguir os passos daqueles que fomos conhecendo, amando e desprezando,  através do retrato psicológico denso e profundo feito por este autor tão pouco conhecido.
Belíssima tradução de Pedro Tamen

03 março 2011

Gosto!



Aldo Romano (1941) baterista, compositor, um dos melhores músicos de jazz europeus na actualidade.