30 outubro 2012



....a probabilidade do dinheiro ainda não estragou inteiramente o gato
mas de gato para cima  nem pensar nisso é bom!....


Mário Cesariny de Vasconcelos, Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos
Foto AQUI

29 outubro 2012


Há sempre uma outra história para além da história que os olhos vêem
A frase surge no final do filme e resume o trabalho de Claude Chabrol em Bellamy (2009): uma trama construida por camadas, cada uma abrindo para outra, levando o espectador a participar num jogo de descoberta entre o que está à vista e tudo o que, invisível no início, chega depois do mais fundo das personagens e das suas vidas passadas.
O último filme que C. Chabrol realizou. Uma boa despedida.

27 outubro 2012

... da solidão


.... A minha casa, ou lá o que é, assenta, entre outros, sobre dois duvidosos pilares: Nietzsche e Groucho Marx.... E sobre a sabedoria das nações correcta e aumentada: mais vale só do que acompanhado (mesmo que bem acompanhado). Pelo menos às vezes.
Nietzsche tem-me chegado por muitos lados, até directamente. Desta vez chegou-me por Visconti, via Burt Lencaster, na cozinha de um velho palácio veneziano, em "Violência e Paixão": as águias planam solitárias, os corvos é que andam em bandos. E Groucho orgulhosamente por ele próprio: "Nunca farei parte de um clube que aceite tipos como eu como membros".
Tudo isto a propósito de outro dia ter lido em "O Comércio do Porto", e em prosa, Eugénio de Andrade, um grande e generoso poeta, queixar-se da sua solidão. Porque ai de nós, acho eu, se não tivéssemos para nos recolher esse imenso país, a solidão; e esse outro país, igualmente único e imenso, o esquecimento. Compreendo, julgo que compreendo, e no fundo do coração, o que sente Eugénio de Andrade.(...) Mas viver sempre, e acompanhado, rodeado de gente, mesmo dos melhores e mais amados amigos, do ruído das vozes, do moroso calor dos corpos, da presença das coisas e dos sentidos, da imperiosa vida e do imperioso tempo, cansa também tanto! (...).
Os homens precisam (acho eu, que sou jornalista já vai para mais de 20 anos) da solidão, da sua pura e irreparável comida. Eu é que sei e, como eu, sabem-no os homens condenados ao ruído e à luz intolerável dos dias e das coisas comuns, dos telefonemas, das notícias, das exclamações, das escolhas, dos nomes, do comércio triste das palavras. 
Eugénio de Andrade nunca passará um dia na redacção de um jornal, mas sabe (eu sei que sabe) o que quero dizer.
Nem Frei Luis de Léon ( a crónica hoje virou-se definitivamente para os poetas ) penou o inferno quotidiano dos escritórios, das salas de espera, dos cafés, das gares ou de outras metáforas do obscuro vampiro da vida lá de fora. Mas também saberia (eu sei que saberia) o que quero dizer.
Conta Borges que Poe ( e Poe também saberia o que quero dizer!) conhecia de cor um poema juvenil de Frei Luis de Léon : "Vivir quiero conmigo / gozar quiero del bien que debo al Cielo / a solas, sin testigo / libre de amor, de celo / de ódio, de esperanza, de recelo ". 
Não queria pouco, o bom augustiniano : o Paraíso!

Manuel António Pina, JN 4/12/91

25 outubro 2012



A infância é um lugar de exílio. Se não tivermos, em qualquer sítio do coração, uma infância, onde nos refugiaremos quando os ladrões vierem para nos roubar a inocência e os sonhos e quando os assassinos baterem à porta? Se não tivermos uma pequena infância que seja  (um jardim longínquo, um vago quarto de dormir perdido), onde guardaremos os segredos mais secretos e onde brincaremos ainda? E quem nos responderá quando, diante do nosso rosto no espelho, nos virmos e não nos reconhecermos, ou quando, nos dias de infelicidade, chamarmos pelo nosso nome? (...) 
As estatísticas não falam disso, mas na nossa sociedade há uma enorme e perigosa carência de infância. Nos homens, nas instituições na vida de todos os dias. E uma enorme carência de sonhos e de coisas verdadeiramente grandes, razões ou desejos. Os sonhos, que pertencem a uma frágil e excessiva espécie, foram as principais vítimas da mortandade liberal dos últimos anos, substituídos por monstros gélidos chamados "planos", "programas", "projectos",. ( Que coração - de homem ou sociedade - sobreviverá alimentando-se, não do desmesurado sangue dos sonhos, mas de "programas" e "projectos"?).
Com o fito de receber o prémio do sucesso (intrigante e inquietante palavra !) muitos de nós procuraram, viva ou morta a infância dentro de si e entregaram-na, amarrada de pés e mãos, aos carrascos. E pior: vista daqui, parece que a própria sociedade, no seu conjunto, fez o mesmo.....

Manuel A. Pina, JN 29/1/92 

Foto Diane Arbus

24 outubro 2012

O Poeta que habitava os dias

...Outro dia caiu-me nas mãos um velho exemplar do "Diário de Notícias", também ele cheio de nomes de gente importante (ministros, deputados, militares, comerciantes), de tragédias, de "fait divers". E, todavia, o único acontecimento que, em todo o jornal, me dizia ainda alguma coisa, umas poucas dezenas de anos depois, era uma pequena nota de duas ou três linhas numa página interior: um certo "sr. Mário de Sá-Carneiro" tinha publicado um livro de versos! 
Daqui a 50 ou 100 anos, o mais que algum rato de Universidade conseguirá provavelmente sobre Cavaco Silva, depois de ter vasculhado em todos os arquivos, é que foi um primeiro-ministro do tempo de Eugénio de Andrade...

(Manuel A. Pina, JN, 2/9/92)

Manuel António Pina foi um Poeta maior. 
Foi-o, igualmente, na escrita diária, sofrida, exigente e comprometida das Crónicas. 
Dizia ele que as crónicas de jornal duram um dia e morrem. Enganou-se. 
Porque, como também escreveu: Às vezes, no fundo das páginas onde jazem e amarelecem, algo parecido com uma réstea de vida (será alguma misteriosa forma de alma, terão as crónicas alma?) nelas continua a pulsar.
 Aqui no Marcas faremos prova disso. Durante as próximas semanas tentaremos, diariamente, dar a conhecer a alma e o pulsar das Crónicas do Poeta.
Vai fazer-nos bem a todos.

23 outubro 2012

No rasto da tristeza


Há coisas tristíssimas
Um pássaro num ramo seco de árvore
O ramo sem peso
O homem pobre passa  e sopra
Diz
 - o  cabrão  fugiu –

 As  coisas  tristes voam sem grau
 O  tempo não tem distinção
 Chove na luz  do lodão
 Um outono fraco e vil de ruído

 Há uma dor tão fina
 Sem  saudação e olhos  
 Como o pássaro  sem peso  
 No sopro do homem à passagem

 Hoje à  tarde não esperei a folha caída da árvore
 O  homem adiante caminha desde ontem  
 Vai  a  soprar  o ar da fome escondida
  E  diz em frente da  loja do chinês
  Aqui  há de tudo

 Já  cortaram o ramo seco do lodão sem o pássaro
 E  o homem  vai  lá  a frente  e diz
 _o  cabrão  fugiu - 
Do nosso Luís Darocha:



22 outubro 2012

Não é Escritor Quem Quer



...e a minha mãe a tremer com mais força, assoando-se por engano à minha saia, não à dela   e, para ser honesta, até me agradou, operaram-me um peito, que se assoasse em mim, não vou para o estrangeiro, não vos deixo, as palmas na minha cara, o nariz quase encostado ao meu, os olhos, assim tão perto, só um, comigo curiosa, um peito

- É castanho ou preto?

o meu pai amansava o homem dos refrigerantes com uma garrafa, ambos sentados no degrau da cozinha onde se escutava o mar, o crucifixo no espelho retrovisor, abalado, dançaricava ainda, um peito e a axila, disfarço o soutien com um enchumaço que se desprende e eu a corrigi-lo, de cotovelo erguido, por cima da roupa, a minha mãe dois olhos de novo, castanhos, o meu irmão mais velho a examinar as ondas que de quando em quando se esquecem e recomeçam, culpadas

- Perdoem

para além dos arbustos, das casas, a anestesista, e eu nua e consciente que nua debaixo do lençol, não vou estender-me sobre isso

- É alérgica a alguma coisa?

não por senhora doutora, qualquer pessoa nua você, arrumei os búzios, comi uma bolacha que me soube a pó, teria podido conhecer a Tunísia e sacrifiquei-lhes a Tunísia, a ordem dos búzios errada na mesa e eu a trocá-los sem achar as posições, que eu saiba não sou alérgica a não ser, que eu saiba não sou alérgica, a minha mãe de feições ainda ao acaso....

António Lobo Antunes, Não é Meia Noite Quem Quer, 2012

Pintura de Mark Rothko, aqui

Entre uma sexta feira e o domingo seguinte, uma mulher de 52 anos, que teve um cancro da mama, perdeu um filho e vive um casamento falhado, despede-se da casa de praia da família, num longo adeus em que revive a infância, as amizades e os amores, num desconsolo sem fim, onde se cruzam personagens e vozes riquíssimas, como o irmão não surdo que vem louco da guerra, o pai que lhe chama sempre "menina," ou a mãe constantemente enraivecida com a vida. 
Por mim, reconciliei-me com A Lobo Antunes de quem andava distante desde o Fado Alexandrino e só lia as Crónicas. Este é um fantástico romance.

18 outubro 2012

Grito mudo

Amanda Todd (Canadá, 1996-2012)


Quantas mais haverá por aí, num grito mudo, pedindo ajuda?
(Filme "City of Angels"; Sarah Mclachlan - Angel) 


14 outubro 2012

Ian McEwan


Antes de ser um escritor, McEwan era um leitor apaixonado ( entrevista Ipsilon, 5 Out).
Informação preciosa para se entender o seu fascínio por conduzir o leitor em caminhos apaixonantes, numa leitura que se torna imparável.
A consciência que tem "dos inúmeros romances que todos começamos a ler e não acabamos" (Ipsilon), leva-o a ser capaz de uma clareza e de uma intensidade narrativa absolutamente únicas.
Um romance imperdível, pois.

13 outubro 2012

Cultura e Resistência

Chegam sozinhos ou em grupo, como gotas enchendo um caudal a desaguar na Praça.
Alegres, risonhos, festivos são, sobretudo, cultos. Bonitos, claro.
A emoção, a pressa e a impaciência dominam a cabeça e os corações dos que sentem que agora é que é e o sol outonal brilha no olhar dos que trilham carreiros conhecidos.
Enquanto o sol se põe, irão, juntos, saltar, dançar, aplaudir e cantar. Brilham sonhos nas pontas dos cigarros que acendem uns nos outros, enquanto vão descobrindo a música e as palavras que entram devagar na pele e na noite.

07 outubro 2012

Para o P.

























    *


Lembra-te


Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos

Mário Cesariny, in Pena Capital

* da banda sonora do filme (de ontem) Até que o fim do mundo nos separe

03 outubro 2012

O peso da(s) sombra(s)

                




















A Razão Platónica

Há uma doutrina da caverna que consiste em
separar a luz da sombra. Dizem que, para os que
vivem na caverna, a luz é um sonho porque só
conhecem a sombra. Mas, dizem outros, como é
que se pode saber que a luz existe quando nunca
se saiu da sombra? Os teólogos, porém, acrescentam
a estas dúvidas que também o homem, que
nunca conviveu com os deuses, os pôde
imaginar à sua imagem e semelhança; e é
por isso, acrescentam, que a luz surgiu quando
o homem a criou à semelhança da sombra. Isto,
porém, nada tem a ver com a realidade. Quando
o dia nasce, vemos a luz que surge no horizonte em
que o sol se anuncia; e aquilo que era a sombra
que habita a noite dissipa-se quando o céu
se torna azul. Mas os que acreditam na caverna
voltam as costas à realidade; e quando o dia nasce
põem-se à sombra, tapando os olhos à luz,
para concluir que a razão é única,
e o mundo a sua caverna.

in Nuno Júdice, Fórmulas de uma luz inexplicável (poema dedicado a Eugénio Lisboa)

Foto: C.