28 fevereiro 2011

Na Praça Tahrir, praticando a tolerância


Na praça Tahrir nem todos rezavam. Fazia-o quem queria, o que nunca foi a maior parte dos milhares de manifestantes. Há muitos egípcios muçulmanos que, cinco vezes por dia, fazem as orações prescritas pelo Corão. Quer estejam na praça Tahrir, quer noutro lugar qualquer. Outros egípcios muçulmanos só fazem as orações à sexta-feira, outros fazem-nas raramente, outros não as fazem nunca.
Não sei quais são as percentagens de uns e outros, nem a relação desses números com a classe social de cada um, a idade ou a região de onde provêm. Também não sei qual é a percentagem de portugueses que reza antes do deitar, e se isso depende da classe, idade ou região. Também ignoro se há estudos rigorosos sobre o número de portugueses que, nos anos 50, rezavam antes de dormir e de comer. E, desses, quantos ainda o fazem. E se os seu filhos o fazem. E os netos.
Também não sei qual é a percentagem de cidadãos dos EUA que rezam. E a dos que têm uma Bíblia à cabeceira, e a dos frequentam bruxos, videntes e "psíquicos". Já agora, também não sei o número de portugueses que o fazem.
Perdi a conta ao número de séculos durante os quais os padres cristãos impuseram às pessoas padrões de comportamento. Aliás, não sei bem quando deixaram de o fazer, nem o que ainda fariam se os deixassem.
Não sei quem disse aos muçulmanos que os judeus eram perversos, que o Ocidente conspira, as mulheres devem obedecer aos homens e os não-crentes são seres inferiores. Também não contei quantos milhões pereceram às mãos dos cristãos por serem infiéis, nem quantas mulheres da Cristandade nasceram e morreram sem terem tido vida.
Não investiguei se alguém violou uma jornalista americana na praça Tahrir, ou noutra qualquer praça ou rua do Cairo ou de Aveiro. Nem se o violador apoiava o não Mubarak, era devoto de Maomé ou da Virgem de Fátima, votava no PSD ou no Bloco. Em nenhum dos casos concluiria que a base de apoio do PSD são os violadores, que os bloquistas são frustrados sexuais ou que a vocação dos católicos é estuprar mulheres estrangeiras.
Não sei se há mais crime no mundo islâmico, judaico, cristão ou hindu, nem se há mais frustrações sexuais nos países do Norte ou do Sul, se há relação entre culpa e prosperidade económica, nem se a violência é mais própria dos climas quentes ou frios, ou a indolência directa ou inversamente proporcional à distância da praia.
O que eu sei é que na praça Tahrir nem todos rezavam. Sei, porque estive lá durante 21 dias seguidos. À hora da oração, organizava-se um cordão humano, de mãos dadas, para dar espaço a quem queria rezar. Faziam-no em conjunto, como é hábito entre os muçulmanos. Mas bastava olhar para o lado para ver a multidão que continuava de pé, a conversar. E também os grupos de cristãos que oravam juntos. Era assim, por mais que isto desoriente, incomode e fira a narrativa racista.
É admirável a capacidade humana de construir narrativas. Mas ainda mais a sua aptidão para as rasgar quando já não lhe servem. Leva tempo, porque a História mental é de longa duração. Mas não há nenhuma prova de que as civilizações árabe e muçulmana sejam incompatíveis com a democracia. Não há nada nos árabes e muçulmanos - nem a História, nem a tradição, a geografia, os textos sagrados ou o genoma - que os impeça de serem livres. O único impedimento seria não quererem, e a única ajuda que o Ocidente lhes pode dar é acreditar neles.

Paulo Moura, Em Tahrir nem todos rezavam, AQUI
Foto: C.

20 fevereiro 2011

Hereafter


O último filme de Clint Eastwood  (Hereafter) cruza três histórias de gente comum na sua relação com a perda, a morte e a possibilidade de existir alguma coisa depois do fim da vida.
Impressiona neste filme a forma séria e equilibrada com que Clint Eastwood aborda um tema que não é fácil de tratar em cinema, mas marca o espectador, uma vez mais, a sua genial direcção de actores.
Os irmãos Frankie e George MacLaren (Jason e Marcus) são duas presenças centrais na narrativa e conseguem  interpretações excepcionais em crianças sem qualquer experiência prévia de cinema. As suas personagens são marcadas por uma rara intensidade dramática que prende o espectador, e constituem um ponto alto de representação.
Ao realizador e à sua inesgotável mestria o ficam a dever.

16 fevereiro 2011

O peso escandaloso da insensibilidade

Velhos, ó meus queridos velhos, saltem-me para os joelhos: vamos brincar?
ALEXANDRE O'NEILL

O número perturbador de velhos portugueses que morreram sós, e estiveram anos sem ninguém disso dar conta, permitiu uma série de piedosas declarações. A "atomização da sociedade", de que falou, admiravelmente, Simone de Beauvoir, num ensaio esquecido mas não datado [La Vieillesse], facilitou o sistema em que sobrevivemos, e que "confina com a barbárie."
Os nossos velhos pagam, amarga e dolorosamente, as nevroses das suas infâncias e as consequências das suas vidas frustradas, esmagadas, irrealizadas e aceitas com a resignação de quem foi alienado para consentir o inevitável declínio. A velhice, tal como as sociedades modernas a tratam, é uma questão de anomalia política, uma mutilação. Podíamos, talvez, atenuar essa violência, essa desolação social, com um pouco de compaixão.
Porém, autorizámos que nos esburacassem os sentimentos. Reparem: deixámo-nos de nos cruzar uns com os outros: simplesmente, atravessamo-nos; afastámo-nos da cordialidade, expulsámo-nos dos laços que nos uniam e justificavam como seres humanos e como comunidade. O nosso coração está oco.
Um país que abandona assim os seus velhos, que assim deixa morrer os seus velhos, é um sítio sem memória, um vácuo no vácuo. Um local inóspito que perdeu a ligação do espiritual e foi ocupado pela desordem estabelecida. Mas os sobressaltos de emoção são momentâneos. A dialéctica da Imprensa impede a durabilidade das nossas indignações, já de si muito ténues e muito frágeis. Os velhos mortos na solidão de todas as mortes serão substituídos pela inclemência da eterna actualidade. Morrem e passam a número. A dissolução do humano assimilou os nossos mais pequenos gestos, as nossas mais escassas fraternidades. A vulgaridade dos factos torna-se banalidade. Chega a ser indecoroso o lado mau da vida que os jornais expõem. Mas é assim. E o que assim é tem muito peso. O peso escandaloso da insensibilidade.
Os nossos velhos não estão, apenas, a morrer nas suas casas geladas de calor humano. Estão a morrer nos jardins, sentados na distância de já haverem perdido o pessoal sentido de identidade. O tempo flui neles e sobre eles, e já lhes não interessa, sequer, a desolação do seu fim de vida. Estão a morrer em caixotes horrendos, os paióis para onde são despejados como inutilidades que se desprezam.
E os jornais vão fornecendo números, levando, finalmente, para as primeiras páginas, aqueles que sempre as tinham merecido. Não gostamos dos nossos velhos. Abandonamo-los nos hospitais, rasuramos da nossa memória os seus afagos de pais e avós, as atenções que nos concederam, o amor que nos ofereceram sem contingências.
Que estamos a fazer a nós próprios?

Baptista Bastos, AQUI

Quadro: Lucian Freud





13 fevereiro 2011

Oui Non

... a fotografia é uma celebração do mundo, a perseguição de um puro prazer estético, a exaustiva pesquisa da essência das coisas, a misteriosa transferência para as suas imagens do que constitui o foro íntimo do fotógrafo: os seus sonhos, fantasmas, receios, pulsões, esperanças, recordações.

 Gérard Castello-Lopes



“Oui Non” é o título da exposição de fotografias de Gérard Castello-Lopes, patente no CCB até 25 de Abril.

11 fevereiro 2011

تعيش مصر حرة

الشعر في الشارع                                        

10 fevereiro 2011

Victoria, a bebé dos fios azuis



...Perante a revelação da minha verdadeira identidade, tive de aprender pouco a pouco a aceitar uma nova história, uma nova família e novas origens. E durante essa aprendizagem, senti-me muitas vezes paralizada, forçando-me a rejeitar subitamente uma parte das minhas ideias e da minha própria pessoa. Este processo alcançou o seu ponto culminante em 2007 e acabou por me permitir resolver as minhas contradições e aceitar todo o meu percurso passado: o bem e o mal, a verdade e a mentira. Sou um produto da ditadura, mas sou também o produto do carinho que Raúl e Gaciela me souberam dar. Reconheço-me neles tanto como em Cori e no "Cabo", os quais sinto que amo, apesar de nunca os ter conhecido. Não sou menos a sobrinha do antigo chefe dos serviços de informação da ESMA, o assassino do seu irmão e da sua cunhada, do que a adolescente extasiada diante dos Caballeros de la Quema. Assim, não sou menos Analía do que Victória..

Victoria Donda, O Meu Nome é Victoria, Editorial Bizâncio, 2011

Victoria Donda é hoje a mais jovem deputada da Argentina. Nasceu durante a ditadura militar, em 1977, em Buenos Aires no centro de detenção clandestino da Escola Superior de Mecânica da Marinha (ESMA).
Como outras centenas de bébés, Victória foi retirada à mãe pouco depois de nascer. 
A mãe, Cori, antes da filha lhe ser roubada, coseu-lhe dois fios azuis nas orelhas para que pudesse ser identificada como a sua filha. Este gesto foi, depois, essencial para a descoberta do percurso seguido pela menina.
Cori foi mais tarde lançada (viva) de um avião  com outros companheiros no rio de La Plata. O pai teve o mesmo destino, ambos denunciados e, provavelmente, executados  sob responsabilidade de um seu irmão.
Aos 27 anos, Victoria descobre, através da organização das Avós da Praça de Maio, que Analía é o nome que a família a quem foi entregue lhe deu na sequência do assassínio da mãe. Raúl, o "pai", é um torcionário da polícia.

O livro, é um relato intenso do colapso brutal da vida de Victória / Analía e da necessidade de reconstruir toda a sua história e identidade. Escrito com uma autenticidade e uma maturidade que impressiona pela lucidez, Victoria Donda elabora uma narrativa que nos agarra na primeira página e onde está presente a história da Argentina desde os anos 70 até aos nossos dias. Nele estão retratados os actores essenciais do seu percurso pessoal e, de forma mais ampla, os responsáveis pelos caminhos do país nos últimos 30 anos.
Um livro que nos revela o combate heróico duma geração torturada e assassinada, e nos ensina como o ódio e a indignidade em que se alicerçam as ditaduras existe e germina dentro de gente capaz de tudo no combate aos seus adversários.

07 fevereiro 2011

Uma boa semana para todos


Já à venda por aí, o último de Cristina Branco, num cruzamento de referências musicais que vão de Amália a Jacques Brel, das Milongas aos Boleros e mesmo a Baudelaire, acompanhadas pelo contrabaixo, o piano e ,claro, a guitarra portuguesa. Um triângulo "amoroso" entre Buenos Aires, Paris e Lisboa.
Enjoy it!

04 fevereiro 2011

Os Meses Anteriores


LUIS EDUARDO DE ABREU E LIMA RAMOS

Nasceu em Coimbra em 1950. Viveu a infância e juventude no Caramulo e depois em Aveiro.
É Engenheiro Químico e doutorado em Química. Enquanto estudante, fez parte da direcção-geral da Associação Académica de Coimbra (1970-1971) e da direcção da Associação de Estudantes do Instituto Superior Técnico (1972-1974). É actualmente professor do Instituto Piaget.
Tem visto algumas histórias curtas da sua autoria premiadas em diversos concursos (“Palavras”, RDP Antena 2, 1996; concurso “Semanas Portuguesas”, revista DNA, 2001; História Devida, RDP e Jornal “Público”, 2008, entre outras).
Esta é a sua primeira incursão na área do romance.

Este livro, "Os Meses Anteriores", será apresentado sábado, dia 5, na LIVRARIA MiNERVA, em Coimbra. pelas 17 horas.

Luís Ramos, grande amigo de juventude, faz parte do lado bom da vida, nas opções, na justeza dos princípios, no olhar bondoso mas firme, no entusiasmo.
Sendo um homem de ciência, sempre o vi atento aos acontecimentos da cultura e do desporto.

Estaremos lá, Luis, para te retribuir o abraço.