Na praça Tahrir nem todos rezavam. Fazia-o quem queria, o que nunca foi a maior parte dos milhares de manifestantes. Há muitos egípcios muçulmanos que, cinco vezes por dia, fazem as orações prescritas pelo Corão. Quer estejam na praça Tahrir, quer noutro lugar qualquer. Outros egípcios muçulmanos só fazem as orações à sexta-feira, outros fazem-nas raramente, outros não as fazem nunca.
Não sei quais são as percentagens de uns e outros, nem a relação desses números com a classe social de cada um, a idade ou a região de onde provêm. Também não sei qual é a percentagem de portugueses que reza antes do deitar, e se isso depende da classe, idade ou região. Também ignoro se há estudos rigorosos sobre o número de portugueses que, nos anos 50, rezavam antes de dormir e de comer. E, desses, quantos ainda o fazem. E se os seu filhos o fazem. E os netos.
Também não sei qual é a percentagem de cidadãos dos EUA que rezam. E a dos que têm uma Bíblia à cabeceira, e a dos frequentam bruxos, videntes e "psíquicos". Já agora, também não sei o número de portugueses que o fazem.
Perdi a conta ao número de séculos durante os quais os padres cristãos impuseram às pessoas padrões de comportamento. Aliás, não sei bem quando deixaram de o fazer, nem o que ainda fariam se os deixassem.
Não sei quem disse aos muçulmanos que os judeus eram perversos, que o Ocidente conspira, as mulheres devem obedecer aos homens e os não-crentes são seres inferiores. Também não contei quantos milhões pereceram às mãos dos cristãos por serem infiéis, nem quantas mulheres da Cristandade nasceram e morreram sem terem tido vida.
Não investiguei se alguém violou uma jornalista americana na praça Tahrir, ou noutra qualquer praça ou rua do Cairo ou de Aveiro. Nem se o violador apoiava o não Mubarak, era devoto de Maomé ou da Virgem de Fátima, votava no PSD ou no Bloco. Em nenhum dos casos concluiria que a base de apoio do PSD são os violadores, que os bloquistas são frustrados sexuais ou que a vocação dos católicos é estuprar mulheres estrangeiras.
Não sei se há mais crime no mundo islâmico, judaico, cristão ou hindu, nem se há mais frustrações sexuais nos países do Norte ou do Sul, se há relação entre culpa e prosperidade económica, nem se a violência é mais própria dos climas quentes ou frios, ou a indolência directa ou inversamente proporcional à distância da praia.
O que eu sei é que na praça Tahrir nem todos rezavam. Sei, porque estive lá durante 21 dias seguidos. À hora da oração, organizava-se um cordão humano, de mãos dadas, para dar espaço a quem queria rezar. Faziam-no em conjunto, como é hábito entre os muçulmanos. Mas bastava olhar para o lado para ver a multidão que continuava de pé, a conversar. E também os grupos de cristãos que oravam juntos. Era assim, por mais que isto desoriente, incomode e fira a narrativa racista.
É admirável a capacidade humana de construir narrativas. Mas ainda mais a sua aptidão para as rasgar quando já não lhe servem. Leva tempo, porque a História mental é de longa duração. Mas não há nenhuma prova de que as civilizações árabe e muçulmana sejam incompatíveis com a democracia. Não há nada nos árabes e muçulmanos - nem a História, nem a tradição, a geografia, os textos sagrados ou o genoma - que os impeça de serem livres. O único impedimento seria não quererem, e a única ajuda que o Ocidente lhes pode dar é acreditar neles.
Paulo Moura, Em Tahrir nem todos rezavam, AQUI
Foto: C.