30 janeiro 2011

Uma canção, uma geração e a mudança que aí vem...



Sou da geração sem remuneração
e não me incomoda esta condição.
Que parva que eu sou!
Porque isto está mal e vai continuar,
já é uma sorte eu poder estagiar.
Que parva que eu sou!
E fico a pensar,
que mundo tão parvo
onde para ser escravo é preciso estudar.


Sou da geração ‘casinha dos pais’,
se já tenho tudo, pra quê querer mais?
Que parva que eu sou
Filhos, maridos, estou sempre a adiar
e ainda me falta o carro pagar
Que parva que eu sou!
E fico a pensar,
que mundo tão parvo
onde para ser escravo é preciso estudar.


Sou da geração ‘vou queixar-me pra quê?’
Há alguém bem pior do que eu na TV.
Que parva que eu sou!
Sou da geração ‘eu já não posso mais!’
que esta situação dura há tempo demais
E parva não sou!
E fico a pensar,
que mundo tão parvo
onde para ser escravo é preciso estudar.

29 janeiro 2011

Cairo


A injustiça avança hoje a passo firme
Os tiranos fazem planos para dez mil anos
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são
Nenhuma voz além da dos que mandam
E em todos os mercados proclama a exploração;
isto é apenas o meu começo


Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem
Aquilo que nós queremos nunca mais o alcançaremos


Quem ainda está vivo não diga: nunca
O que é seguro não é seguro
As coisas não continuarão a ser como são
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados
Quem pois ousa dizer: nunca
De quem depende que a opressão prossiga? De nós
De quem depende que ela acabe? Também de nós
O que é esmagado que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aí que o retenha
E nunca será: ainda hoje
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã

Bertold Brecht, Elogio da Dialética
Foto: C.

26 janeiro 2011

As verdades que nunca te direi (ou já disse mas eram mentira)


«- É no entanto espantoso que a verdade não entre pelos olhos dentro de todos os homens!

- Desengana-te. A verdade é conhecida de toda a gente, mas uma coisa conhecida de toda a gente não possui nenhum valor de troca. Estás a ver patifes que controlam a informação a vender verdades… Na melhor das hipóteses, toda a gente se ria deles. Por uma razão bem simples. A verdade não tem nenhum futuro, ao passo que a mentira é portadora de grandes esperanças.»


Albert Cossery, As cores da infâmia, (Tradução de Ernesto Sampaio), Antígona, (pp. 101-102).

O ordenhador maravilhado


"fiquei surpreendidissimo... por ver como... as vacas avançavam... uma atrás das outras... se encostavam a um robô... e se sentiam deliciadas, enquanto ele, durante cerca de seis, sete minutos... realizava a ordenha."

Era previsível, claro. Cerca de 53%  da manada deliciou-se com o presidente a que tinha direito. Em rigor, bem podem dizer "ele é mesmo a nossa cara!".
Nesta quinta, onde a ordenha está mais do que maquinada, quaisquer sete minutos chegam para acalmar as reses. Dai-lhes senhor o que merecem, porque deles é o reino de Aníbal.

24 janeiro 2011

Agora

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro

Ruy Belo (1933-1978)

18 janeiro 2011

A 1400 metros de altitude


O barulho das aves selvagens, que roçam pela carlinga, desperta-me do torpor da viagem. Por instantes apoio-me na cadeira, olho em volta e volto a adormecer, sem dar pelos temporais de areia e sangue que arrastam a aeronave.
De vez em quando vejo uma aldeia, de noite, iluminada por grandes fogueiras. Abro a escotilha e grito:
- Deus chegou! Deus chegou!
Sem ter a certeza de que me ouçam. No entanto, faz-se em toda a terra um silêncio, e ouço distintamente o barulho das asas da Morte.

Nuno Júdice, A Noção de Poema, 1972

12 janeiro 2011


Pouso a minha mão no lençol, impecavelmente esticado, junto à da minha mãe. Estão cuidadas as duas, mas a dela agora despida dos adereços que sempre lhe enfeitaram os dedos. “Desgosta-me que não uses, filha, ninguém os vai herdar”.
Assim pousadas, as nossas mãos tão idênticas parecem saídas dos braços duma mesma mulher, direita e esquerda.
Olhando com atenção, há uma que mantém, elevada, uma pequena prega do lençol branco, ondulando entre o indicador e o polegar, num tremor fino. É a dela, adormecida.
A coluna de luz jorra da persiana em pequenos raios tangentes ao bordo da cama até se perder no chão. Não toca as nossas mãos que ficam na penumbra do quarto branco e asséptico.
Sinto a minha mão na carícia suave do lençol lavado, impressão antiquíssima e, se fecho os olhos, vejo-a, infantil, fechada na outra, protectora, que a segura e conduz na manhã fria até à sala das letras e dos números cantados. “Agora vens todos os dias para esta sala”.
Há um sabor conhecido na memória que guardo depois dessa manhã, tantas foram depois as vezes que a minha mão encontrou abrigos naquela concha.
Hoje, é uma ínfima mudança do brilho da luz que conduz a minha mão, contraída, de novo adulta, até àquela, antes enseada e amparo, que agora naufraga no ocaso dos anos.


09 janeiro 2011

Votaria...se...


Depois de ver isto, poderia até ficar optimista em que conseguiríamos fazer do mundo um local mais habitável, mais justo e mais pacífico. Mas tenho conjugado, há muito, os verbos no condicional, sem qualquer alternativa para o segundo termo da condição: conseguiríamos se... quê? Se... quem?

Verdade, Amor, Razão, Merecimento
Qualquer alma farão segura e forte

«Ah, Camões, grande Camões», que tão mal conjugas hoje os verbos no futuro!

04 janeiro 2011

Carta a Vanessa


As caras são enigmas, não falam dos corações, sei disso. Mas eu, mal olhei para ti no café, vi-te a alma toda, Vanessa.
Alguns olhares que me devolves passam por cima da vozearia, contornam o empregado de pano seboso ao ombro, flutuam nos reformados do dominó, ignoram a minha calvice cruzada com a cascata de gordura sobre o cinto e despenham-se no meu peito aberto, ali mesmo, por entre os pêlos e o cordão de ouro com a plaquinha bem visível: Amor de Mãe.
Dos meus lábios saem palavras distraídas para os colegas de mesa, mas é para ti que viro o melhor sorriso, temperado com um tranquilizante recato, banhado na languidez do olhar e apimentado com o meu infalível toque na melena.
Percorro-te à chegada, quando fazes caminho entre as mesas e o balcão, sei-te de cor depois destes meses e sonho a entrega da tua alma nas minhas mãos, incendiada com a intensidade rubra da fita que te prende o cabelo e que já conheci despenteado, molhado, arrepanhado ou preso em rabo-de-cavalo saltitante como hoje.
Tomas café como se beijasses a chávena, indiferente aos empregados que marcam com os pés a camurça das tuas botas no afã de teclarem a registadora.
Quando planas o olhar pelas mesas, sem o deteres em mim, nem me sugerir, num tão ansiado gesto de cabeça, um encontro, ali ou algures para lá da porta, aguo como um cachorro de leite.
O teu deslizar para a saída planta vazios nos olhares dos bronquíticos da sueca, que se especam, de caras paradas, na indiferença das tuas costas.
O teu porte transpira intangibilidade, mas eu não desanimo, porque ouço com nitidez a voz da minha santa mãe – “filho, quem não se regista, não petisca”- pairando acima do som estridente da tv, sussurrando-me insistentemente que a sorte protege os vorazes e, por isso, nós ainda vamos ser felizes, Vanessa.