30 novembro 2010

Pessoa(s)














              (13/06/1888 - 30/11/1935)


O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.

Alberto Caeiro, Poema XLVI (excerto), in Poemas, Ática, 1970
Foto daqui

28 novembro 2010

Conflitos da Modernidade

Sabe-se desde Durkheim que o casamento prejudica as mulheres e beneficia os homens. Um século mais tarde, devemos acrescentar alguns matizes a esta afirmação, mas a injustiça doméstica subsiste: a vida conjugal tem sempre um custo social e cultural para as mulheres, tanto na partilha das tarefas domésticas e na educação das crianças, como na evolução das suas carreiras profissionais e na remuneração. Hoje, mais do que o casamento, que perdeu o seu carácter  de necessidade, é a vida a dois e sobretudo o nascimento da criança que pesa sobre as mulheres. A união de facto, muito vulgarizada, não pôs fim à desigualdade doméstica ainda que os inquéritos demonstrem que é mais favorável ao  casamento. Pelo menos no início da vida a dois, porque a chegada de um filho aumenta muito as horas domésticas da mulher, enquanto o homem, como pai, se dedica mais à profissão. Segundo F. de Singly. " a dimensão do trabalho doméstico - e a sua justificação - resulta menos das necessidades dos homens do que das exigências, supostas ou não, das crianças. A saída de casa dos filhos demonstra de modo quase experimental que o custo da vida conjugal deriva em grande parte do custo dos filhos".
É verdade que quanto mais qualificadas são as mulheres, menos trabalhos domésticos fazem e mais trabalho profissional têm, sem que por isso  o companheiro trabalhe mais em casa.
O capital escolar da mulher, nota François de Singly, serve antes de mais para recorrer a serviços exteriores à família, situação a que não se podem permitir as mães menos dotadas que têm uma actividade profissional. Daí, esta observação do sociólogo que não deixa de ter reflexos sobre a maternidade: " A revolução dos costumes aproximou os homens e as mulheres mais qualificados ao mesmo tempo que afastou estas mulheres das ooutras menos qualificadas". Enquanto as primeiras tendem a investir mais no seu trabalho, ao ponto de por vezes renunciarem à maternidade, as segundas fazem a escolha contrária sobretudo quando o trabalho é raro e mal pago! A desigualdade social que se junta à dos géneros tem uma influência enorme no desejo de ter filhos.

Elizabeth Badinter, O Conflito a Mulher e a Mãe, Relógio D'Água, 2010
Pintura Jusepe de Ribera

25 novembro 2010

Honrados com a distinção


Fiquei então a saber que «O Prémio Dardos é o reconhecimento dos ideais que cada bloguista emprega na transmitissão de valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc... que em suma, demonstram a sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre as suas letras, e as suas palavras. Esses selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre os blogueiros, uma forma de demonstrar o carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à Web».

Muito reconhecidos estamos à Austeriana, do blogue Bicho Carpinteiro, e à Ana Paula, do Catharsis, por tão gentilmente nos terem distinguido desta forma. É uma cumplicidade saborosa, a da partilha deste prémio. A verdade seja dita: cá "por casa", quem tem estado à altura dele é o nosso indefectível Paulo, aqui sempre de pé firme, sem desanimar. Aquilo é que é uma disciplina! As outras duas blogueiras bem terão de fazer por merecê-lo.

O prémio Dardos requer o cumprimento de algumas regras, a saber:

- Exibir a imagem do Selo no blogue;
- Revelar o link do blogue que atribuiu o Prémio;
- Escolher 10, 15 ou 30 blogues para premiar.

Assim, nomearemos de seguida 10 lugares que, entre outros, e seguramente tão merecedores quanto estes, vão enriquecendo este largo espaço virtual. 











O nosso obrigado a todos quantos nos têm enriquecido, proporcionando a reflexão através  da sua voz, do seu pensamento, e nos têm deleitado com  a sua arte e imaginação.

19 novembro 2010

A cara do chefe

Lideramos, implantamos, penetramos, evoluímos, massificamos, impulsionamos,substituímos as redes de cobre, penetramos mais, desenvolvemos, não sei quê do sucesso, mais sector competitivo, mais a nova agenda digital, penetramos outra vez, o impulso, as metas, o digital (e o manual), a liberalização e o novo mundo.... 

 Eh pá, e fazemos, - todas e todos - a partir de agora, o mesmo discurso (literalmente).
Não dá chatice nenhuma e assim como assim, já ninguém ouve. Não faltará muito para se instituir um único texto para todas as ocasiões (inaugurações, simpósios, prós e contras, e outros).É só mudar as datas.
AQUI

15 novembro 2010

A vida sonhada


O homem que cavalga longamente por terrenos bravios sente o desejo de uma cidade. Finalmente chega a Isidora, cidade onde os prédios têm escadas de caracol incrustadas de búzios marinhos, onde se fabricam artísticos óculos e violinos, onde quando o forasteiro está indeciso entre duas mulheres encontra sempre uma terceira, onde as lutas de galos degeneram em brigas sangrentas entre os apostantes. Era em todas estas coisas que ele pensava quando desejava uma cidade. Assim Isidora é a cidade dos seus sonhos: com uma diferença. A vida sonhada continha-o jovem; a Isidora chega em idade tardia. Na praça há um paredão dos velhos que vêem passar a juventude; ele está sentado em fila com eles. Os desejos são já recordações.

Italo Calvino, As Cidades Invisíveis
Pintura: De Chirico

12 novembro 2010

Chamando os aníbais pelos nomes

Na semana que passou, o candidato Cavaco desperdiçou uma bela oportunidade para não alardear o estilo viscoso e rasteiro do seu eleitoralismo. Como um abutre salivando por carniça, despejou no «twitter» resumo do que extraiu do debate parlamentar sobre o Orçamento: «Vejo com muita apreensão o desprestígio da classe política e a impaciência com que os cidadãos assistem a alguns debates.»
Com uma só bicada, ensacou por junto todos os partidos e deputados que intervieram no debate, quando, em rigor só lhe seria legítimo verberar os que ele, Cavaco, tanto se esforçou por amigar: o PS/Governo e o PSD/Belém. CDS, PCP, Bloco de Esquerda e Verdes produziram intervenções dignas e pensadas, chegando mesmo a reprovar o desmando argumentativo do Arrufo Central. Mereciam ser excepcionados e louvados pelo dito magistrado de influência, mas como o pensamento deste voa tão alto como um crocodilo, lá ficaram na roda de serem todos iguais. Só ele, o apreensivo, não.
Ele, que tanto prestigiou a política envolvendo-se na mais velhaca urdidura que jamais um Presidente se tinha permitido, ao fazer soprar suspeitas de escutas do Governo sobre Belém, e isto DEZASSEIS meses antes de ter ocorrido o episódio do Estatuto dos Açores, que os sabujanalistas do costume dizem ter sido o momento da ruptura com Sócrates, o único vilão.
Ele, que tanto prestigiou Portugal quando o ferrabrás de Praga, Vaclav Klaus, fez estentórica chacota da gestão lusa do défice e Cavaco só encontrou, para resposta, uma saída de poltrão: que não tinha responsabilidades governativas.
Ele, que se gabou de nunca ter sido tão lesto a promulgar como na nacionalização do BPN - e nunca saberemos se o fez por um tremendo imperativo nacional ou se pela térrea preocupação de pôr a salvo cabedais que ali deixara a levedar.
Ele, que recomenda que se explique ao povo os sacrifícios que lhe são pedidos mas que nunca teve a lembrança de dar uma aula prática de fidalguia e recusar a pilha de reformas com que se aboleta, desprezando o exemplo de Ramalho Eanes. Veremos se, agora que se diz que vai haver lei sobre a matéria, a promulgará tão asinha e alegremente como o fez com a outra...
A rasteira maior foi ter usado o «twitter», uma rede social muito frequentada por jovens, possivelmente os mais carentes de exemplo cívico e de sentido para o seu futuro colectivo, que escusavam de saber que o candidato Cavaco não tem mais filosofia do que um avinagrado motorista de táxi: «São todos iguais.»

Óscar Mascarenhas AQUI

09 novembro 2010

Hiromi Uehara



I love Bach, I love Oscar Peterson, I love Franz Liszt, I love Ahmad Jamal. I also love people like Sly and the Family Stone, Dream Theatre and King Crimson. Also, I'm so much inspired by sports players like Carl Lewis and Michael Jordan. Basically, I'm inspired by anyone who has big, big energy. They really come straight to my heart. (Hiromi Uehara)

Hiromi Uehara nasceu em 1979, no Japão.
Aprendeu piano aos 6 anos, com 8 iniciou-se no Jazz e aos 14 tocou com a Orquestra Filarmónica da República Checa. Conheceu Chick Corea por mero acaso, quando tinha 17 anos, em Tóquio. Depois de a ouvir tocar, ele convidou-a para actuar no seu concerto do dia seguinte.
É uma fantástica música, compositora e performer. Completamente original, não é enquadrável em escolas ou correntes.
O clip, que mostra um diálogo musical com Chick Corea, é apenas um esboço do imenso talento de Hiromi, mas permite, também, assistir à imensa grandeza de um "monstro" consagrado da música, como Chick Corea, aqui fascinado com a qualidade da sua jovem parceira.

07 novembro 2010

Jordi Savall

Jordi Savall é um dos músicos mais polivalentes da sua geração. Concertista, pedagogo e um profundo estudioso de Música Antiga, é, também um dos principais artífices da renovação da Música Histórica. Com ele, deu-se a redescoberta da  viola de gamba, que popularizou  e tornou acessível.
A participação que teve no filme de Alain Corneau, Tous les Matins du Monde, onde foi responsável pela banda sonora, representou a chegada da sua música ao grande público.





Há um Concerto de Jordi Savall hoje (7/11),
às 19h, na Fundação Gulbenkian, em Lisboa




05 novembro 2010

Nem o Paleolítico escapa


Na hora de agradar aos mercados, até o Paleolítico precisa de uma gestão "moderna e eficiente.
Enquanto houver genta na fila, o saque dos dinheiros públicos continua. Cortando na Segurança Social, claro e aumentando o leite achocolatado.

...A proposta de estatutos, a que o PÚBLICO teve acesso, prevê que o Ministério da Cultura (MC) nomeie o presidente do conselho de administração, que os ministérios da Economia, Finanças e Ambiente, e ainda a Câmara de Foz Côa, indiquem um administrador cada um, e que a escolha dos restantes dois fique a cargo do conselho geral da fundação. AQUI

03 novembro 2010

A espera

Esperei trinta e cinco anos por este dia. Nunca o toque a finados me tinha alegrado tanto. O filho da puta morreu. Até já parecia que a morte se havia esquecido dele. Não que ele me tenha feito qualquer mal. Ele apenas casou, sem o saber, com a mulher que eu amava.
Estive na Guerra de 14-18 e fui dado como morto. Quando voltei, ela tinha casado e, durante estes anos, contentei-me em vê-la de longe, sabendo que ela esperava por mim, como eu esperava por ela. Vivíamos os dois à espera que ele morresse. Qualquer doença, por simples que fosse, uma constipação, uma gripe, um resfriado, uma tosse, fazia-me rejubilar de esperança. Quando sabia que ele estava doente, dizia para mim próprio: "Será que é desta?" Mas o filho da puta enganava sempre a morte.
O tanger do sino, hoje, apenas veio confirmar aquilo que eu já sabia. Levantei-me e fiz o que faço religiosamente desde há trinta e cinco anos. Abri a gaveta da cómoda para cheirar a rosa seca e delida que ela me ofereceu em tempos, com o compromisso de só casar comigo. Olhei e nem queria acreditar, a flor reverdescera, como se tivesse acabado de ser colhida. Tanto tempo que eu esperei por isto, pensei, sorrindo.
Talvez seja já um pouco tarde, mas a minha mãe dizia-me sempre: "Mais vale tarde do que nunca". Por isso, vesti o fato que tinha comprado havia muito tempo para me casar com ela, calcei os sapatos pretos, pus a gravata, penteei os cabelos e coloquei a rosa na lapela do casaco. Depois, saí de casa, com a certeza de que nessa noite ia dormir com ela.
E foi mesmo isso que aconteceu.

Joaquim Mestre, Breviário das Almas, Oficina do LIvro, 2009