31 dezembro 2010

Exercício de reconhecimento



Cada viajante constrói, das cidades que ama, uma ideia que raramente coincide com a lógica da geografia urbana. Na sua forma de amar uma cidade, desenha percursos, associações imaginárias, mitos instrumentais que o fazem ver fachadas, os monumentos, as praças e as gentes de uma determinada zona como os melhores sinais identificadores do espírito do lugar.

António Mega Ferreira, ROMA, Exercícios de reconhecimento, Sextante Editora, 2010.
Foto: Paulo - Via Frattina, Roma, (9 graus temp.)

27 dezembro 2010

Um dia, a luz do sol afagou pela última vez as roseiras


... Esta conta não pagarás:
- ficará sob uma cinza que não sabes.
Sob a cinza que ainda não sabes
ficará teu filho por nascer
e também os meninos que já sabiam desenhar nos muros.


Ficarão os figos que ontem puseste na cesta.
Ficarão as pinturas da tua sala
e as plantas do teu jardim, de estátuas felizes,
sob a cinza que não sabes.


Os gladiadores anunciados não lutarão
e amanhã não verás, próximo às termas,
a mulher que desejavas...

Tu ficarás com a chave da tua porta na mão;

tu, com o rosto da amada no peito;
amo e servo se unirão, no mesmo grito;
os cães se debaterão com mordaças de lava;
a mão não poderá encontrar a parede;
os olhos não poderão ver a rua.


As cinzas que não sabes voarão sobre Apolo e Ísis.
É uma noite ardente, a que se prepara,
enquanto a luz contorna a coluna e o jato d’água:
- a luz do sol que afaga pela última vez as roseiras verdes.



Cecília Meireles, Presença em Pompeia
Foto: C.

24 dezembro 2010

Natais, bebendo o vinho da alegria

Minha alma debate-se, tentada à tristeza e seus requintes. Meu pai morto não vai repetir este ano: "Nada como um frango com arroz depois da missa". Minha irmã chora porque seu marido é amarradinho com dinheiro e ela queria muito comprar uns festões, uns presentinhos mais regalados, ô vida, e ele acha tudo bobagem e só quer saber de encher a geladeira com mortadela e cerveja.
Talvez, por isto, ou porque me achei velha demais no espelho da loja, sinto dificuldades em ajudar Corália. Queria muito chorar, deveras estou chorando, às vésperas do nascimento do Senhor, eu que estremeço recém-nascidos. Estou achando o mundo triste, querendo pai e mãe, eu também. Corália disse: você é tão criativa! E sou mesmo, poderia inventar agora um sofrimento tão insuportável que murcharia tudo à minha volta. Mas não quero. E ainda que quisesse, por destino, não posso.
Este musgo entre as pedras não consente, é muito verde. E esta areia. São bonitos demais! À meia-noite o Menino vem, à meia-noite em ponto. Forro o cocho de palha. Ele vem, as coisas sabem, pois estão pulsando, os carneiros de gesso, a estrela de purpurina, a lagoa feita de espelhos. Vou fazer as guirlandas para Corália enfeitar sua loja. A radiação da "luz que não fere os olhos" abre caminho entre escombros, avança imperceptível e os brutos, até os brutos, banhados. Desfoco um pouco o olhar e lá está o halo, a expectante claridade, em Corália, em Joana com seu marido e em mim, também em mim que escolho beber o vinho da alegria, porque deste lugar, onde "o leão come a palha com o boi", esta certeza me toma: "um menino pequeno nos conduzirá".

Adélia Prado, No Presépio
Imagem: Caravaggio, Adoração (fragmento)




22 dezembro 2010

As time goes by


A minha primeira prenda de Natal: o tema do inesquecível Casablanca, na voz de Caryl Simon. Oferecido gentilmente por esta amiga da "blogga", como ela diz. Obrigada, mais uma vez.

18 dezembro 2010

15 dezembro 2010

A luz do sonho


 Esta noite o sonho voltou.
Nisto de sonhos sou pouco versado, sei que há os bons, os pesadelos e os outros, de que nem nos lembramos.
Este de que falo é recorrente nas minhas noites. Não o sei traduzir nem interpretar, sei apenas que me sinto bem nele. Quando acordo, conservo uma desmedida sensação de bem-estar, de conforto e de regresso.
“Chego a casa e está tudo igual. Os aromas, as cores e a luz oblíqua que entra como uma neblina pela varanda e se espalha no soalho encerado. Percebo ali uma espécie de desarrumação morna e colorida onde me sinto bem.
Subo os dois degraus que continuam a ranger e entro na sala onde o pick up de botões de baquelite toca como da última vez. Na mesa está um prato com um resto de pudim de caramelo. Por cima da música, ouço a algazarra familiar dos vizinhos e pela fresta da porta chegam os sons iluminados da cozinha. Não identifico vozes, sinto apenas um intenso aconchego que me faz sorrir, enquanto me viro e pouso as mãos no couro gasto do orelhudo junto à lareira.
 Enquanto a porta se fecha, sento-me no degrau... e apetece-me  guardar este tempo, na redoma dos dias bons”.

12 dezembro 2010

Gosto!


Não conheci a Leopoldina.  Nessa altura ainda não havia CDs e os gravadores Geloso tinham umas bobines que faziam um sussurro irritante ao rodar.
Mas ouvir este conjunto de reinterpretações das nossas músicas infantis é recordar um tempo bom. Algumas estão muito bem conseguidas, outras nem tanto (digo eu), mas experimentem pôr uma criança de dois anos a ouvir e olhem se ela se importa.

Preço: três euros. E um vai para a Missão Sorriso.
Para os Deolinda vão cinco estrelas.

But don't give up!



11 dezembro 2010

A estrela dos reis magos foi despedida.



Fartei-me de rir com este clip excentric(o) e pleno de criatividade.
Não encontrei as barras de ouro na Amazon, mas devem ter sido todas compradas pelos Baltazares que andam por aí, a fazer-nos crer que a crise é de todos. Fiquei a saber que a Maria de Belém, pelos vistos, ficou mais aflita do que Alegre, e que o José vai juntando mais animais naquele jogo do facebook. Não percam e depois rezem, pelo twitter, ao Espírito Santo, para que vos não falte a esperança, nos dias que aí vêm.

Obrigada, mana, por esta pérola.

08 dezembro 2010

Viagem na minha rua

Hoje é uma rua sem trânsito, pedonal, como se diz agora. Não o foi sempre e espanto-me como até ali cabiam imponentes carros que levavam as mães até às janelas, clamando perigos iminentes.
A calçada continua gasta, as pedras redondas ali estão, eternas, mas as portas das casas, para nós inacessíveis, encimando degraus majestosos, têm agora o batente à altura da minha mão.
A rua ficou alheia ao circuito dos meus dias e do meu olhar, mas é ele que me conduz de novo ali, numa viagem de memória. Nela sinto o recordar tumultuoso do cheiro da sopa quente vindo de cozinhas agora secas; lembro os encontros e desencontros com polícias ágeis, perseguidores de bolas e meninos, e hoje velhos asmáticos sem farda nos bancos da praça.
Ao peso da cor daquela experiência, quis até o meu corpo mudar de forma e tom, procurando a impossível transformação do regresso à infantil dimensão que deixasse a rua alargar, os carros buzinarem de novo, os degraus crescerem e as mães serem, outra vez, ouvidas.


06 dezembro 2010

Dizer

                
                  Exercício Espiritual

É Preciso dizer Rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora

Mário Césariny, in Manual de Prestidigitação, Assírio e Alvim, 1981.
Foto: C.

05 dezembro 2010

A magia dos dias

  

...Vivíamos então em Esposende numa pequena casa de praia que comprámos à senhoria, uma senhora não sei se dinamarquesa. Foram quatro anos em que escrevi muito e conheci dias bons com o mundo e comigo mesma. Minha filha estava no colégio interna, meu marido advogava no Porto e saía de tarde, voltando à noite, ficando eu e os gatos numa espécie de encantamento, a ouvir o suspiro do mar. Vinha à porta o carrinho da fruta, e a mulher que vendia dizia: " não sei como se dá nesta pasmaceira". Para ela toda a boa fruta era do Douro, inclusive as bananas. Não passava ninguém na rua, os tamarindos vergavam com o vento. A peixeira Cravelha ensinou-me a tirar a pele às azevias...

Agustina Bessa-Luis, O Livro de Agustina Bressa-Luis, Guerra e Paz, 2007
Música: Erik Satie, Gnossienne nº5 (Reinbert De Leeuw)
Foto: C.

04 dezembro 2010

A aprendizagem do medo


 Conheci o medo assim que dei por que existia. No entanto, adultos debruçavam-se, informando de que "um homem não tem medo".
"E se tiver?", perguntei.
"Nesse caso, não é um homem, é um cobarde".
Cobarde: esta palavra assustava-me, não fosse eu merecê-la. Ao que parece, abundavam na família exemplos de coragem. Tios robustos, socadores. Bisavós remotos, frenéticos de audácias variadas. E eu?
Uma manhã, cruzei-me com outros dois garotos. Inesperadamente, recebo nas feições um bochecho de água volumoso, que um dos rapazes sorvera sabe-se lá aonde. Fez isto e ficou na minha frente, a rir-se. Pensei: esta é a prova. Não encontrei em mim qualquer capacidade de agressão, paralisado que ficara com receio de chumbar, por muito que soubesso de cor o catecismo de como um homem age quando insultado. Pelo que retomei o meu caminho.
Deliberadamente não limpei a cara até chegar a casa. Fui direito ao primeiro espelho, e só pensava: "Sou um cobarde". Fui ver-me ao espelho. Percebo agora como era novíssimo, porque fiquei sinceramente estupefacto ao me reconhecer. Ao perceber que continuava a ser o mesmo. Bom. Cobarde? Porque não?
Depois tive uma outra discussão na praia com outro garoto mais novo mas  mais robusto.
"Prega dois selos se te atreves", disse-me ele. Pregar dois selos consistia em molhar os dedos médio e indicador com saliva, e esfregá-los no rosto do oponente. Era um insulto dos mais graves.
"E se eu não pregar dois selos?", perguntei.
"Então és um cobarde".
Fiquei imóvel. A gozar um sossego interior de maravilha, que se acentuou quando ele pregou dois selos na minha face direita.
"És um cobarde", disse o tipo.
"Eu sei que sou", disse eu. "E tu?" Lembro-me da calma maré baixa desse fim de tarde  como de algumas pequenas grandes coisas que vivi ( as ondas de encontro aos tornozelos, reboladinhas e suaves, como gatos às voltas com pernas de peixeira). Sem perder um átomo dessa paz total, molhei os meus dois dedos na língua com um vagar de ritual. Depois preguei na cara do rapaz, não dois selos, mas uma bofetada colossal. Também nunca mais esquecerei o espanto furioso, bolachudo, daquele rosto, no segundo decorrido entre a estalada e a multidão de socos que acertámos um no outro antes que um guarda fiscal nos separasse chamando-nos selvagens.
Este segundo incidente não veio estragar oa experiência do primeiro, sublinhou-a. Relembro-os ambos como um só passo dos primeiros que me foi dado dar na direcção da inteligência. O que me paralisara da primeira vez fora a dúvida absurda de ser ou não ser. A segunda experiência de confronto foi o que foi porque eu perdera o medo de ter medo. Dali em diante aceitei a possibilidade de ter medo como aceitaria muitas outras coisas naturais (...).

Nuno Bragança, O Tempo e o Modo, Revista de Pensamento e Acção - Antologia,
Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Nacional de Cultura pp. 140-1

Pintura de Gaugin

01 dezembro 2010

Atirem-lhes o O'Neill

O Medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no múrmurio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
Ouvidos nos teus ouvidos
O Medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talveza minha
com a certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes e angustiados


Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O Medo vai ter tudo
que se tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos


Sim
a ratos
(Alexandre O'Neill)

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