31 outubro 2010

Portugal
Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me
sentir como se tivesse oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater
os infiéis ao norte de África
só porque não podia combater a doença que lhe atacava
os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo mentira
Que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
E o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto
Quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera
um futuro de rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos
a ver se contraía a febre do império
mas a única coisa que consegui apanhar
foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encontrar
uma pétala que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Se tivesse dinheiro comprava um império e dava-to
Juro que era capaz de fazer isso só para te ver sorrir
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito
e idiota como tu
mas que tem o coração doce, ainda mais doce
que os pasteis de Tentúgal
e o corpo cheio de pontos negros
para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete
Salazar estava no poder
nada de ressentimentos
O meu irmão esteve na guerra tenho amigos que emigraram
nada de ressentimentos
um dia bebi vinagre
nada de ressentimentos
Portugal depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas
a nado na piscina municipal de Braga
ia agora propor-te um projecto eminentemente nacional
Que fôssemos todos a Ceuta à procura do olho
Que Camões lá deixou
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca

Jorge de Sousa Braga, O Poeta Nú, Ed Fenda, 1991

28 outubro 2010

Os campeões à procura do fumo branco


...Portugal é o país europeu com o maior número de PPP (Parcerias Público-Privadas), quer em relação ao PIB quer em relação ao Orçamento de Estado. Em 2009, o nosso país, cuja população é semelhante à da grande Paris, contratou três vezes mais PPP do que a França e mais ainda do que qualquer outro país da Europa.
Portugal é o campeão europeu das PPP - mas das PPP que afogam os contribuintes em dívidas, em especial os das gerações futuras, como revela a análise caso a caso a que a seguir procedo. Segundo a "League Tables Project Finance International", Portugal aparece distanciado, no topo da lista, com 1.559 mil milhões de euros de empréstimos, seguido de França com 467, da Polónia com 418, da Espanha com 289, da Irlanda com 141 e da Itália com 66 mil milhões.(...)
A partir dos anos 1990, as PPP tornaram-se a regra em Portugal, ao arrepio do que sucedia na generalidade dos países europeus. Tudo o que os governos retiram a partir de então do Orçamento do Estado como investimento público, por força das restrições orçamentais impostas por Bruxelas, passa sistematicamente para investimento privado em regime de PPP.
A habilidade é notória: os responsáveis continuam a mostrar obra, mas não a pagam agora. Agora quem a paga são os privados. A factura para os contribuintes virá depois. No imediato, todos ficam satisfeitos. A União Europeia deixa de se preocupar com o défice e a dívida. Os governantes e os governados aumentam as respectivas expectativas de mais votos e melhor nível de vida. Os parceiros privados fazem excelentes negócios.
O negativo da fotografia não se vê: está reservado para as gerações futuras.
Muito de tal investimento privado passa a ser, não só remunerado pelas receitas geradas pelo próprio projecto, ao longo dos 30 ou 35 anos das concessões, como beneficia igualmente de compensações várias que o concedente público caso a caso negoceia (ou renegoceia) pagar ao concessionário, ao longo da vida do contrato.
E assim sendo, há uma factura que sobra para os contribuintes das gerações vindouras, durante longos anos...

Carlos Moreno, Como o Estado Gasta o Nosso Dinheiro, Edição Leya, 2010

Carlos Moreno é Juiz Jubilado do Tribunal de Contas. No seu livro analisa duas décadas de "despesismo público". Curiosamente, durante  mais de vinte anos fomos conduzidos ao abismo por esta gente que persiste, agora, em nos convencer que a culpa é "dos mercados" e nossa, porque insistimos em "viver acima das nossas possibilidades".
Ou seja, mais de duas décadas de negociatas, enriquecimentos ilícitos, voragem do Aparelho de Estado e do dinheiro dos contribuintes por toda a espécie de oportunistas - como o livro enuncia - não têm responsabilidade no desastre. As grandes causas da caminhada para o abismo estão nos gastos com as reformas, nos salários e no subsídio de aleitamento.
Depois confiem neles outra vez e fiquem à espera do fumo branco.

27 outubro 2010

Eça dixit


Disse o nosso Eça de Queirós. Parece hoje:

O País Perdeu a Inteligência e a Consciência Moral - Eça de Queirós - 1871.

"O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já se não crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce... O comércio definha, A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo."

Eça de Queirós

24 outubro 2010

O Bernardo, o Paulo, a Catarina e os meninos todos


O Bernardo lança desafios e sorrisos aos meninos. São fitas coloridas de sons, suaves como sussurros que saem do piano e os meninos têm os olhos gulosos de espanto. O Paulo Lameiro e as amigas trazem tabuleiros carregados de danças, flores e notas musicais que são canções de acordar.
Os meninos rebolam, gatinham, abraçam e são abraçados por sons e cores que apertam muito contra o peito, porque é ali o lugar onde a música deve ser guardada. Ali, onde batem os corações. Depois riem muito, ou dançam, como a Catarina.


(Hoje de manhã, no Centro Cultural Olga Cadaval em Sintra, Bernardo Sasseti, Paulo Lameiro e os amigos, deram aos meninos música a provar e eles não se fizeram rogados... beberam tudo até ao fim)

23 outubro 2010

Lamento de um pai de família


Como pode um homem carregado de filhos e sem fortuna alguma
ser poeta neste tempo de filhos só da puta ou só de putas
sem filhos? Neste espernear de canalhas, como pode ser?
Antes ser gigolô para machos e ou fêmeas, ser pederasta
profissional que optou pelo riso enternecido dos virtuosos
que se revêem nele e o decepcionado dos polícias que com ele
não fazem chantage porque não vale a pena. Antes ser denunciante
de amigos e inimigos, para ganhar a estima dos poderosos ou
dos partidos políticos que nos chamarão seus génios. Antes
ser corneador de maridos mansos com as mulheres deles fáceis.
Antes reunir conferências de  S. Vicente de Paula, para roçar
o cu da virtude pelas distracções das sacristias escuras e
ter o prazer de acudir com camisolinhas aos pobres entre os quais
às vezes aparece um ou uma que dá gosto ver assim tão pobre por
se lhe verem os pêlos pelos rasgões da camisa ou algo de mais
impressionante para o subconsciente que sempre está nos olhos
que docemente se comovem com a miséria. Antes ir para as guerras
da civilização cristã ou da outra, matar os inimigos da conta corrente
e das fábricas de celofânicas bombas. Antes ser militar.
Ou marafona de circo. Ou santo. Ou demónio doméstico
torcendo as orelhas dos filhos à falta de torcê-las aos filhos
da puta . Ou gato. Ou cão. Ou piolho. Antes correr os riscos do
DDT, das carroças que os municípios têm para os cães suspeitos
de raivosos como todos os cães que se vê não lamberem as partes
das donas ou mesmo dos donos. Antes tudo isso que assistir a tudo,
sofrer de tudo e tudo, e ainda por cima ter de aturar o amor
paterno e os sorrisos displicentes dos homens de juízo
que deram pílulas às esposas, ou as mandaram à parteira secreta e
elas quiseram ir. Antes morrer. (....)

Jorge de Sena, 40 Anos de Servidão, Edições 70, 1989
Fotografia: Misha Gordin

20 outubro 2010

Anouar Brahem


Alaudista Tunisino, criador de um jazz moderno que beneficia  da mistura com a sua profunda experiência em música árabe, está no dia 25 na Gulbenkian Música.

18 outubro 2010

Paradoxos

Jorge Eduardo, 54 anos, antigo piloto de gincanas e ralis, uma perícia que faz inveja a todos os amigos e conhecidos. Talvez mais do que a perícia, só as impecáveis calças cinza claro vincadas, que coleciona a par de blazers azuis escuros de botões dourados, são objecto de uma inveja superior.
Hoje, pela tardinha, quando o viram dentro do Triumph Spitfire Mark IV descapotável, vermelho baton, estofos de pele sintética branco pérola, pendurado no talude da ribeira do Xarrama, ninguém reparou na forma como estava vestido.

14 outubro 2010

Do abismo ao abraço


... Os dias não se descartam nem se somam, são abelhas
que arderam de doçura ou enfureceram
o aguilhão: o certame continua,
vão e vêm as viagens do mel à dor.
(Pablo Neruda)

12 outubro 2010

Palavras


Um bando de palavras agrediu-me.
Primeiro, de soslaio, temerosas, ao de leve.
Depois, aos safanões, bruscamente.
Seguiu-se o rodopio de bofetadas, o caos, o desesperante muro de silêncio partilhado.
Atordoada, infeliz, miserável, as mãos na cabeça, a tentar defender-me das bicadas dos rês e dos vês, a torturante veemência dos tês, a sibilância dos sês, a vulgaridade de um mê ou a secura final do nê de Não.
Despojada, envolta em farrapos de mim, jazia, inerte. As dores atormentavam-me  frases por dizer.
Finalmente o silêncio na planura.
O bando de palavras dispersou, extenuado. Algumas ficaram suspensas nas árvores, outras caíram ao rio e afogaram-se.

Deste lado, do silêncio, sairão borboletas azuis pinceladas a ouro.

Olivia

10 outubro 2010

Bug melancólico no meu software


A vida fica uma coisa chat quando penso na  minha face lunar, que nunca levaria para um book. Todavia, é com esse template que insisto no upload  e activação do script da minha memória. Já tentei o Esc, mas, sem  firewall, o plugin da versão trial teima em ficar, como um virus. O melhor será alterar as rotinas da  interface e procurar brevemente um novo hosting para as minhas coisas.

08 outubro 2010

A varanda

O meu avô está sentado na varanda.
Fico contente quando chego a casa e o vejo, sentado, a tomar chá na varanda. É sinal de que está bem e quer conversar. Quando não quer conversar, senta-se no sofá da sala, afundado em frente à televisão.
Veste os jeans gastos do costume, uma T shirt azul escura e sapatos leves, sem meias. O meu avô veste agora sempre jeans e Tshirt , nunca põe meias e hoje tem restos de óleo nas mãos, sinal de que esteve na garagem a desmontar um motor. Isso, para mim, também é muito bom sinal.
Olha-me, esconde o sorriso atrás da chávena onde bebe o chá e, com um gesto de sobrancelhas que conheço, convida-me a sentar ao seu lado.
Respondo-lhe com um beijo na testa e entro em casa para tirar as compras dos sacos, encher o frigorífico e lavar alguma louça.
Sei que me olha as costas, enquanto se recosta a saborear o chá.
Desde o Inverno que lhe trago as compras de comida e o correio que se acumula no apartamento e que, depois, fica ali, por abrir, no sítio onde o deixo.
O meu avô foi o amigo que mais encheu a minha vida. Vivia junto aos meus pais e está ali desde que adoeceu e assinou uns papéis para sair do hospital sem fazer os tratamentos que lhe propuseram.
Foi com o meu avô que eu aprendi a pescar, o que me tornava especial entra as colegas do colégio. Nesse tempo, passávamos todo o tempo livre no mar onde, com uma infinita paciência, ele me punha o isco no anzol, ensinava a calcular a distância para o fundo e qual era a melhor hora a que o peixe ferrava.
Quando eu tinha dez anos, no fim da primária, o meu avô levou-me a acampar na Arrábida, que era um sonho meu, o que deu numa enorme discussão entre os meus pais que não tinham opiniões coincidentes sobre as saídas das meninas em aventuras daquelas.
Há marcas do meu avô em muitos outros momentos da minha vida: a minha primeira cerveja, a primeira saída a guiar um carro – o dele – e que ia acabando mal, ou a viagem de avião que fizemos juntos à Madeira para caminhar nas levadas. Foi o meu avô que me comprou o meu primeiro bilhete de InterRail, quando acabei o secundário - sai daqui sempre que puderes, nunca te canses de ir... mas volta sempre - sussurrou-me, olhos nos olhos, a sorrir.
O meu avô ensinou-me a crescer, eu aprendo com ele a envelhecer e isso é mais uma coisa que fazemos juntos.
Hoje fiquei contente quando cheguei a casa e o vi sentado na varanda.

02 outubro 2010

Uma árvore que canta


Um dia, o avô plantou uma árvore. 
Os dias correram, como correm os dias. 
Nasceram os filhos, cresceram, o avô foi ficando.
A árvore, grande, esbelta e o avô sentado à sombra, a pensar na vida.
Quando, na hora grada, por Setembro, os pássaros voltam aos ramos, é uma árvore que canta.
E o tempo foi passando, como passa o tempo.
Depois, um dia, muitos anos depois,veio um vento grande e a árvore tombou.
Na paisagem desolada, os troncos deitados descansam.
Dos troncos se fez o lume que nos aquece em noites de invernia.
Sentados à volta do lume, falamos do avô e dos dias que passava debaixo daquela árvore.
De um dos ramos maiores se fez uma caixa.
Polimos, pintámos envernizámos.
No tampo escrevemos o nome da neta.
Hei-de contar-lhe a história dessa árvore, da árvore que canta.

(Pintura de Lúcia Maia)


01 outubro 2010

O que se sabe dum tempo que se desconhece

"... A situação do nosso país é pré caótica - anuncia o caos possível -, porque em todos os domínios da vida social e da governação a retroação do efeito sobre a causa está presente (ou, como se diz habitualmente, "o problema faz parte da solução"). Basta olhar para as políticas da "modernização" e as suas consequências no "Estado Social": a preacriedade do emprego, a mobilidade, as novas tecnologias empurram para o desemprego milhares de pessoas que o Estado tem de apoiar, o que leva a pô-lo em risco, obrigando a abrandar ou acelerar a modernização, o que por sua vez reconduz à inércia e ao desperdício, criando novamente mais desperdício, etc. (...)
Um movimento cada vez mais acelerado de caotização está a invadir o País, afetando as subjetividades. Ninguém sabe o que vai acontecer. Não se pode ficar inerte, mas não se sabe como agir (senão salvar o que de bom tem sido feito). Nem sequer há a certeza do caos futuro, com a esperança de uma dialética que faça nascer a luz das trevas. Este setembro "do nosso descontentamento" marca, talvez por muitos anos, o fim da esperança. Resta-nos a força de viver.

José Gil, O caos incertoVisão (30 Setembro 2010)
Fotografia: Gregory Crewdson