30 junho 2009

À saída de Junho

*

“I love to dance because I was scared to speak” - Pina Bausch

O Tanztheater ou Dança-Teatro, corrente artística de que Pina Bausch foi líder desde 1973, representa um salto evolutivo no seio das artes cénicas do final do século XX. Aí, dança e teatro dialogam como linguagem única, transformando, de modo indiscutível, a forma de olharmos o corpo enquanto linguagem artística.
Como diria Merleau-Ponty, o corpo é uma obra de arte e a sua linguagem é poética.
É um local de relação entre paixão e acção, entre impressão e expressão, entre percepção, movimento e emoções. Não é inteiramente um campo, não inteiramente um meio; ele oscila, pode ser descrito e pode falar.
O trabalho de Pina Bausch veio dizer-nos o que pode a fala de um corpo com arte dentro.

* Lisa Gerrard, Amergin's Invocation

28 junho 2009

"Sonhos" e "Utopias"



(..."só te falta um pequeno gesto, acredita")

Clip descoberto aqui

O Pináculo da Glória

(...) Que tudo dura um instante, que o pináculo da glória é o sítio donde a gente se habitua a ver melhor a eternidade, que... Passo de lado e penso nos meus confrades nas letras, porque aí é que a eternidade é mais plausível e para o próprio, indubitável, dado que, se cada um atinge o máximo de si, o que está para lá é invisível, ou seja, não existe. Quantas glórias das letras já me desfilaram diante do meu assombro? Aquilino, Ferreira de Castro, Redol, Namora, Carlos de Oliveira, José Gomes Ferreira e outros e outros. É como os papas. Cada papa novo é o absoluto em papismo. O mundo inteiro é como se estivesse à espera dele para se realizar em absoluto. Às vezes erguem-lhe estátuas. Mas pouco tempo depois são um número. Que me lembre já papei 6 papas: Pio XI, Pio XII, João XXIII, Paulo VI, João Paulo I (que durou 1 mês e dizem que foi morto), João Paulo II.
- E pensar a gente que no tempo deles eram papas.
Virgílio Ferreira, Conta Corrente I

Foto aqui

27 junho 2009

Os motores da Campanha...

Notícia (não desmentida) do Expresso hoje:
José Sócrates encontrou-se quinta feira à noite, em privado, com um grupo de personalidades de quem ouviu "ideias e propostas para os próximos quatro anos". José Miguel Júdice, Isabel Megre, Daniel Proença de Carvalho, António Carrapatoso, António Mexia, Henrique Granadeiro, Carlos Monjardino, António Ramalho, José Bento Santos, António Gomes Mota, Julião Sarmento, Filipe Vila Nova, José Manuel Fernandes (Empresário) e Tiago Névoa Oliveira foram os nomes presentes numa iniciativa com que o líder do PS pretende retomar (com mais iniciativas, mais discretas) o espírito dos Estados Gerais (...).O objectivo, garantiu ao Expresso fonte do gabinete de José Sócrates, é " arrancar para as legislativas com uma forte mobilização da sociedade civil, que vai ser o motor desta campanha".

Quadro : Carvaggio A Vocação de S. Mateus

26 junho 2009

A vida como um anel


Poema de amor

Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
E quase ia morrendo com o receio de que ele
não te coubesse no dedo.

Jorge de Sousa Braga, in O Poeta Nu

*

São os rios

Somos o tempo, somos a famosa
parábola de Heraclito, o Obscuro.
Somos a água, não diamante duro
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos esse rio
a olhar-se no rio. A sua imagem
muda na água do espelho entre as margens,
no rio que varia, fogo cego.
Somos o rio vão, predestinado
runo ao seu mar. De fogo está cercado.
Tudo nos diz adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha moeda lesta.
E no entanto há algo que ainda resta
e no entanto ainda há algo que se queixa.

Jorge Luís Borges, in Os Conjurados

* Léo Ferré, Avec le Temps
Foto da NASA

In memoriam


Michael Jackson
29 de agosto de 1958 - 25 de Junho de 2009


Farrah Fawcett
2 de fevereiro de 1947 — 25 de Junho de 2009

No dia da morte de Michael Jackson


No dia da morte de Michael Jackson, ninguém reparou nesta notícia.
Para que conste.
Não é de somenos.
Claro, não se vai falar "disto", vai falar-se "daquilo", isto é, de um cantor popular que se tornou num ser humano tão estranho como os anéis de Saturno.
Que desafiou a natureza, ao trocar de côr e não só.
Que foi grande e plástico e inovador.
Que morreu cedo, como devem morrer os ícones, para serem eternos.
Que milhares de pessoas o vão chorar, lamentar, comentar.
As pessoas precisam destes momentos, em que as televisões se tornam nos novos locais de culto, organizando algo que nenhuma religião conseguiu, até agora: venerar, em simultâneo, numa só imagem, Deus e o Demónio.
Michael Jackson e Saturno em prime-time.
Cientistas descobrem um oceano numa lua de Saturno.
Talvez não estejamos sós no Universo.
Nem assim a cultura ocidental consegue reequacionar os valores, as crenças e os ícones.
O que interessa mesmo é encher as televisões de lixo.
A Sic, ontem à noite, suspendeu todos os noticiários da meia-noite para mostrar, até ao limite, um hospital americano, enquanto entrevistava jornalistas.
Em rodapé, a descoberta de água em Saturno.
No facebook, twiter e blogues, os seguidores lamentavam a perda do cantor, o que não tem nada de errado em si, se não se tornasse asfixiante, entediante, anormal.
Aldeia Global?
Adro de Igreja?
Os novos deuses?
Um excerto de Eça em "Prosas Bárbaras":
"Lisboa tem compaixões celestes: agrupa-se, em coro de lágrimas, para ver a morte dum cão, mas afasta-se logo, assobiando, se começa a agonia de uma alma.
Tem também uma curiosidade tímida e fácil: senta-se nos passeios pelo Estio, entre o pó, olimpicamente, como os deuses entre a luz, e fica atenta, concentrada, idiota- a ver caminhar seis mil pernas"...
"Ó Lisboa, tu não tens caracteres, tens esquinas"
Eça de Queirós.

Eis um pedaço da notícia que passou em rodapé:
Um Oceano em Saturno

Uma das luas de Saturno, que se distingue das outras pelo jacto de vapor que lança desde o seu pólo sul e que alimenta um dos anéis deste planeta, tem uma grande quantidade de água salgada líquida sob a sua superfície gelada. A descoberta de sais de sódio neste anel prova, segundo os cientistas, que este satélite natural esconde um verdadeiro oceano.

O que é que diferencia a Encélado de qualquer outra das luas de Saturno? Um enorme jacto de vapor de água, gás e pequenos grãos de gelo que brota do seu pólo sul, alimentando o anel exterior deste planeta. O mesmo no qual os cientistas detectaram sais de sódio. Uma prova, dizem, de que debaixo da superfície da lua existe um reservatório de água líquida.

Esta descoberta pode ter novas implicações na procura de vida extraterrestre, sendo esta lua um dos poucos locais dentro do nosso sistema solar com condições teóricas para a albergar (in Diário de Notícias)

25 junho 2009

Há 34 anos em Moçambique

Há aqueles que nascem com defeito. Eu nasci por defeito.
Explico: no meu parto não me extraíram todo, por inteiro. Parte de mim ficou lá, grudada nas entranhas de minha mãe. Tanto isso aconteceu que ela não me alcançava ver: olhava e não me enxergava. Essa parte de mim que estava nela me roubava de sua visão. Ela não se conformava:
- Sou cega de si, mas hei-de encontrar modos de lhe ver!
A vida é assim: peixe vivo, mas só vive no correr da água.
Quem quer prender esse peixe tem que o matar. Só assim o possui em mão.
Falo de tempo, falo de água. Os filhos se parecem com água andante, o irrecuperável curso do tempo. Um rio tem data de nascimento?
Mia Couto, O último voo do flamingo

24 junho 2009

Homenagem a Botticelli


O lenço branco na parede
pedra
esplendor em dança
vendaval em seda
aragem
do tempo pousado nos
gestos longos

O fogo lânguido por dentro
de si
como se um anjo cego
pintasse
cores escritas em carne
viva
na palavra de água
na dança imóvel
nas flores penduradas em
pássaros verdes

Meninas Botticelli com
vozes de silêncio
uma canção de veludo
luz e ouro na dança lenta
flutuantes tecidos
aparentes
transparentes

Lúcia diz Luz.

(pintura de Lúcia Maia)

Espelhos (II)

(...Tentava não pensar neste vizinho, mas a curiosidade era superior à sua vontade… “Maria do Carmo, Maria do Carmo, não tens já problemas que cheguem?” dizia baixinho, enquanto preparava o barco para sair ao moliço… “”só queria dizer bom dia” desculpava-se, “só um cumprimento”)
...Os latidos do cão mexiam-lhe com os nervos desde que ali chegara e Jorge levantou a questão no primeiro encontro que tivera com o responsável pela instalação.
Os amigos garantiram que não há risco desse lado - respondeu Amílcar com a secura que lhe era habitual quando questionado sobre questões que punham em causa, ainda que vagamente, as suas decisões. A segurança de Jorge Serpa depois da saída da prisão, enquanto era preparada a sua ida para o exterior, fora uma indicação “vinda de cima”, pelo que dúvidas sobre aspectos funcionais do plano era admitir a possibilidade de um erro.
Nos poucos momentos de contacto que tiveram, foi fácil a Jorge conhecer-lhe alguns tiques. A primeira impressão fora logo perturbada por dois aspectos, para si essenciais: o aperto de mão - o de Amílcar era mole e sem energia, apenas pousava a mão na mão de quem cumprimentava, sem o olhar nos olhos. Depois, o cabelo: Amílcar tinha o crânio coberto com uma espécie de peruca tipo ninho de pássaro, mas que numa observação mais atenta mostrava uma rebuscada forma de pentear comum a alguns calvos, trazendo o cabelo da têmpora esquerda até ao lado direito, cobrindo toda a cabeça. Ficava com um ar ridiculamente cómico que impedia Jorge de perceber o que ouvia, absorvido que ficava naquela enigmática obra de engenharia. Usava um tom de voz baixo, com as vogais ciciadas, o que indicava uma origem Beirã. Quando queria sublinhar alguma afirmação procurava a atenção do interlocutor lançando um olhar aguado por cima dos óculos de massa pretos.
Fica tranquilo, Serpa, disse-lhe de novo; segundo o Amigo, a moça vive só, confinada a este espaço, donde raramente sai. Foi expulsa da Vila desde que enganou o marido. Um escândalo no Natal passado, o homem a chegar de Angola ao fim de 4 anos de tropa e uma antiga namorada foi-lhe contar da aventura da mulher com o irmão mais novo dele. Tinham casado no Verão, por procuração . Como vês, é seguro, ninguém lhe fala, excepto o nosso contacto.
Estavam sentados na cozinha, a porta entreaberta deixando entrar a brisa do início da noite e, terminada a reunião habitual, Amílcar achara melhor voltar a este assunto para tranquilidade do companheiro.
Por várias razões, as questões envolvendo relações amorosas eram agora, para Jorge, temas onde estava pouco à vontade.
O tempo passado na prisão tornara-o inseguro em tudo o que se relacionasse com assuntos sentimentais. Tinha vivido dois anos sem qualquer espaço de intimidade. Uma restrição total de sentimentos, a obrigatoriedade de partilhar um espaço fechado com três homens que desconhecia e não escolhera para companhia. Odiava a sala / camarata, estar aí fora mais doloroso do que a própria perda de liberdade.
E havia a Fátima. No momento da prisão planeavam viver juntos. Depois, até ao julgamento, sentiu sempre a sua proximidade. Mais tarde, começara a dar aulas e não tinha dias para as deslocações. Nos últimos seis meses apenas tinha vindo vê-lo três vezes e sempre em visitas com mais gente, o que impedia a proximidade.
Depois falamos, Jorge. Quando saíres e tudo estiver mais calmo falamos.
Afinal, tinha a aguardá-lo cá fora não a Fátima, mas uma carta da Fátima entregue pela irmã dela a sua mãe. Na carta, que nem era longa, dizia ter concluído que não tinha estofo para o acompanhar.
Encenara vezes sem conta o que fariam no momento do reencontro. Alimentara a saudade e o frémito do desejo com o sonho dos braços dela e o que tinha a esperá-lo, além da carta, era uma reunião de família com frango frio e espumante para celebrar a sua chegada....

Fotografia Pedro G. Prata

23 junho 2009

Festa



Parabéns, Clara

Quadro: Lúcia Maia, "Até às nuvens"
Música: Deolinda, "Fon,Fon,Fon


22 junho 2009

21 junho 2009

O III Bibliotecário

240 anos antes de Cristo existia a Grande Biblioteca de Alexandria.
Nesses anos o Bibliotecário, seu responsável máximo, chamava-se Erastótenes.
Nos meios académicos do tempo, Erastótenes era chamado em tom depreciativo Beta, porque, diziam, era sempre o segundo melhor em tudo.
Um dia, ao ler um papiro, Erastótenes soube que em Syene (actual Assuão), a cerca de 800 km a sul de Alexandria,às 12 horas do vigésimo primeiro dia de Junho - Solstício de Verão- uma vara ou uma coluna de pedra em posição vertical não projectava sombra.
Comparou esta informação com a existência, no mesmo dia e hora, de sombra nas colunas da sua cidade, a Norte.
Dispondo apenas de varas, observação e inteligência, fez o necessário para descobrir que a Terra era redonda.
(Na Europa medieval, 1000 anos depois, defender que a Terra não era plana podia equivaler à pena de morte).
Deu-nos mais Erastótenes. Ao contrário do que diziam as vozes académicas do tempo, ele podia, afinal, ser primeiro: calculara, ainda, 240 anos antes de Cristo, o raio da Terra com uma precisão quase absoluta.
Hoje, no Solstício de Verão, 2500 anos depois, é bom recordar Erastótenes.

Carl Sagan também gostava de Erastótenes:


19 junho 2009

Nneka

Não Sei


Não sei como dizer-te
esse silêncio
o silêncio das flores
dentro de mim
onde começa o tempo

Esse silêncio
essa voz que fere os dias
o espanto de ser
na nossa vida

Não sei
como dizer-te
da vida sepultada
debaixo do ser

Não sei
Diz-me

Pintura de Hélder Tércio

18 junho 2009

Espelhos

O brilho do sol encandeou-a quando abriu a porta da cozinha e olhou o quintal.
Despertado pelo ruído, o cão correu para ela, latindo…
-“Quieto, Fiel. Quieto!” - exclamou rindo… “Chega-te pra lá, tens as patas com terra e vais sujar-me a saia!”.
Foi buscar a tigela com os restos do jantar e despejou-a no prato do cão.
- “Come devagar! Vais engasgar-te”- disse, rindo de novo.
Despejou o tacho com a água num canteiro e, depois de lhe pôr água limpa, sentou-se na soleira da porta com um pão seco e uma caneca de cevada nas mãos, beberricando e sentindo o calor que os primeiros raios de sol do dia lhe traziam à pele.
Chovera toda a noite e o vapor saído da terra molhada trazia um cheiro intenso a erva que gostava de sentir bem. Passados uns minutos, descalçou as socas e, com os pés nus, avançou pelo quintal pisando com gosto o chão humedecido.
Na extrema do terreno ficou de olhar perdido, saboreando o pão molhado no café e olhando a Ria que, como um espelho, lhe devolvia o brilho intenso do sol.
A casa ficava dentro duma pequena propriedade, numa minúscula península que, na margem direita da Ria, fazia a terra chegar até ao meio da água.
Mexeu os dedos dos pés, enterrando-os na lama, e fechou os olhos saboreando um prazer imenso que lhe vinha da pele aquecida pelo sol, espalhando-se
pelo corpo todo, e a levava a afundar os pés na terra molhada.
Ficou perdida neste sentir doce e só os latidos do cão a fizeram regressar.
Olhou-o desinteressada, pois sabia que o seu sinal não era mais do que uma saudação ao vizinho que passava de bicicleta no estreito caminho junto ao portão.
Não fosse o padre da Vila tê-la vindo avisar deste vizinho e teria ficado assustada quando começou a notar as suas idas e vindas.
Um engenheiro do Porto, a recuperar da morte da mulher - dissera-lhe o padre - pessoa muito séria, apenas quer sossego e não ser perturbado… acrescentou. não é preciso ajudar em nada. Ele tem amigos no Porto que, de vez em quando, o virão visitar. Às vezes ficarão um ou dois dias com ele. Tu, fica à distância Maria do Carmo… rematou.

Depois do acontecido na aldeia no final do Verão, que tinha forçado a sua vinda para aquele antigo palheiro, o Padre era a única pessoa que a visitava.
Era, sobretudo, um amigo mas nunca deixava de a querer trazer de volta "para o rebanho", como dizia para sua irritação.
Durante algum tempo ignorou a presença do enigmático vizinho e das suas idas e vindas, mas na última semana pensou por mais de uma vez atravessar-se no seu caminho e saudá-lo. Só para o ver melhor…
Parecera-lhe bem apessoado, alto, magro, da sua idade, sempre com o mesmo casaco de pescador e umas calças largas.
Via-o de manhã cedo, quando saía na bicicleta e, por vezes, perto da hora do almoço, quando voltava, caminhando e transportando uma cesta de compras apoiada no selim.
A pequena casa onde estava instalado não se via muito bem do terreno dela, nem de lado nenhum a não ser de dentro da Ria e uma vez espreitara subindo a uma nogueira, mas não observou nada de interesse. Com estranheza, reparou que todas as janelas estavam com as portadas fechadas. Notou que havia uma luz acesa na cozinha apesar de ser dia.
Tentava não pensar no homem, mas a curiosidade era superior à sua vontade… “Maria do Carmo, Maria do Carmo, não tens já problemas que cheguem?” dizia baixinho, enquanto preparava o barco para sair ao moliço… “”só queria dizer bom dia” desculpava-se, “só um cumprimento e ver bem o seu olhar”....


Fotografia Pedro G. Prata

17 junho 2009

Melancolia


*
*Bee Gees "How Deep is Your Love"
Fotografia
aqui

Casa


A suave mão da ausência

A casa está cheia de ti
não apenas os retratos os recantos
os quadros
não apenas os objectos onde
roça ao de leve
a suave mão da tua ausência
Mas aquela luz que trazias dentro
e deixavas de passagem
nos seres e nas coisas.

Talvez agora mores entre as estrelas.
Mas brilhas
intensamente brilhas dentro da casa.

Manuel Alegre

com o tempo nada se escreve
a não ser 
as vogais do silêncio


16 junho 2009

Encanto


A música é a única arte que nos causa uma profunda inquietude: donde vem "aquilo"? A técnica nada explica.
Um grande músico italiano,Puccini,deu a uma ária das suas óperas, a Tosca, o título: Recôndita Harmonia. Acertou em cheio. Deus nunca existiu, minha querida! São pesoas como eu e tu (desde que estudes até desfalecer) que dão um sentido à vida.
Sebastião Alba, in Albas




Recondita armonia
di belleze diverse!...E bruna Floria,
l'ardente amante mia.
E te, beltade ignota, cinta di chiome bionde!
Tu azzuro hai l'occhio, Tosca ha l'occhio nero!
L'arte nel suo mistero
le diverse belleze insiem confonde:
ma nel ritrar costei
il mio solo pensiero,
ah! il mio solo pensier, sei tu,
Tosca, sei tu!
(Luciano Pavarotti)

Água


Águas de Portugal
Está em discussão o projecto de privatização das águas e do saneamento.
Nos municípios do distrito de Aveiro, por exemplo, até agora, só Ovar decidiu não aderir a este projecto.
Entretanto, os trabalhadores dos Serviços Municipalizados de Aveiro invadiram a Câmara Municipal, por recearem perder os direitos, sabendo, ou supondo que uma empresa privada poderá querer reduzir os custos com o pessoal.
A questão é esta: se o serviço funciona bem, se o investimento feito nos anos anteriores foi avultado e cobriu praticamente todo o território, porquê privatizar um sector vital, ainda por cima lucrativo?
Esta é a fúria neo-liberal em que se privatizam os lucros e nacionalizam os prejuízos.
Não sei se também querem fazer o mesmo ao sol e ao ar que respiramos.

O Irão em mudança

Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos do cedro.”

Sophia de Mello Breyner Andresen, in O Silêncio, 1966
Fotografia: Morteza Nikoubbazl

Podem prender Moussavi, matar manifestantes, proibir a Internet e mentir na televisão; podem, mas o movimento é imparável.

15 junho 2009

Irão


Moussavi, o opositor de Almadinejad, não aparece em público há vinte e quatro horas e põe-se a hipótese de ter sido preso. Uma centena de políticos reformadores foram detidos.
Entretanto, o governo bloqueou o acesso aos meios de comunicação, como o facebook, youtube e até telemóveis.
Tudo isto porque grande parte dos iranianos não aceita os resultados eleitorais, sugerindo a existência de fraude.
Há notícias de confrontos violentos. A classe média iraniana já não está disposta a suportar o obscurantismo e, além disso, depois do discurso de Obama, não será tão fácil a justificação dos pressupostos religiosos na política.
(Actualização à 01,29h : Moussavi já apareceu em público. As minhas humílimas desculpas.)

14 junho 2009

As palavras

A casa junto ao mar fora um sonho antigo.“Com a varanda virada ao mar”, repetiam rindo, sempre que disso falavam, sentindo na pele os olhares cruzados.
Hoje, imperturbáveis, os rituais antes criados a dois.
A porta aberta com cuidado, elevando suavemente a fechadura, chaves no prato de estanho sobre mesa à esquerda; alarme, os números mágicos 9-10-17-1: os aniversários dos meninos.
Depois, tudo mais demorado, suave, ritualizado: luz na cozinha, fruta na taça de vidro, pão no tabuleiro, iogurte e leite no frigorífico, congelados na arca, sacos pequenos no saco grande pendurado atrás da porta.
Na passagem para o quarto sorri, sozinha, olhando a varanda. Portadas do quarto abertas e a roupa pendurada, arrumada. Na sala o CD, invariavelmente Betânia, que as palavras e o riso dele iriam depois abafar. Ginger Ale com 2 pedras de gelo, portas de acesso à varanda abertas e, finalmente, o namoro.

Agora a voz dele já não chega a partir da sala ou da cozinha, mas sim do outro lado. Na varanda, tem os olhos bem fechados e, reclinada, sente em toda a pele, de novo por cima do som da música, o murmúrio que lhe chega do lado do mar e o som claro, nítido, da voz dele que, entre risos, lhe sussurra: ficas linda na nossa casa…

13 junho 2009

Em jeito de homenagem

*

(19/01/1923 - 13/06/2005)
(para o Eugénio, onde quer que esteja, pelo muito que me ensinou)

Onde a vocação da luz
fez a brancura às casas,

onde a voz abriu
a planície ao verão

e o gesto se adivinhou
(espessa a erva
sobre o chão),

onde as palavras da noite
se pediram mais e belas,

aí eu queria estar

nativo anterior a mim
oferecendo-me às estrelas.

* Keith Jarrett - Somewhere over the rainbow

Valha-me Santo António

Manel, não venha pra cima do pai que me enche de areia.
-Tenho schono.
Sim, mas vá brincar mais um bocadinho e tire a chupeta da boca quando fala.
- Tenho calor.
Chegue pra lá Manel eu também tenho calor… Ó Frederico venha tomar conta do seu irmão, que maçada.
- Agora não posso!
- Tenho shede;
Sede, Manel Maria, fale bem, se-de, que coisa.
- Deixa ir ó colo.
Não, já disse, vá brincar, o menino tem de aprender a entreter-se sozinho, não vê os outros meninos?
- Onde?
Onde o quê?
- Onde tão os ninos?
Os meninos, fale bem, me-ni-nos - que maçada e a sua mãe que não chega.
- Onde tão os ninos?
Sei lá Manel Maria.
- Vamos ao mar?
Não, vai com a sua mãe depois.
- Quando é 'pois?
Depois, Manel, chiça, de-pois, não aprende.
- O que tá no jonal?
Jor-nal, Manel, jor-nal; são notícias ... ó Frederico hoje há ténis na sport tv.
- O que é isso?
Isso, o quê Manel Maria?
- Ojáténis.
Sei lá, Manel, sei lá o que você quer… e saia de cima de mim que me magoa com a areia. Olhe, vem aí a mãe com os gémeos - Mena, Mena!
Olá, campeões, como é que se aguentaram nesta meia hora?
Péssimo, Mena, péssimo, não me volte a fazer isto… uma maçada!
(Praia de Centianes, Algarve, em 13 de Junho 11horas)

Festa

Pintura: Arshile Gorki "Year after Year"

Música: Katie Melua

Parabéns, C.

11 junho 2009

Campos sem Erva

"...O que muitos de nós gostariam de saber acerca do cabelo é a razão porque o perdemos. O número de homens que sofrem de "alopécia androgenética" ou calvice de padrão masculino" depende da definição, mas parece correcto admitir que esta pode ser detectada em 20 por cento dos homens americanos na casa dos 20 anos, 50 por cento nas idades compreendidas entre os 30 e os 50 anos e 80 por cento na classe 70 a 80. A calvice é verdadeiramente um fardo do homem branco: os africanos, os este-asiáticos e os ameríndios (nativo-americanos) apresentam todos probabilidades inferiores a 20 por cento de sofrerem calvice ao longo de toda a vida. Medicamente inócua, a calvice é uma doença desanimadora. Ovídio falou por milhares quando escreveu na sua Ars Amatoria: "Um campo sem erva é uma visão chocante - assim também uma árvore sem folhas / ou uma cabeça sem cabelo". Ao longo de pelo menos um século, os Americanos têm demonstrado uma nítida aversão a eleger carecas para o posto mais elevado da nação. À excepção de Gerald Ford (1974-77), que era calvo mas não foi eleito, o último presidente careca foi Dwight D. Eisenhower (1953). Os europeus têm-se revelado mais complacentes com os políticos calvos (Churchill, Papandreou, Giscard d'Estaing, Mitterrand, Chirac, Craxi, Mussolini), mas até eles ficaram atrás dos soviéticos que, de forma inexplicável, levaram ao poder, ainda que não propriamente por eleição, líderes calvos e hirsutos em rigorosa alternância: Lenine (careca), Estaline (cabeludo), Brezhnev (cabeludo), Andropov (careca), Chernenko (cabeludo), Gorbachov (careca) - tradição que tem sido mantida na República Russa com Yeltsin (cabeludo) e Putin (cabelo penteado sobre a calva)."

Armand Marie Leroi, in Mutantes, Gradiva 2009
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A derrota de Sansão depois de lhe ser cortado o cabelo é, talvez, o mais antigo relato da associação do cabelo à ideia de Força e Poder.
Sabe-se hoje que a calvice de padrão masculino está ligada a vários genes, nenhum dos quais foi identificado até agora. A sua conexão à testosterona foi suscitada desde tempos muito antigos na observação de que os homens castrados antes do final da adolescência não tinham calvice. Mais tarde, isso foi confirmado em investigações realizadas em grupos submetidos a programas eugénicos para homens com atraso mental, realizados em algumas regiões dos Estados Unidos até à década de 60 do século XX.
Para alguns investigadores, no entanto, embora exista uma evidente ligação com a testosterona, a tese de virilidade associada à calvice é um mito aceite sobretudo pela necessidade de compensar os que dela padecem e que sentem perder o "poder" que está culturalmente ligado à condição masculina.
Haverá uma esperança para os carecas? Seguramente que sim. Mais tarde ou mais cedo, a causa da calvice será identificada e corrigida. Até lá, os dados históricos vindos da Rússia são animadores para a existência (pelo menos) de paridade com os "cabeludos" no acesso ao Poder do Estado.

10 junho 2009

Nós, Europeus

Que vergonha, rapazes
Que vergonha rapazes! Nós pràqui,
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no "diz que"
e a desnalgar a fêmea ("Vist'? Viii!")

Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar a quarta invasão francesa.

Desejo recalcado, com certeza...
Mas logo desço à rua, encontro o Roque
(" O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!")
e desabafo: - Ó Roque, com franqueza:

Você nunca quis ver outros países?
- Bem queria, Snr O'Neill! E ...as varizes?

Alexandre O'Neill (1924-1986)

09 junho 2009

...e agora:

Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
(Sophia De Mello Breyner Adresen)
Pintura Jack Vittriano

08 junho 2009

Futuro

O PSD não avançará sozinho, terá que contar, a partir de agora, com Paulo Portas.
O mesmo se prevê nas autarquias de Lisboa e Porto. Em Aveiro é já uma realidade.
O Bloco de Esquerda será sempre uma frente de protesto e a CDU,apesar de ter subido, está geracionalmente condenada.
Sócrates cometeu muitos erros, muitos deles para corrigir o despesismo de Guterres. Cometeu, também, o pecado da soberba.
Falta-lhe, a Sócrates, a vivência e o sentido de humor de Mário Soares e que seria um antídoto para a tragédia do nosso quotidiano.
E agora, aí está: Zapatero, Sócrates e Brown em queda.
Centro-direita, direita e ,até, extrema-direita são o nosso futuro europeu.

O dia seguinte

A arrogância, a sobranceria, a intolerância e a prepotência tiveram resposta.
Não vai ser melhor, mas deu para festejar.

07 junho 2009

Melingo


Daniel Melingo.

Conhecemos a sua voz e o seu canto no espectáculo de Rodrigo Leão em 5 de Junho.
Ouçam tudo o que puderem dele.

Leitura de domingo


Do Corpo Repousado

Talvez a vida não seja luminosa
Mas tem momentos: o lago da cama, o sol
Na lombada dos livros, o joelho
Amável
Da mulher deitada. Como vai ser a manhã
Não sei, ergo a minha taça.

Amadurece o mar, mergulho na luz
E regresso a casa: a boca na maçã
À sombra do teu olhar, a música
Dos gatos, as tuas mãos que envolvem
As árvores ao meio dia. Sabor a terra,
Gota a gota na minha língua.

Caminho na praia como quem sente
As peles sobrepostas do mundo em volta
Do meu corpo, coração de pó
E sento-me em repouso a ouvir a respiração
Do vinho. Talvez a noite não apague
Esta magia.

Casimiro de Brito in 69 Poemas de Amor,4Águas Editora 2008
Música : Bebo e Cigala Niebla del riachuelo


06 junho 2009

Barroco Tropical


"Barroco Tropical" é o novo romance de José Eduardo Agualusa.

Estamos mergulhados na luz. Estamos afundados no obscurantismo e na miséria. Somos incrivelmente ricos. Produzimos metade dos diamantes vendidos no mundo. Temos ouro, cobre, minerais raros, florestas por explorar e água que não acaba mais. Morremos de fome, de malária, de cólera, de diarreia, de doença do sono, de vírus vindos do futuro, uns, e outros de um passado sem nome” (pág. 93).
Agualusa atreve-se a denunciar, não há dúvida. Com ou sem liberdade poética, a denúncia espreita a cada página. Mas não derrota. É no próprio sogro do escritor do romance que coloca as palavras: ”O país caiu nas mãos de quimbandeiros e de aventureiros sem escrúpulos. Não podemos baixar os braços. A luta continua. A vitória é certa” (pág. 331).
Porque o escritor – o protagonista da história, Bartolomeu, ou o autor, Agualusa – é um artista: “Deixem-nos a nós, os artistas, sentir muito – o nosso ofício é sentir muito. Médicos, advogados, políticos, engenheiros, prostitutas, proxenetas, psiquiatras, militares não podem sentir muito. Sentir muito prejudica-os na sua actividade” (pág. 321)
in A Das Artes

Dia de Reflexão

675 A convicção de grandeza dos grandes é um orgulho virado para dentro. A dos pequenos é a petulância virada para fora. Porque a dos primeiros não precisa de se mostrar. E a dos pequenos, se eles a não exibirem, quem é que vai dar conta?
Virgílio Ferreira, Pensar

05 junho 2009

Sombras com vida

Adormecidos ou apenas cansados. Do abandono, da solidão da fome.
Não do amor, que esse conhecem-no bem.
Um acompanha a menina no sono, qual sentinela; o outro, olhos atentos, repousa deitado.
No centro, protegendo a menina, a sombra do amigo cobre-a como um manto. Lança sobre ela a imagem protectora de um perfil, onde se adivinha um avô, uma mãe…ou apenas um sonho.

(Fotografia aqui)

Cibelle

Existirmos, a que será que se destina
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmos na intacta retina
Da cajuína cristalina em Teresina
Existirmos, a que será que se destina
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmos na intacta retina
Da cajuína cristalina em Teresina

Cibelle Cavalli pertence à chamada música brasileira ultranova.Nasceu em 1978 e vive em Londres.
O seu primeiro disco foi lançado em 2003. Produz uma música que é uma mistura de Bossa Electrónica, Jazz, Tropicalismo e "barulho de coisas"...
Os espectáculos de Cibelle são, geralmente, "performances" multi média com forte componente de música electrónica.

04 junho 2009

N(o) calor da crise

*


ai que bom o tempo das férias a chegar e o pessoal a pensar em dar de frosques, bazar para uma qualquer praia nas Caraíbas, sei lá, Punta Cana, ou então para Phuket, a perfeita.
a Purífica é que diz que vai, mas aquilo é ela só para fazer raiva e depois dizer que esteve na Pérola do Sul, pois... sempre é mais quente. olha, ainda há no banco uns dinheiritos do falecido. não, pois claro, que esse está a prazo, tens razão. mas ai que bom que as férias vêm aí e este mês entra a dobrar, quer dizer dá pra pouca coisa com as prestaçõs do carro e mais a casa e queira deus que a tua irmã não precise daqueles euros que emprestou. é que este ano foi uma canseira, tantas vidas pra governar e mais os spreads e os juros que não há meio de baixarem. mas olha o miúdo lá se safou e tal..., merece ir a qualquer lado, que não é menos que o dos outros. e se fossemos este ano àquela ilha do jet7, nem que fosse só uns dias, que assim já não ficavas com o jet lag, a Itália é pertinho. afinal sempre quiseste lá ir. deve ser puxadote, mas não faz mal, ainda temos o tal do subsídio e pode ser que entretanto fiques com o tal emprego, eles quase garantiram, lá nas oportunidades ou como é que se chama. ai que bom que estamos quase em férias, amanhã vou perguntar ao Simões da logística como é que lhe fizeram aquilo da revisão do empréstimo ou lá como é que se chama. deus há-de ajudar, não fiques com essa cara, quem não rouba não teme. já sei que não é assim que se diz, mas agora isso não interessa, olha lá vem o 38 que é o nosso.

* Gino Paoli - Sapore Di Sale

03 junho 2009

Por quem os sinos dobram

Este é o título do livro com que Ernest Hemingway ganhou o Nobel da Literatura em 1954.
O enredo do romance decorre em quatro dias e nele o autor faz uma profunda reflexão sobre a vida, a morte, sobre o amor a coragem e a cobardia. Sobretudo, reflecte sobre a solidariedade humana, levada à sua expressão mais sublime em qualquer guerra, seja qual for o lado da trincheira em que cada um se coloque por amor à causa em que acredite.

O texto de Saramago tem sete anos. Foi lido na cerimónia de encerramento do Fórum Social Mundial 2002. Contra a injustiça globalizada.

Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.

Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."
(...)
Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.
(texto integral aqui)

Breviário das Almas

"e levantar-se de madrugada, logo depois de o galo pedrês cantar, ir à arramada fazer as necessidades, voltar para casa e colocar um pau de azinho e uns gravetos de esteva para atear o fogo; depois, lavar a cara na bacia de esmalte azul, pentear o cabelo e fazer o monho, preso com uma peneta; despir a camisa de dormir, de flanela, e vestir o vestido preto, comprido, e as meias pretas de lã grossa e calçar os sapatos de couro, cardados; ir ver a cafeteira que está ao lume, entornando o café, pois já cheira por toda a casa; abrir a arca de castanho e retirar o tarro de esmalte cinzento com flores vermelhas, onde guarda o conduto; cortar o toucinho e a linguiça e o queijinho de cabra, ir ao tabuleiro do pão e levantar o pano de linho branco, tirar um pão, fazer sobre ele o sinal da cruz com o dedo e benzer-se, sentar-se numa cadeira a beber o café, junto ao fogo..."
Joaquim Mestre, in Breviário das Almas, Oficina do Livro (2009)
Pintura Lúcia Maia ("Uma Vida" óleo s/ tela)
Joaquim Mestre faleceu precocemente, aos 54 anos, faz hoje 1 mês (em 3 de Maio de 2009).
Director da Biblioteca de Beja, transformou-a num espaço de convívio e culto do livro e da leitura de expressão nacional. A este propósito, é conhecida a história de, após a inauguração da Biblioteca em 1993, e não manifestando os habitantes da cidade grande interesse em ali se deslocarem, Joaquim Mestre levou um burro pelas escadas até aos espaço de leitura, declarando que, se até um asno entrava naquele antro de cultura, seria uma vergonha os bejenses estarem ausentes...
Não só por isto, mas pelo intenso trabalho que desenvolveu, conseguiu mudar os hábitos de leitura de muitos habitantes, designadamente jovens.
Foi igualmente escritor de relevo, sendo Breviário das Almas, uma Antologia de Contos que obteve o Prémio Manuel da Fonseca 2008.
É imprescindível conhecer os seus livros.

02 junho 2009

A Bondade



O Engano da Bondade
Endureçamos a bondade, amigos. Ela também é bondosa, a cutilada que faz saltar a roedura e os bichos: também é bondosa a chama nas selvas incendiadas para que os arados bondosos fendam a terra.
Endureçamos a nossa bondade, amigos. Já não há pusilânime de olhos aguados e palavras brandas, já não há cretino de intenção subterrânea e gesto condescendente que não leve a bondade, por vós outorgada, como uma porta fechada a toda a penetração do nosso exame. Reparai que necessitamos que se chamem bons aos de coração recto, e aos não flexíveis e submissos.
Reparai que a palavra se vai tornando acolhedora das mais vis cumplicidades, e confessai que a bondade das vossas palavras foi sempre - ou quase sempre - mentirosa. Alguma vez temos de deixar de mentir, porque, no fim de contas, só de nós dependemos, e mortificamo-nos constantemente a sós com a nossa falsidade, vivendo assim encerrados em nós próprios entre as paredes da nossa estuta estupidez.
Os bons serão os que mais depressa se libertarem desta mentira pavorosa e souberem dizer a sua bondade endurecida contra todo aquele que a merecer. Bondade que se move, não com alguém, mas contra alguém. Bondade que não agride nem lambe, mas que desentranha e luta porque é a própria arma da vida.
E, assim, só se chamarão bons os de coração recto, os não flexíveis, os insubmissos, os melhores. Reinvindicarão a bondade apodrecida por tanta baixeza, serão o braço da vida e os ricos de espírito. E deles, só deles, será o reino da terra.

Pablo Neruda, in "Nasci para Nascer"

Com o que tenho vivido, considero a bondade, a firme bondade, a suprema qualidade.
Um grande amigo, já falecido dizia-me:
"Não me interessa se os meus filhos são inteligentes, bons alunos , bem sucedidos, o que me interessa mesmo é se são boas pessoas".

Manhã




Ben Harper, When she believes
Fotografia de C.