19 março 2011

Berceuse

 


Canção de embalar é talvez
demasiado melódico e além disso
um desuso. Já ninguém canta a adormecer
os filhos. Coisa imprópria para o crescimento
de criaturas autónomas
e hiper-activas que devem fugir
ao sedentarismo e à obesidade.
O Canal Panda faz isso muito melhor
ou qualquer brinquedo mecânico e perfeito.

Também já ninguém canta
nos lavadouros públicos ou nos campos. Os
únicos campos onde se cantam as brumas
da memória são os estádios. Os
pedreiros deixaram de cantar à pedra:

Hou! pedra, hou!
Hou! linda pedra, hou!

e as canções de trabalho (uma espécie
de berceuses da fadiga) passaram
a matéria etnográfica. Por isso os
estudantes de português já não entendem
Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura ou
Sete anos de pastor Jacob servira.

Mesmo o Schöne Müllerin do Schubert que
se ouve ainda nos concertos clássicos
com vaga subserviência patega
(porque em alemão, não se percebe nada),
só os amantes do lied reconhecem.

E se percebessem?
A moleira já não seria schön
e não teria 80 anos, bem bonito rol
como a de Junqueiro,
pela estrada fora, toc, toc, toc, mas agora reclusa
numa casa geriátrica, em contagem crescente
da inacção.

Muito pouco,
tão pouco, para um mundo
embalado na pesquisa espacial
de água em Marte.


Inês Lourenço, Coisas que nunca, & etc, 2010
Imagem: Pipas, tela de Cândido Portinari

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