16 fevereiro 2011

O peso escandaloso da insensibilidade

Velhos, ó meus queridos velhos, saltem-me para os joelhos: vamos brincar?
ALEXANDRE O'NEILL

O número perturbador de velhos portugueses que morreram sós, e estiveram anos sem ninguém disso dar conta, permitiu uma série de piedosas declarações. A "atomização da sociedade", de que falou, admiravelmente, Simone de Beauvoir, num ensaio esquecido mas não datado [La Vieillesse], facilitou o sistema em que sobrevivemos, e que "confina com a barbárie."
Os nossos velhos pagam, amarga e dolorosamente, as nevroses das suas infâncias e as consequências das suas vidas frustradas, esmagadas, irrealizadas e aceitas com a resignação de quem foi alienado para consentir o inevitável declínio. A velhice, tal como as sociedades modernas a tratam, é uma questão de anomalia política, uma mutilação. Podíamos, talvez, atenuar essa violência, essa desolação social, com um pouco de compaixão.
Porém, autorizámos que nos esburacassem os sentimentos. Reparem: deixámo-nos de nos cruzar uns com os outros: simplesmente, atravessamo-nos; afastámo-nos da cordialidade, expulsámo-nos dos laços que nos uniam e justificavam como seres humanos e como comunidade. O nosso coração está oco.
Um país que abandona assim os seus velhos, que assim deixa morrer os seus velhos, é um sítio sem memória, um vácuo no vácuo. Um local inóspito que perdeu a ligação do espiritual e foi ocupado pela desordem estabelecida. Mas os sobressaltos de emoção são momentâneos. A dialéctica da Imprensa impede a durabilidade das nossas indignações, já de si muito ténues e muito frágeis. Os velhos mortos na solidão de todas as mortes serão substituídos pela inclemência da eterna actualidade. Morrem e passam a número. A dissolução do humano assimilou os nossos mais pequenos gestos, as nossas mais escassas fraternidades. A vulgaridade dos factos torna-se banalidade. Chega a ser indecoroso o lado mau da vida que os jornais expõem. Mas é assim. E o que assim é tem muito peso. O peso escandaloso da insensibilidade.
Os nossos velhos não estão, apenas, a morrer nas suas casas geladas de calor humano. Estão a morrer nos jardins, sentados na distância de já haverem perdido o pessoal sentido de identidade. O tempo flui neles e sobre eles, e já lhes não interessa, sequer, a desolação do seu fim de vida. Estão a morrer em caixotes horrendos, os paióis para onde são despejados como inutilidades que se desprezam.
E os jornais vão fornecendo números, levando, finalmente, para as primeiras páginas, aqueles que sempre as tinham merecido. Não gostamos dos nossos velhos. Abandonamo-los nos hospitais, rasuramos da nossa memória os seus afagos de pais e avós, as atenções que nos concederam, o amor que nos ofereceram sem contingências.
Que estamos a fazer a nós próprios?

Baptista Bastos, AQUI

Quadro: Lucian Freud





8 comentários:

Keila Costa disse...

São os laços de afeto Paulo...cada vez mais frouxos sobrepujando essa imensa solidão, essa materialidade ao extremo, nós como seres em desmanche, a virar névoa que passou...'os insignificados'...
Beijinho procê

Ana Paula Sena disse...

É mesmo chocante este abandono, esta apatia em relação às pessoas mais velhas. Isto é indigno de uma sociedade dita civilizada. E este é também um dos grandes e urgentes problemas a resolver no presente e no futuro da humanidade. Porque cada vez mais nos confrontamos com o resultado de uma atitude superficial na avaliação que se faz do ser humano. Como se ele só tivesse valor enquanto instrumento para..., e não enquanto fim em si mesmo.

Terrível, Paulo. Terrível mesmo.

Teresa Santos disse...

Paulo, os nossos velhos, uma vez mais!
Perante estas situações, estes comportamentos, este desrespeito por eles, os sentimentos que me assaltam são muito pouco dignificantes, eu sei, mas não consigo controlá-los.
É a raiva, a vergonha, a impotência, é o querer responsabilizar aqueles, TODOS aqueles que nunca têm culpa, a começar pelos filhos e netos - para já não falar noutros familiares -, os serviços competentes, num rol que não tem fim.
E apetece-me pedir-lhes perdão, e apetece-me gritar bem alto: que raio de sociedade é esta?!

A disse...

Subscrevo totalmente.
A indiferença parece-me sempre indigna e torna-se absolutamente intolerável perante os mais fragilizados e que, por isso mesmo, mais atenção e cuidado precisam.

Mais uma vergonha para esta sociedade pseudo-desenvolvida.

Abraço.
PS. Perfeita, a escolha de L. Freud.

RC disse...

O texto é excelente e os comentários idem aspas. Os velhos, melhor, os idosos (não gosto da palavra velhos),são cada vez mais um fardo para uma sociedade que ainda não tomou verdadeira consciência deste fenómeno. Daqui por poucos anos, vamos ser nós e vamos ser tantos que o caos e a miséria, instalar-se-ão por completo.
Tendo em conta, as políticas sociais que têm sido criadas para proteger esta faixa etária (que eu considero nulas ou quase inexistentes), vamos todos morrer na mais completa penúria e solidão.

Não me perder em minha vida disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Não me perder em minha vida disse...

Muito oportuno. Entender e respeitar o envelhecer para também sermos felizes quando velhos

Paulo disse...

Keila, o "desenvolvimento" na Europa trouxe este drama que não estamos a ser capazes de resolver. Uma tragédia que começa a dar sinais.
Bjinho

Ana Paula, começa o iceberg a aflorar... As famílias estão em desagregação e a rede que constituiam no suporte aos mais débeis (crianças e velhos)rompe-se.Há cada vez mais pessoas velhas e estamos a ficar incapazes de lhes valer. terrível, diz bem.

Teresa, esta é a sociedade do imediato, do fugaz e das pessoas "bonitas". Não se vê um "velho" a apresentar um telejornal, a cantar ou a dirigir uma escola. Não fica bem, não é bonito, está "velho". Melhor é escondê-los, deixá-los fechados em casa ou deitados em camas de hospitais. Se não se veem, não existem.


Austeriana, a situação começa a ser também problemática em comunidades rurais onde, até aqui, as pessoas tinham acesso a bens de primeira necessidade. Estão, pois, velhos e sem outra geração a continuá-los. Porque os filhos emigraram (para as cidades ou o estrangeiro). E como já não se cultivam as batatas e o azeite como antes, os da cidade deixaram de ir: na Páscoa , no Natal e no Verão. E os velhos vão ficando sozinhos e mais velhos.
Abraço
relogio.de.corda, as políticas sociais são limitadas, é certo. Mas a desestruturação das famílias é a essência do abandono e da solidão dos velhos. E essa não depende dos governos.

Não me perder..., Verdade, nós os velhos de amanhã, teremos as respostas do que conseguirmos construir agora.
Obrigado