"E se tiver?", perguntei.
"Nesse caso, não é um homem, é um cobarde".
Cobarde: esta palavra assustava-me, não fosse eu merecê-la. Ao que parece, abundavam na família exemplos de coragem. Tios robustos, socadores. Bisavós remotos, frenéticos de audácias variadas. E eu?
Uma manhã, cruzei-me com outros dois garotos. Inesperadamente, recebo nas feições um bochecho de água volumoso, que um dos rapazes sorvera sabe-se lá aonde. Fez isto e ficou na minha frente, a rir-se. Pensei: esta é a prova. Não encontrei em mim qualquer capacidade de agressão, paralisado que ficara com receio de chumbar, por muito que soubesso de cor o catecismo de como um homem age quando insultado. Pelo que retomei o meu caminho.
Deliberadamente não limpei a cara até chegar a casa. Fui direito ao primeiro espelho, e só pensava: "Sou um cobarde". Fui ver-me ao espelho. Percebo agora como era novíssimo, porque fiquei sinceramente estupefacto ao me reconhecer. Ao perceber que continuava a ser o mesmo. Bom. Cobarde? Porque não?
Depois tive uma outra discussão na praia com outro garoto mais novo mas mais robusto.
"Prega dois selos se te atreves", disse-me ele. Pregar dois selos consistia em molhar os dedos médio e indicador com saliva, e esfregá-los no rosto do oponente. Era um insulto dos mais graves.
"E se eu não pregar dois selos?", perguntei.
"Então és um cobarde".
Fiquei imóvel. A gozar um sossego interior de maravilha, que se acentuou quando ele pregou dois selos na minha face direita.
"És um cobarde", disse o tipo.
"Eu sei que sou", disse eu. "E tu?" Lembro-me da calma maré baixa desse fim de tarde como de algumas pequenas grandes coisas que vivi ( as ondas de encontro aos tornozelos, reboladinhas e suaves, como gatos às voltas com pernas de peixeira). Sem perder um átomo dessa paz total, molhei os meus dois dedos na língua com um vagar de ritual. Depois preguei na cara do rapaz, não dois selos, mas uma bofetada colossal. Também nunca mais esquecerei o espanto furioso, bolachudo, daquele rosto, no segundo decorrido entre a estalada e a multidão de socos que acertámos um no outro antes que um guarda fiscal nos separasse chamando-nos selvagens.
Este segundo incidente não veio estragar oa experiência do primeiro, sublinhou-a. Relembro-os ambos como um só passo dos primeiros que me foi dado dar na direcção da inteligência. O que me paralisara da primeira vez fora a dúvida absurda de ser ou não ser. A segunda experiência de confronto foi o que foi porque eu perdera o medo de ter medo. Dali em diante aceitei a possibilidade de ter medo como aceitaria muitas outras coisas naturais (...).
Nuno Bragança, O Tempo e o Modo, Revista de Pensamento e Acção - Antologia,
Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Nacional de Cultura pp. 140-1
Pintura de Gaugin
Pintura de Gaugin
2 comentários:
Obrigado!
Pela simpática resposta. Dupla.
Um abraço
João Morais
João Morais, obrigado eu (nós). Contamos consigo. Abraço
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