03 novembro 2010

A espera

Esperei trinta e cinco anos por este dia. Nunca o toque a finados me tinha alegrado tanto. O filho da puta morreu. Até já parecia que a morte se havia esquecido dele. Não que ele me tenha feito qualquer mal. Ele apenas casou, sem o saber, com a mulher que eu amava.
Estive na Guerra de 14-18 e fui dado como morto. Quando voltei, ela tinha casado e, durante estes anos, contentei-me em vê-la de longe, sabendo que ela esperava por mim, como eu esperava por ela. Vivíamos os dois à espera que ele morresse. Qualquer doença, por simples que fosse, uma constipação, uma gripe, um resfriado, uma tosse, fazia-me rejubilar de esperança. Quando sabia que ele estava doente, dizia para mim próprio: "Será que é desta?" Mas o filho da puta enganava sempre a morte.
O tanger do sino, hoje, apenas veio confirmar aquilo que eu já sabia. Levantei-me e fiz o que faço religiosamente desde há trinta e cinco anos. Abri a gaveta da cómoda para cheirar a rosa seca e delida que ela me ofereceu em tempos, com o compromisso de só casar comigo. Olhei e nem queria acreditar, a flor reverdescera, como se tivesse acabado de ser colhida. Tanto tempo que eu esperei por isto, pensei, sorrindo.
Talvez seja já um pouco tarde, mas a minha mãe dizia-me sempre: "Mais vale tarde do que nunca". Por isso, vesti o fato que tinha comprado havia muito tempo para me casar com ela, calcei os sapatos pretos, pus a gravata, penteei os cabelos e coloquei a rosa na lapela do casaco. Depois, saí de casa, com a certeza de que nessa noite ia dormir com ela.
E foi mesmo isso que aconteceu.

Joaquim Mestre, Breviário das Almas, Oficina do LIvro, 2009

2 comentários:

RC disse...

Este texto de Joaquim Mestre não deixa de ter a sua graça. Acho que situações como esta, aconteceram imenso em épocas de guerra. Os homens partiam (muitos contra sua vontade, é certo)para cumprir uma missão, enquanto as suas amadas por aqui ficavam, fazendo como podiam pela vida.
A paciência sempre foi uma grande virtude mas há sempre quem não tenha paciência para esperar...

Keila Costa disse...

Lembra-me Gabriel García Márquez em "O amor nos tempos do cólera'...um tempo de amores difícieis...e hoje vejo quão atual são esses tempos difíceis...de tão pouca disponibilidade para o amor...não os 'impossíveis', mas os 'possíveis' mesmo...