26 abril 2011

A falta que faz o romantismo!


Até já?!
Mas esta gente pensa que haverá mesmo quem responda? Não acredito, sinceramente.
Bom, sei lá eu a precisão que para aí vai... Se calhar respondem. Romantismo a pagar?!
Não pagas para aderir, mas pagas para receber. É como votares num programa eleitoral e não receberes as promessas em troca, a não ser que pagues. E bem!
25 cêntimos de romantismo à la tmn é dinheiro. Ele há cada uma!: "Anime a sua vida". ... Pfff!

25 abril 2011

Para que é que a noite chega senão para procurar pássaros. Sobre a profundidade que abraça a minha varanda, assisto sem palavras à maré cega e astuta, aos seus lápis infatigáveis, ao pausado latejar concêntrico do seu coração. Por isso abandonei o sonho, saindo das suas mãos graças a um infinito estudo e a uma segura consagração. Agora estou inteiramente na atitude nocturna que as horas mais graves exigem. Fujo dos relógios, estabeleço distâncias invariáveis entre o meu corpo e o chamamento de campainhas e sinos. Apoiado na minha varanda por uma paciência ousada, vejo a rua encher-se de topázios, numa surda batalha de substituições até que as arestas de toda a construção são arrastadas pela maré daquilo que vem e as águas da sombra ascendem, com aspirados torvelinhos silenciosos até ao meu refúgio. Para que é que a noite chega se não é para procurar pássaros. Quando está junto a mim, abro os braços, bebo-a profundamente e deixo-me ir, já esquecido de resistências, como um falcão fulminado ou uma construção gótica.
(Julio Denis, XLI)

Julio Cortázar, Papéis Inesperados, Ed. Cavalo de Ferro,2010

20 abril 2011

Patrões e Capatazes


Passos Coelho disse-o com despudorada clareza: o programa de governo do PSD será o do FMI. E o mesmo acontecerá necessariamente com o do PS e o do CDS, partidos que, juntamente com o PSD, continuam em reuniões com os mandatários do FMI, BCE e UE para receber instruções ("negociações", chamam-lhes eles: o FMI, BCE e UE ditam e PS, PSD e CDS tomam nota, atrevendo-se eventualmente a alguma sugestão respeitosa...). Restam os programas do BE e do PCP, que conterão certamente medidas alternativas, mas não poderão, seja numa improvável participação no Governo seja na AR, alterar nada do que já tiver sido decidido pela coligação FMI/PS/PSD/CDS.
Pode, pois, perguntar-se para que é que haverá eleições senão para, à falta de pão, oferecer ao país duas ou três semanas de circo. As políticas para os próximos anos estarão, de facto, determinadas antes das eleições e independentemente dos resultados eleitorais e, depois delas, qualquer medida com impacto orçamental, mínimo que seja, do Governo ou do Parlamento, terá que ir a despacho aos tutores do país.
A suspensão da democracia sugerida por Manuela Ferreira Leite durará pelo menos três anos, durante os quais nos caberá tão só eleger capatazes que executem as ordens de Washington (FMI), Frankfurt (BCE) e Bruxelas (Comissão).
Por muito menos foi a estátua de Camões, quando do ultimato inglês, coberta de crepes pelos antepassados políticos do actual PS.

Manuel António Pina, JN
Fotografia: Richard Avedon

18 abril 2011

Haeven



Preconceito, intolerância, violência, mais preconceito, intolerância, violência.
Na Europa ou em África. Na escola, no deserto e na oficina.
Estes são alguns dos elementos que compõem o quotidiano do mundo actual, onde se cruzam as pequenas tragédias individuais e domésticas, que não chegam a ser notícia, com as devastadoras calamidades que enchem os noticiários e a “boa consciência” dos países ricos.
No filme de Susanne Bier, a origem, o ponto de partida é o mesmo: a intolerância. Ela é a presença constante em todos os conflitos da narrativa.
Um dos protagonistas é, aliás,  levado a combater a (mesma) estrutura mental dos déspotas em África num ambiente de absoluta carência e na sua pequena e confortável cidade dinamarquesa. Apenas muda a escala.
Em UM MUNDO MELHOR (Hæven)  está o retrato rigoroso e adequado do lugar onde vivemos.
Com uma realização muito segura, uma deslumbrante fotografia e uma música fantástica.

13 abril 2011

O engraxador


Há descobertas saborosas... vozes a despontar com grande segurança, e que sabe bem ouvir em dias de algum descanso e descontracção, pois assim podemos apreciá-las melhor.
Com temas em português e inglês, Luisa Sobral - cantora, compositora, letrista e instrumentista - traz-nos ritmos pop e jazzísticos com um timbre bem agradável. Aos 23 anos, com um percurso entre Lisboa e os Estados Unidos, a jovem promete. Digam lá que não...   
Mais informação sobre o seu primeiro trabalho pode ser encontrada aqui ou ali.
Abram os links em novos separadores e, entretanto, vão ouvindo, lá em cima, outros temas do seu álbum de estreia:  The cherry on my cake. 

11 abril 2011

Mutatis mutandis...*


Foi nos idos de 80, os jovens já não são os mesmos, e há aqueles com quem o sistema conta, que ele apadrinha.
E, todavia, *há que mudar o que tem de ser mudado.

10 abril 2011

Sobre a Fé


"Às oito da manhã, o padre Duncan, o padre Heriberto e o padre Luis começam a insuflar o templo, isto é, estão na orla de um rio ou numa clareira na selva ou numa aldeia qualquer quanto mais tropical melhor e, com a ajuda da bomba instalada no camião, começam a insuflar o templo enquanto os índios das redondezas os contemplam de longe e um pouco estupefactos porque o templo que a princípio era como uma bexiga esmagada começa a endireitar-se, arredondar-se, esponja-se, no alto aparecem as três janelinhas de plástico colorido que vêm a ser os vitrais do templo, e por fim salta uma cruz no ponto mais alto e já está, plop, hossana, soa a buzina do camião à falta de sino, os índios aproximam-se assombrados e respeitosos e o padre Duncan incita-os a entrar enquanto o padre Luis e o padre Heriberto os empurram para que não mudem de ideias, de maneira que a missa começa assim que o padre Heriberto instala a mesinha do altar e dois ou três adornos com muitas cores que portanto têm de ser extremamente santos, e o padre Duncan canta um cântico que os índios acham extremamente parecido com os balidos das suas cabras quando um puma anda perto, e tudo isto acontece numa atmosfera extremamente mística e uma nuvem de mosquitos atraídos pela novidade do templo, e dura até um indiozinho que se aborrece começar a brincar com a parede do templo, isto é crava-lhe um ferro apenas para ver como é aquilo que se insufla e obtém exactamente o contrário, o templo desinsufla precipitadamente e na confusão todo o mundo se atropela à procura da saída e o templo envolve-os, esmaga-os, abriga-os sem lhes fazer mal algum claro mas criando uma confusão nada propícia à doutrina, principalmente quando os índios têm ampla ocasião de ouvir a chuva de coños e caralhos que os padres Heriberto e Luis distribuem enquanto se debatem debaixo do templo à procura da saída".

Julio Cortazar, Papéis Inesperados, Ed. Cavalo de Ferro, 2010

Pintura: Antonio Berni

06 abril 2011

A essencialidade da escrita


...O comboio arrancou. Logo a seguir começaram a desfilar pelas janelas o relógio, o chefe da estação, o vulto de um velhote sacudindo uma lanterna, as sentinas HOMENS, SENHORAS; e, pronto, a luz recortou-se nas vidraças, correu por terrenos baldios.
"Vai assim o cabo". O revisor fez um gesto com os dedos a explicar a que ponto o outro ia encolhido. "Assim", disse ele. "A esta hora nem um feijão lhe cabe no rabo".
Foi assim, neste quadro, que o Oito-Correio partiu da estação de Pinhal Novo, levando na carruagem da cauda um revisor de terceira, um negociante e três correços sentados no banco fundeiro, conduzidos por uma escolta de seis praças e um cabo. E todos eles, passageiros e militares, iam envolvidos numa poeira pesada de fumo de tabaco e de luz bacienta, e todos gingavam os corpos aos solavancos da carruagem..."

José Cardoso Pires, Carta a Garcia in Jogos de Azar, Ed. Leya 2011

A escrita depurada de José Cardoso Pires transporta  o leitor  em viagens fascinantes.
A reedição da coletânea de contos Jogos de Azar coloca-nos nas mãos alguns dos melhores textos do género escritos no século XX em Portugal.
É uma escrita com fortíssimos traços cinematográficos, adoptando um ritmo e sequências narrativas vigorosas que nos prendem desde as primeiras linhas. 
Acresce a excelente Introdução (A Charrua entre os Corvos), onde Cardoso Pires, em 1963, defende a importância da abordagem literária de alguns fenómenos de exclusão social, traduzida na maioria destes contos sobre os  desocupados, "gente destituída de autoridade e, por isso, condenada a tropeçar a cada passo nos caprichos daqueles que a detêm como exclusivo".
A sua análise, apesar da linguagem cifrada dado o contexto em que foi escrita, não podia ser mais actual.

04 abril 2011

Uma história de amor entre dois eunucos chineses


«Os quatrocentos eunucos da velha casa imperial chinesa foram desterrados e apenas dois permaneceram no mosteiro, nascendo entre eles uma grande amizade, a tal ponto que não podiam mover-se nos corredores e no jardim sem estarem juntos.
Falavam das nuvens que vagam e das sombras dos pássaros pelas pedras do horto. Mas alguma coisa cavou um espaço entre eles. Como se, inexplicavelmente, estivessem melhor isolados. Pelo menos um dos dois, o mais velho, parecia comportar-se assim. Arrastava-se pelas esquinas e preferia os confins do jardim. O outro seguia-o à distância. Observava-o, estudava-o para perceber o que poderia ter acontecido. Talvez estivesse mal e quisesse morrer sem perturbar e sem ser perturbado. Um dia notou que escrevia sobre uma folha de papel. Mesmo à luz da candeia o via escrever coisas que depois, secretamente, em alguma parte escondia. Procurou aquelas folhas. Devorava-o um desejo de alcançar aquele diário íntimo. Como lhe parecia ter visto o amigo fazer, removeu as pedras do jardim e revistou o interior das fendas do velhíssimo pavimento. Finalmente um dia encontrou-o. Leu às escondidas o que estava escrito:

Segunda Feira
Desde que comecei a escrita do diário vejo que te interessas ainda muito por mim.

Terça Feira
Sinto que desejas ler o que escrevo.

Quarta Feira
Hoje removi as pedras no horto para que pensasses que escondia aí estas páginas. E, de facto, tu repetiste os meus gestos e ficaste desiludido.

Quinta Feira
Leio nos teus olhos que estás a sofrer. Então é verdade que ainda me queres bem.

Sexta Feira
Hoje quero que encontres estas pequenas linhas e percebas que és a minha vida.

Depois de ler chorou. E viu que, junto ao canavial, também o outro chorava.»


Tonino Guerra, Histórias para uma Noite de Calmaria, Ed. Assírio e Alvim, 2002.
Fotografia: Maleonn Ma

03 abril 2011

Celebrar um amigo



INSTANTES

Que o instante seja água,
gota de sol declinada nas mãos.

Que o brilho se desfaça em nó solto
num castelo de frutos, no longe sôfrego.

Todas as árvores são a minha solidão,
O meu duelo de passeios,
A grande sombra de um céu quebrado a meio,

Eu passo pelo sonho no declive,
pelos pássaros perdidos augurando água,
todos vêm aos meus ombros pousar, são de vento,
Desfazem-se das ramadas,
colhem a finitude do tempo.

Eu sonho muito além, onde o sangue pulsa ainda o coração do sol
E as minhas mãos de solidão defesa, estão lavadas.

José Ribeiro Marto