...O comboio arrancou. Logo a seguir começaram a desfilar pelas janelas o relógio, o chefe da estação, o vulto de um velhote sacudindo uma lanterna, as sentinas HOMENS, SENHORAS; e, pronto, a luz recortou-se nas vidraças, correu por terrenos baldios.
"Vai assim o cabo". O revisor fez um gesto com os dedos a explicar a que ponto o outro ia encolhido. "Assim", disse ele. "A esta hora nem um feijão lhe cabe no rabo".
Foi assim, neste quadro, que o Oito-Correio partiu da estação de Pinhal Novo, levando na carruagem da cauda um revisor de terceira, um negociante e três correços sentados no banco fundeiro, conduzidos por uma escolta de seis praças e um cabo. E todos eles, passageiros e militares, iam envolvidos numa poeira pesada de fumo de tabaco e de luz bacienta, e todos gingavam os corpos aos solavancos da carruagem..."
A escrita depurada de José Cardoso Pires transporta o leitor em viagens fascinantes.
A reedição da coletânea de contos Jogos de Azar coloca-nos nas mãos alguns dos melhores textos do género escritos no século XX em Portugal.
É uma escrita com fortíssimos traços cinematográficos, adoptando um ritmo e sequências narrativas vigorosas que nos prendem desde as primeiras linhas.
Acresce a excelente Introdução (A Charrua entre os Corvos), onde Cardoso Pires, em 1963, defende a importância da abordagem literária de alguns fenómenos de exclusão social, traduzida na maioria destes contos sobre os desocupados, "gente destituída de autoridade e, por isso, condenada a tropeçar a cada passo nos caprichos daqueles que a detêm como exclusivo".
A sua análise, apesar da linguagem cifrada dado o contexto em que foi escrita, não podia ser mais actual.
5 comentários:
Sem dúvida actual, Paulo. E ainda uma lufada de ar fresco na abordagem à situação em que nos encontramos.
Um abraço.
Ana Paula, olá.
A questão do posicionamento social e político da criação artística foi amplamente debatida por todo o século XX.
O destaque que entendi dar à pequena coletânea de Cardoso Pires decorre, desde logo, pelo lugar singular que tem a sua escrita nos escritores nossos contemporãneos e, por outro lado, pelos textos que a compõem. A qualidade literária é indiscutível e a escolha dos seus protagonistas entre os que chama desocupados, "a gente distituída de autoridade", define exactamente o lado escolhido pelo escritor. Isso mesmo é por ele explicado na introdução.
No contexto da ditadura, em 63, não era a posição mais cómoda. Como hoje, embora numa sociedade diferente, não o é.
Bj
Nada como um desfile de 'objetos'pelo vão de uma janela qualquer, ainda mais aqueles quadros a parecer instantâneos ao movimento do comboio...e tudo não anda passando aos nossos olhos assim, como uma janela de comboio? Rápido e imediato...inclusive o olhar que não se põe com frequência a mirar todos os homens...Belo excerto!
Beijos
Keila, obrigado. José Cardoso Pires é um escritor português que aconselho conheça. Exemplar a sua escrita depurada e muito trabalhada. Aprende-se imenso com ele.
Beijos
imenso José Cardoso Pires!
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