04 abril 2011

Uma história de amor entre dois eunucos chineses


«Os quatrocentos eunucos da velha casa imperial chinesa foram desterrados e apenas dois permaneceram no mosteiro, nascendo entre eles uma grande amizade, a tal ponto que não podiam mover-se nos corredores e no jardim sem estarem juntos.
Falavam das nuvens que vagam e das sombras dos pássaros pelas pedras do horto. Mas alguma coisa cavou um espaço entre eles. Como se, inexplicavelmente, estivessem melhor isolados. Pelo menos um dos dois, o mais velho, parecia comportar-se assim. Arrastava-se pelas esquinas e preferia os confins do jardim. O outro seguia-o à distância. Observava-o, estudava-o para perceber o que poderia ter acontecido. Talvez estivesse mal e quisesse morrer sem perturbar e sem ser perturbado. Um dia notou que escrevia sobre uma folha de papel. Mesmo à luz da candeia o via escrever coisas que depois, secretamente, em alguma parte escondia. Procurou aquelas folhas. Devorava-o um desejo de alcançar aquele diário íntimo. Como lhe parecia ter visto o amigo fazer, removeu as pedras do jardim e revistou o interior das fendas do velhíssimo pavimento. Finalmente um dia encontrou-o. Leu às escondidas o que estava escrito:

Segunda Feira
Desde que comecei a escrita do diário vejo que te interessas ainda muito por mim.

Terça Feira
Sinto que desejas ler o que escrevo.

Quarta Feira
Hoje removi as pedras no horto para que pensasses que escondia aí estas páginas. E, de facto, tu repetiste os meus gestos e ficaste desiludido.

Quinta Feira
Leio nos teus olhos que estás a sofrer. Então é verdade que ainda me queres bem.

Sexta Feira
Hoje quero que encontres estas pequenas linhas e percebas que és a minha vida.

Depois de ler chorou. E viu que, junto ao canavial, também o outro chorava.»


Tonino Guerra, Histórias para uma Noite de Calmaria, Ed. Assírio e Alvim, 2002.
Fotografia: Maleonn Ma

3 comentários:

Mar Arável disse...

Repito

Um dia seremos crianças

para amarmos melhor o mundo

RC disse...

Que belo texto.

Keila Costa disse...

Belo, simples e puro, como deveria ser o amor. Beijos