Para que é que a noite chega senão para procurar pássaros. Sobre a profundidade que abraça a minha varanda, assisto sem palavras à maré cega e astuta, aos seus lápis infatigáveis, ao pausado latejar concêntrico do seu coração. Por isso abandonei o sonho, saindo das suas mãos graças a um infinito estudo e a uma segura consagração. Agora estou inteiramente na atitude nocturna que as horas mais graves exigem. Fujo dos relógios, estabeleço distâncias invariáveis entre o meu corpo e o chamamento de campainhas e sinos. Apoiado na minha varanda por uma paciência ousada, vejo a rua encher-se de topázios, numa surda batalha de substituições até que as arestas de toda a construção são arrastadas pela maré daquilo que vem e as águas da sombra ascendem, com aspirados torvelinhos silenciosos até ao meu refúgio. Para que é que a noite chega se não é para procurar pássaros. Quando está junto a mim, abro os braços, bebo-a profundamente e deixo-me ir, já esquecido de resistências, como um falcão fulminado ou uma construção gótica.
(Julio Denis, XLI)Julio Cortázar, Papéis Inesperados, Ed. Cavalo de Ferro,2010
5 comentários:
(...) e se não for senão para procurar pássaros... então, logo que chegar a alvorada é de gritar urgentemente: não passarão!...
Coisa mais linda esse 'procurar pássaros'...
Beijos
Não existem amanhãs promissores
sem belas memórias
(...) nunca gostei de brincar com assuntos sérios, mas alerto a Keila para o perigo de nos colocarem à caça dos gambozinos...[procurar pássaros de ficção]!
Só um pouquinho de humor saloio!
Cumprimentos de amizade,
César
Acabei de ganhar o tempo a procurar os significados gambozinos e saloios seus César...Se não for ningúem a nos enganar com falsas promessas por pura picardia, acho até válido acreditar em gambozinos...rsrs
Abraços procê!
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