27 outubro 2012

... da solidão


.... A minha casa, ou lá o que é, assenta, entre outros, sobre dois duvidosos pilares: Nietzsche e Groucho Marx.... E sobre a sabedoria das nações correcta e aumentada: mais vale só do que acompanhado (mesmo que bem acompanhado). Pelo menos às vezes.
Nietzsche tem-me chegado por muitos lados, até directamente. Desta vez chegou-me por Visconti, via Burt Lencaster, na cozinha de um velho palácio veneziano, em "Violência e Paixão": as águias planam solitárias, os corvos é que andam em bandos. E Groucho orgulhosamente por ele próprio: "Nunca farei parte de um clube que aceite tipos como eu como membros".
Tudo isto a propósito de outro dia ter lido em "O Comércio do Porto", e em prosa, Eugénio de Andrade, um grande e generoso poeta, queixar-se da sua solidão. Porque ai de nós, acho eu, se não tivéssemos para nos recolher esse imenso país, a solidão; e esse outro país, igualmente único e imenso, o esquecimento. Compreendo, julgo que compreendo, e no fundo do coração, o que sente Eugénio de Andrade.(...) Mas viver sempre, e acompanhado, rodeado de gente, mesmo dos melhores e mais amados amigos, do ruído das vozes, do moroso calor dos corpos, da presença das coisas e dos sentidos, da imperiosa vida e do imperioso tempo, cansa também tanto! (...).
Os homens precisam (acho eu, que sou jornalista já vai para mais de 20 anos) da solidão, da sua pura e irreparável comida. Eu é que sei e, como eu, sabem-no os homens condenados ao ruído e à luz intolerável dos dias e das coisas comuns, dos telefonemas, das notícias, das exclamações, das escolhas, dos nomes, do comércio triste das palavras. 
Eugénio de Andrade nunca passará um dia na redacção de um jornal, mas sabe (eu sei que sabe) o que quero dizer.
Nem Frei Luis de Léon ( a crónica hoje virou-se definitivamente para os poetas ) penou o inferno quotidiano dos escritórios, das salas de espera, dos cafés, das gares ou de outras metáforas do obscuro vampiro da vida lá de fora. Mas também saberia (eu sei que saberia) o que quero dizer.
Conta Borges que Poe ( e Poe também saberia o que quero dizer!) conhecia de cor um poema juvenil de Frei Luis de Léon : "Vivir quiero conmigo / gozar quiero del bien que debo al Cielo / a solas, sin testigo / libre de amor, de celo / de ódio, de esperanza, de recelo ". 
Não queria pouco, o bom augustiniano : o Paraíso!

Manuel António Pina, JN 4/12/91

3 comentários:

CCF disse...

Tão bem dito, tão próximo do que qualquer um de nós sente...
~CC~

Paulo disse...

Como só os poetas sabem...

via disse...

grande, grande filme!