(depois, volte a ouvir e a ler as vezes que apetecer).
...Quando Thelonious se senta ao piano, toda a sala se senta com ele e produz um murmúrio colectivo do tamanho exacto do alívio, porque o percurso tangencial de Thelonious pelo palco tem qualquer coisa de rigorosa cabotagem fenícia com prováveis encalhamentos nas Sirtes, e quando a nave de mel obscuro e capitão barbudo chega ao porto, é recebida pelo cais maçónico do Victória Hall com um suspiro como que de alas apaziguadas, de cais alcançado. Então é o Pannonica ou o Blue Monk, três sombras como espigas rodeiam o urso entretido a investigar as colmeias do teclado, as garras toscas e bondosas vão e vêm por entre abelhas desconcertadas e hexágonos de sustenido, passou apenas um minuto e já estamos na noite fora do tempo, a noite primitiva e delicada de Thelonious Monk.(...)Depois, quando Charles Rouse dá um passo na direcção do microfone e o seu saxo desenha imperiosamente as razões pelas quais ali está, Thelonious deixa cair as mãos, ouve por um instante, pousa ainda um leve acorde com a esquerda, e o urso levanta-se e abana-se, farto de mel ou à procura de um musgo propício para a modorra, sai do tamborete e apoia-se na ponta do piano, marcando o ritmo com um sapato e o barrete (...) dando imperceptivelmente início a um safari de dedos pela borda da caixa do piano enquanto se balança cadenciadamente porque Rouse, o contrabaixista e o percussionista estão enredados no próprio mistério da sua trindade, enquanto Thelonious viaja vertiginoso sem se mover (...) Charles Rouse está a deixar as últimas, veementes, largas e admiráveis pinceladas de roxo e vermelho, sentimos o vazio de Thelonious,(...) a interminável diástole de um só coração imenso onde latem todas as nossas dores, e é exactamente nesse momento que a sua outra mão se apropria do piano, regressa nuvem a nuvem até ao teclado, passeia os dedos indecisos pelo ar, deixa-os cair e estamos salvos, temos Thelonious capitão, há rumo para um bom bocado, e o gesto de Rouse ao recuar, enquanto desprende o saxo do suporte, tem algo de entrega de poderes, de legado que devolve ao Doge as chaves da sereníssima.
Julio Cortázar, A Volta ao Piano de Thelonious Monk
A fantástica descrição de J. Cortázar do Concerto de Telonious Monk no Victória Hall de Genebra (Março de 1966), de que transcrevi um fragmento, é uma peça literária que mostra e sublinha o valor de um dos maiores escritores do século XX. Aqui
...Quando Thelonious se senta ao piano, toda a sala se senta com ele e produz um murmúrio colectivo do tamanho exacto do alívio, porque o percurso tangencial de Thelonious pelo palco tem qualquer coisa de rigorosa cabotagem fenícia com prováveis encalhamentos nas Sirtes, e quando a nave de mel obscuro e capitão barbudo chega ao porto, é recebida pelo cais maçónico do Victória Hall com um suspiro como que de alas apaziguadas, de cais alcançado. Então é o Pannonica ou o Blue Monk, três sombras como espigas rodeiam o urso entretido a investigar as colmeias do teclado, as garras toscas e bondosas vão e vêm por entre abelhas desconcertadas e hexágonos de sustenido, passou apenas um minuto e já estamos na noite fora do tempo, a noite primitiva e delicada de Thelonious Monk.(...)Depois, quando Charles Rouse dá um passo na direcção do microfone e o seu saxo desenha imperiosamente as razões pelas quais ali está, Thelonious deixa cair as mãos, ouve por um instante, pousa ainda um leve acorde com a esquerda, e o urso levanta-se e abana-se, farto de mel ou à procura de um musgo propício para a modorra, sai do tamborete e apoia-se na ponta do piano, marcando o ritmo com um sapato e o barrete (...) dando imperceptivelmente início a um safari de dedos pela borda da caixa do piano enquanto se balança cadenciadamente porque Rouse, o contrabaixista e o percussionista estão enredados no próprio mistério da sua trindade, enquanto Thelonious viaja vertiginoso sem se mover (...) Charles Rouse está a deixar as últimas, veementes, largas e admiráveis pinceladas de roxo e vermelho, sentimos o vazio de Thelonious,(...) a interminável diástole de um só coração imenso onde latem todas as nossas dores, e é exactamente nesse momento que a sua outra mão se apropria do piano, regressa nuvem a nuvem até ao teclado, passeia os dedos indecisos pelo ar, deixa-os cair e estamos salvos, temos Thelonious capitão, há rumo para um bom bocado, e o gesto de Rouse ao recuar, enquanto desprende o saxo do suporte, tem algo de entrega de poderes, de legado que devolve ao Doge as chaves da sereníssima.
Julio Cortázar, A Volta ao Piano de Thelonious Monk
A fantástica descrição de J. Cortázar do Concerto de Telonious Monk no Victória Hall de Genebra (Março de 1966), de que transcrevi um fragmento, é uma peça literária que mostra e sublinha o valor de um dos maiores escritores do século XX. Aqui
4 comentários:
tanto. tanto. obrigada.
[é tão urgente passar por aqui. quando regresso, é o que sinto. bom fim semana a todos.]
Boa associação sem dúvida...
Que fantástica entrada Paulo se la remitiré a mi hermano que adora el jazz y todo la musica negra, obrigada porque a mi me además me gusta la buena literatura...
feliz puente.
un abrazo
Obrigados nós, Marta. Venha sempre, muito, íssimo :):)
MJFalcão, é, sem dúvida, invulgar a escrita de J.C.. Consegue mostrar o movimento e as sensações do momento de uma forma única.
É uma ponte muito interessante, mas de J.Cortázar, com uma escrita poderosa e muito visual.
Abraço
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