25 julho 2010

Um escrito como uma declaração de guerra


«Os espaços de anonimato representam um verdadeiro desafio para a teoria revolucionária. O estatuto político dos espaços de anonimato (o não serem homogéneos, adicionáveis…) é função e já chega determinado pela essência da própria força do anonimato. É ela que lhes confere aquelas que são as suas características principais: ausência de reivindicação, articulação em torno de um gesto radical que se repete, não-futuro, politização apolítica. A força do anonimato aparece-nos quando tentamos pensar a radicalização da impotência. Essa força vem, então, ter connosco. Com toda a sua carga dissolvente e, ao mesmo tempo, portadora de promessas. Com toda a sua ingovernabilidade. Sentimos a impotência face a essa mobilização global que se faz de nós, connosco — contra nós — que unifica realidade e capitalismo, que proclama «Não há nada a fazer» . Esta frase, «não há nada a fazer» é uma frase estranha que em nada se assemelha a outras frases aparentemente parecidas: não podemos fazer nada, é impossível fazer seja o que for… «Não há nada a fazer» é o nome para uma bifurcação que conduz a dois lugares completamente diferentes: «Não se pode fazer nada» e «Tudo está por fazer». O primeiro caso não nos interessa. O segundo, sim. Quando se diz, de facto, «Não há nada a fazer» porque se bateu realmente no fundo e já não resta esperança alguma, o que então se abre é uma travessia do niilismo. Aí, sim, podemos afirmar que «Tudo está por fazer». A travessia do niilismo inaugurada pelo «Não há nada a fazer» não é outra coisa senão a radicalização da impotência. Uma radicalização que nos conduz ao que Artaud denominava o im-poder. Para ele, radicalizar a impotência é o mesmo que fazer a experiência do im-poder. A impotência aparece referida na sua correspondência com Rivière como a impossibilidade de pensar. A análise deste «querer pensar mas não poder pensar» constituirá o núcleo de todo o primeiro escrito de Artaud. Rapidamente essa impossibilidade haverá de estender-se ao próprio viver. Quero viver, mas não consigo viver."


Santiago López-Petit, in A Mobilização Global, seguido de O Estado-Guerra, Deriva Editores, 2010
Imagem: Federico Moroni, Ciclista.

10 comentários:

César Ramos disse...

Acabei agora de ler este post e, ao chegar ao fim, pareceu que ainda não tinha acabado um pequeno trabalho que acabei há pouco no MUNHO sobre Clarice Lispector.
Ainda não foi desta que escrevi o que me apetece expor sobre ela.
O post de hoje, foi um pequeno "treino" pois tenho um compromisso de escrever algo mais completo, ainda que nunca venha a ser um tratado.
Gostei muito deste texto, mas dado o adiantado da hora, vou fazer amanhã um comentário mais a propósito!

Boa noite, que é como quem diz: quase bom dia!

Cumpts.
César

Keila Costa disse...

E como é sintomático esse 'não há o que fazer', um sintoma da incapacidade que nos impingem e nós tolos ficamos convencidos, adormecidos, impotentes em meio a tanta potência de fazer...
Abraços

Carlos Pires disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Carlos Pires disse...

Não é verdade que tudo esteja por fazer. Tal como não é verdade que não se pode fazer nada.
Muito já foi feito e muito resta por fazer. Mas a via revolucionária defendida pelo autor é, como já se viu muitas vezes, um caminho para o desastre. O resultado de uma revolução não é (nunca foi até à data e a natureza humana sugere que nunca será) uma sociedade livre, justa e aberta, mas uma sociedade fechada e ainda menos livre e justa que a sociedade que a precedeu. Uma das coisas que os revolucionários não percebem é que, por muito que se mude e se evolua, restará ainda sempre muito para fazer. E é bom que assim seja.

Paulo disse...

O "não há nada a fazer" é um dos argumentos ideológicos dos detentores do poder que querem evitar a mudança. Assim procuram desmobilizar os que buscam transformar. Não concordo com a ideia de que o resultado de uma revolução seja " uma sociedade fechada e ainda menos livre e justa que a sociedade que a precedeu...".
Há muitas vezes imperceptíveis mudanças que levam a novas e maiores alterações, por vezes de forma pouco linear, com avanços e recuos, mas que, globalmente, trazem sempre maior abertura e mais avanço em relação às precedentes. Se quem faz a revolução se acomoda e sente a conquista dos objectivos porque luta como obra acabada, perde a capacidade de continuar a ser um agente transformador, ficando ele próprio nesse contexto a encabeçar o movimento de (novos)"não há nada a fazer".
A História mostra que nessa altura, outros aparecerão no combate pela mudança.
Inevitavelmente.

C. disse...

Carlos Pires,

obrigada pela visita.
Não creio que a via revolucionária de López-Petit seja um caminho para o "desastre", antes uma proposta de reflexão crítica sobre uma realidade (que se afigura cada vez mais) de sentido único, e que cria uma "sociedade do mal estar".
Concordo que não devemos adoptar uma postura cínica e negar o passado, mas o facto é que também temos aprendido pouco com ele.

Como diz a Keila: " ficamos impotentes" - e é disto que falam os escritos de LP. Da urgência de exercer o pensamento crítico, construir (colectivamente) uma vida política, como forma de sabotagem da realidade.

A realidade que nos é imposta e que organiza o mundo é profundamente tautológica e tem o capital como única verdade. Ninguém é capaz de colocar no centro do debate a necessidade de transformação social verdadeira. Apenas ouvimos cínicas propostas de reformular os fundamentos éticos do capitalismo.
Dito de outra forma: como politizar a existencia, i.e., resistir ao poder, quando estamos cada vez mais sós, abandonados a nós mesmos, quando o capitalismo se confunde com a realidade, e a própria vida (o ir vivendo) parece constituir-se como uma forma de domínio?
Claro que isto remete para um pensamento sobre a crise de sentido (da vida, do mundo) que atravessa a realidade.
Ora, justamente porque esta realidade tritura as nossas vidas, existe um profundo mal estar social. Daí que Petit fale em: mobilização; em política do "querer viver" como desafio; em nihilismo como esvaziamento que faz ultrapassar o medo de agir. Porque só decidimos "querer viver" quando o querer viver se debilita.
Como ele diz: “é preciso brandir a quietude - amando, pensando e resistindo - e fazer explodir o que há de indomável em cada um, com a certeza de que o ódio à vida (vazia de pensamento) é a faísca para incendiar a própria vida.”

(é a minha interpretação, claro está :-))

um abraço

Carlos Pires disse...

C.:

O capitalismo não merece o mau nome que tem. O capitalismo tem os defeitos dos seres humanos, mas também as suas qualidades. Precisa de ser regulado, sem dúvida, mas não extinto. Eu tenho um miserável ordenado de professor e gosto de viver num sistema capitalista. Todas as alternativas conhecidas são muito piores e são incompatíveis com a natureza humana. Se um dia surgir um sistema melhor óptimo - mas esse sistema nada terá a ver com os delírios socialistas e revolucionários. Prefiro mil vezes a exploração capitalista que o totalitarismo sanguinário de Mao Tse Tung ou dos Kmers Vermelhos! Leia o '1984' de Orwell e fica vacinada contra estes revolucionários de pacotilha!

A disse...

Já não vou escrever o que pensei após ler o post. A razão tem que ver com a troca de opiniões que aqui encontrei.

Lembrei-me daquele famoso aforismo a que muitos recorrem -"Nothing can surpass the mystery of stillness" - e que faz com que nada mude. Como poderemos saber se as mudanças não são melhores, se não as experimentarmos? Não se trata de repetir a História. Trata-se de aprender com ela, pensando-a. É essa a interpretação que faço do excerto e também me parece que a função do texto literário é dar-nos a entender a natureza humana, como, de resto,provam os comentários.
Abraço.

C. disse...

Carlos,

Não me lembre as vacinas, que só me fizeram bem e foram dadas atempadamente.
É curioso que tenha escolhido esta sátira do Orwell, autor um tanto negligenciado em Portugal.
Ora veja lá se, mutatis, mutandis, o esvaziamento mental provocado pela “Novilíngua” de hoje não é o mesmo. As práticas sistémicas de controlo que nós, cidadãos ofuscados com o pós-modernismo, julgamos já passadas, hoje, revelam-se progressivamente, ainda que de forma subliminar e simuladamente humanizada, de uma grande actualidade.
Ainda bem que referiu Orwell. Fez-me lembrar o “Big Brother” do álbum “2 Diamand Dogs”, do David Bowie – mas isso deve ser também, para si, música de pacotilha.

Conhece certamente as obras de SLP. Caso contrário, leia, p. ex., "Amar y Pensar". Talvez depois lhe passe essa fixação de que quem fala de alternativas e de “atacar a realidade” tem que estar forçosamente a falar de Pol Pot, de Mao, de Estaline e tantos outros de má memória, para quem o pensamento se reduziu à lógica do poder totalizante.

C. disse...

Olá Austeriana!

Pelo contrário: há que ultrapassar esse mistério. E sem que se repita a História, como muito bem refere. Evitando o léxico panfletário (o que me parece que o autor nem sempre consegue...).
Como ele afirma, é essa paixão do “querer viver” (a que ele chama “ódio livre” e, portanto, sem objecto específico, sem o efeito trágico desse tipo de sentimento) que permite o pensar (e falar) numa (auto)transformação, cujo resultado seja um homem mais livre e corajoso. Porque, de facto, trata-se de uma paixão pela vida que, ao invés de a exacerbar (criando as imagens de vidas plenas de felicidade que tão bem conhecemos, ou de alimentar à náusea a estetização da existência) delimita a vida. Coloca-a na fronteira que estabelece “o- que-não-estou-disposto-a-viver”. Expulsa o medo.
É que mesmo os cidadãos interessados e informados contentam-se com o seu elevado grau de interesse e informação e negam-se a ver que se abstiveram da decisão e da acção. Logo, o seu contacto secundário com o mundo da realidade política é sempre uma acção indirecta.
Isto tem a ver com uma politização da existência, com o facto de pensarmos efectivamente em poder ter uma vida política – individual ou colectiva. Não significa necessariamente ser membro activo de um partido, sindicato e muito menos de qualquer grupo extremista (à direita e à esquerda, bem entendido). Como refere o autor, trata-se de “permanecer de pé, sem nos ajoelharmos perante a realidade” que, por ser absoluta, se dá a ver como óbvia. Quem se dispõe, pois, a “atacar” o óbvio?
É difícil? Ah, pois é. Talvez por isso se possa falar ainda de desafios.
São escritos que interpelam, justamente no sentido de “darem a pensar”. A sofrível tradução é que é uma pena.

Um abraço