25 abril 2011

Para que é que a noite chega senão para procurar pássaros. Sobre a profundidade que abraça a minha varanda, assisto sem palavras à maré cega e astuta, aos seus lápis infatigáveis, ao pausado latejar concêntrico do seu coração. Por isso abandonei o sonho, saindo das suas mãos graças a um infinito estudo e a uma segura consagração. Agora estou inteiramente na atitude nocturna que as horas mais graves exigem. Fujo dos relógios, estabeleço distâncias invariáveis entre o meu corpo e o chamamento de campainhas e sinos. Apoiado na minha varanda por uma paciência ousada, vejo a rua encher-se de topázios, numa surda batalha de substituições até que as arestas de toda a construção são arrastadas pela maré daquilo que vem e as águas da sombra ascendem, com aspirados torvelinhos silenciosos até ao meu refúgio. Para que é que a noite chega se não é para procurar pássaros. Quando está junto a mim, abro os braços, bebo-a profundamente e deixo-me ir, já esquecido de resistências, como um falcão fulminado ou uma construção gótica.
(Julio Denis, XLI)

Julio Cortázar, Papéis Inesperados, Ed. Cavalo de Ferro,2010

5 comentários:

César Ramos disse...

(...) e se não for senão para procurar pássaros... então, logo que chegar a alvorada é de gritar urgentemente: não passarão!...

Keila Costa disse...

Coisa mais linda esse 'procurar pássaros'...
Beijos

Mar Arável disse...

Não existem amanhãs promissores

sem belas memórias

César Ramos disse...

(...) nunca gostei de brincar com assuntos sérios, mas alerto a Keila para o perigo de nos colocarem à caça dos gambozinos...[procurar pássaros de ficção]!

Só um pouquinho de humor saloio!

Cumprimentos de amizade,
César

Keila Costa disse...

Acabei de ganhar o tempo a procurar os significados gambozinos e saloios seus César...Se não for ningúem a nos enganar com falsas promessas por pura picardia, acho até válido acreditar em gambozinos...rsrs
Abraços procê!