27 fevereiro 2010

Canalhices, canalhas, PDMs e lucro



Eu vou reconstruir isto, diz o outro.

Agora deixem-no, com os amigos construtores, sem vigilância, a reconstruir "isto".

25 fevereiro 2010

As memórias da Memória


O momento mais antigo que a minha memória recorda decorre aos três anos de idade, quando nasceu um bebé lá em casa.
Segundo vários investigadores, os adultos não conseguem recordar acontecimentos ocorridos antes dos três anos de idade. Este facto, chamado por alguns de amnésia infantil, é um fenómeno sentido por quase toda a gente. Por vezes surge alguma confusão entre o que realmente temos como memórias da infância e aquilo que sobre os acontecimentos foi sendo construído por relatos ouvidos mais tarde, na adolescência ou já na idade adulta.
Sabe-se, no entanto, que as crianças têm, até aos cinco ou seis anos, excelentes capacidades mnésicas. Para onde irão, então, essas recordações mais iniciais?
As teorias freudianas dão-nas como reprimidas no inconsciente e, embora podendo influenciar os comportamentos adultos, não serão nunca acessíveis a não ser por métodos regressivos especiais.
Outros tentam explicar esta incapacidade de lembrar com o tipo de codificação infantil usado no seu armazenamento que será o que as torna inacessíveis. Ou seja, as incapacidades cognitivas próprias da primeira infância originam registos ilegíveis (tal como o estudante que memoriza sem entender, esquece rapidamente o que memorizou).
Outras teses perspectivam a referida amnésia na imaturidade do sentido de si, próprio da criança. Segundo estas, a criança só guardará memórias autobiográficas na idade em que tenha um conjunto de referências que lhe possibilitem ver-se nos acontecimentos. Isto não é possível antes dos quatro, cinco anos, quando as suas capacidades cognitivas lho permitem.
É por isso, e antes que me escape, que guardo ciosamente e recordo com tanto prazer aquele dia de Agosto, quando nasceu um bebé lá em casa.


(leitura Aqui , Aqui, Aqui)

23 fevereiro 2010

Rui

Auf Widersehen

Dificilmente poderiamos ser mais diferentes.
Eu de direita, ele de esquerda;
eu católico praticante, ele sem Deus nem transcendência;
eu pró-vida, ele liberal;
eu com 41, ele com 63;
eu casado militante, ele solteirão inveterado;
eu falador compulsivo, ele calado e reservado.
Partilhamos o mesmo escritório oito horas por dia, durante dezassete anos.
De manhã cumprimentavamo-nos invariavelmente em japonês ou em chinês,
encerravamos o dia com um sonoro e bem disposto auf wiedersehen.
Pelo meio discutiamos projectos, trocavamos ideias,
discordavamos abundantemente e respeitavamo-nos sempre,
sem excepção.
Lentamente ficamos amigos.
Lentamente, aprendi a apreciar o seu espirito delicado,
a admirar a sua inquebrantável verticalidade,
a compreender a sua rebelde independência.
Compreendia a amizade que me tinha quando,
aqui e ali,
se permitia partilhar o orgulho embevecido que sentia
com os sucessos do sobrinho,
a admiração com que seguia discreto a vida da irmã.
Não lhe era fácil esta partilha, mas confiava em mim a esse ponto.
Quando me trazia um livro ou um disco, deixava-o silenciosa e discretamente na minha secretária.
Quando eu lhe agradecia, murmurava: pensei que pudesse interessar-lhe...
Era o meu amigo Rui.
Partiu hoje, discreto como só ele, com a voz sumida, mas com o espirito indomável, como sempre.
A esta hora acredito que o meu Deus esteja impaciente, confuso, quase a duvidar da sua própria existência, é que o Rui não é para brincadeiras, nem cederá.
O Rui recusar-se-á a aceitar, mas estará no sitio dos rectos, dos dignos e dos justos; de lá, olhará pelas suas ovelhas
e seguirá a vida dos que sem saberem lhe importam muito.
Vai fazer-me falta.
Como nos bons tempos,
Sayonara Sacramento San!

Este o testemunho de um homem digno, falando de outro que foi livre e dono do seu destino como nenhum. (Aqui).
Com o Rui, aprendi eu o encanto da Ria nos verões da adolescência, a dureza do exílio quando ainda tanto se sonhava e, agora na sua última lição, como se enfrenta a morte com os olhos abertos, um cigarro nos lábios e o jazz a tocar em fundo.
Foto: "Amanhecer na Ria" Aqui

21 fevereiro 2010

O Pequeno Pastor


tudo no teu sorriso diz
que só te falta um pretexto
para seres feliz

uma querela talvez chegasse
ou um pequeno pastor que passasse
na estrada, com suas ovelhas

um rio, um pormenor
que no momento se pousasse
e o tornasse melhor
eu
vou pensando em coisas velhas
-sem sombra de desdém-
na vida
naquele lampejo fugace
que o teu sorriso já não tem

e que é do passado
porque a nossa grande sabedoria
não soube tratar ente tão delicado
e declina, o dia
o pequeno pastor já não vem

(poema e imagem de Mário de Cesariny)


Das coisas da Natureza ou da natureza das coisas


Quando surgem cataclismos como o que ocorreu na Madeira, e que nos deixam sem palavras, chego a pensar que a Natureza se revolta em formas catastróficas de aviso. Bem sei que o retrocesso é impossível e que o futuro do homem é sempre o de um tempo a haver. Mas interrogo-me: que tempo será?
E só me vem à memória o Caeiro - natural, antimetafísico, simples como um girassol.

Ah querem uma luz melhor que a do Sol!
Querem prados mais verdes do que estes!
Querem flores mais belas do que estas que vejo!
A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me.
Mas, se acaso me descontentam,
O que quero é um sol mais sol que o Sol,
O que quero é prados mais prados que estes prados,
O que quero é flores mais flores que estas flores –
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!

Aquela coisa que está ali estava mais ali que ali está!
Sim, choro às vezes o corpo perfeito que não existe.
Mas o corpo perfeito é o corpo mais corpo que pode haver,
E o resto são os sonhos dos homens,
A miopia de quem vê pouco,
E o desejo de estar sentado de quem não sabe estar de pé.
Todo o cristianismo é um sonho de cadeiras.

E como a alma é aquilo que não aparece,
A alma mais perfeita é aquela que não apareça nunca —
A alma que está feita com o corpo
O absoluto corpo das coisas,
A existência absolutamente real sem sombras nem erros
A coincidência exacta (e inteira) de uma coisa consigo mesma.

Poesia de Alberto Caeiro, Colecção: "Obras de Fernando Pessoa", Assírio & Alvim, 2009.

18 fevereiro 2010

Eu sou o dono do meu destino

No mais recente filme de Clint Eastwood, Invictus, há um momento determinante para o futuro do jovem capitão da equipa de rugby sul africana: Mandela ensina-lhe, através da leitura de um poema, como encontrou a força necessária para vencer a adversidade, a dor e as constantes tentativas de humilhação do apartheid. Um poema "vitoriano" escrito por William Ernest Henley em 1875.
Pela oportunidade, pela beleza e pela homenagem a todos os que enfrentam o mal de frente e, com a força das convicções são donos dos seus destinos, aqui fica na voz de Alan Bates.
(esqueçam o patrocínio da UBS).




Out of the night that covers me,
Black as the Pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find, me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.

Despontando


Não gosto que me tirem as coisas do sítio
O sítio pode ser o Mundo ou o meu País
A minha cidade o bairro a rua a casa
Os papeis da secretária os talheres da gaveta
A coleira do cão os óculos de ver ao perto
Nem os óculos de ver ao longe
Isso então nunca ah nunca
Sou dona do meu olhar
E o que vejo está lá
Não me desarrumem a cidade
Por favor

Citando Arsélio Martins:
O que se vê de Aveiro, do mesmo modo se vê dos outros lugares. Tentamos ler e escrever do nosso ponto de vista. Tanto pode ser diferente como igual ao ponto de vista dos outros, quem quer que sejam. Não lutamos pela diferença nem pela igualdade na escrita. Interessam-nos outras igualdades e respeitamos muitas diferenças, mas nem todas.


16 fevereiro 2010

Entrudo lusitano



O amor a Portugal e a mágoa, a dor e a melancolia incurável de ter visto a luz «neste país perdido», é um topos camoniano que percorre como um veneno, como uma maldição e às vezes como uma utopia regeneradora e uma visão futurante a literatura portuguesa, desde Garrett e sobretudo desde o tempo finissecular oitocentista até Pessoa, Torga, Manuel Alegre, Ruy Belo e outros autores, e que eu vivo dramaticamente. Um topos camoniano que se converte irremediavelmente num tropo do camonismo. Felizes, neste país cronicamente pobre, endividado, injusto, em estado permanente de «ruína cultural», como disse Pessoa, só alguns gestores e alguns economistas…


Victor Aguiar e Silva na Angelus Novus, em entrevista sobre Jorge de Sena e Camões, Janeiro de 2010
Desenho de C. - "Desolação"

14 fevereiro 2010

Autoridade e Liberdade são uma e a mesma coisa


Autoridade é do que é autor.
Só a autoridade confere autoridade.
A autoridade não é quantidade.
Todo o homem é teatro de uma inexpugnável autoridade.
Aquele que julga ser possível autorizar ou desautorizar a autoridade de outrem não sabe no que se mete.
Liberdade.
A liberdade conhece-se pelo seu fulgor.
Quatro homens livres não são mais liberdade do que um só.
Mas são mais reverbero no mesmo fulgor.
Trocar a liberdade em liberdades é a moda corrente do libertino.
Pode prender-se um homem e pô-lo a pão e água.
Pode tirar-se-lhe o pão e não se lhe dar a água.
Pode-se pô-lo a morrer, pendurado no ar, ou à dentada, com cães.
Mas é impossível tirar-lhe seja que parte for da liberdade que ele é.
Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra o que nos oprime.
Quanto mais perseguido mais perigoso.
Quanto mais livre mais capaz.
Do cadáver dum homem que morre livre pode sair acentuado mau cheiro – nunca será um escravo.
Autoridade e Liberdade são uma e a mesma coisa.

Mário Cesariny
Pintura: Mark Rothko

13 fevereiro 2010

O segredo da mulher descalça (2)


O narrador vem com as mãos molhadas e procura secá-las na camisa suada enquanto se senta de novo. Observa como a mulher se inclina para o barman e lhe dá uma ordem em tom decidido. Tem uma mão pousada no ombro do cego, o que parece acalmá-lo.
Então, meu caro, que sabe você do casalinho desavindo? Pergunta, num tom sussurrado, olhando o homem da pasta. O poeta chega-se à frente e apoia os cotovelos na mesa, secundando a pergunta do parceiro.
Além de ser secretário do Dr. Osvaldo há cinco anos, menos um do que os que leva de cegueira total, conheço toda a história dos dois. Triste, muito triste.
O narrador olha o casal com redobrada atenção. Vê-lhes as costas, estão inclinados sobre o balcão e conversam num tom que lhe é desconhecido quando pensa em casos de rotura amorosa. Não fora a alça rasgada do vestido da mulher e dir-se-ia que namoravam.
Parece terem feito as pazes, acrescenta o poeta com curiosidade mal disfarçada .
Procura constantemente temas que façam ponte para o diálogo com o homem. A ansiedade e angústia para conhecer toda a trama assim lho exigem.
Medeia, murmura o oriental de olhar fixo nas costas do casal.
Medeia, repete de rosto fixo, perante o espanto dos companheiros de mesa.
O narrador entrega-lhe uma cerveja fresca, enquanto sugere hesitante:
Isso é Sófocles, não? Tragédia grega…
Eurípedes, quatrocentos e trinta depois de Cristo, mas a história repete-se. Na vida destes dois, assim foi. Uma paixão que teve tanto de súbita como de avassaladora. A jovem universitária que há vinte anos se apaixona pelo mestre durante uma conferência, que abandona todos os projectos que tinha e o segue para Israel onde vão viver, num Kibutz. Ali trabalham, amam e vivem mil aventuras sonhadas. Têm dois filhos, gémeos, hoje adultos. São felizes, saboreiam o amor.
Os dois homens, sedentos de outras vidas, bebem as palavras que lhes chegam como um elixir milagroso.
Você conheceu-os lá? O jovem poeta anseia por mais.
Não, nesse tempo estava longe, terminava os meus estudos em Hong Kong. Esclarece em tom confidencial. Foi pouco depois de terem nascido os gémeos que tudo se passou numa vertigem: a paixão dele que fenece, a chegada da filha do chefe ao Kibutz e a sua rápida ligação com Osvaldo.
O narrador lança um olhar jornalístico ao casal no balcão, de costas voltado para eles, à procura de um detalhe que revelasse a sua história.
Ouve, a confirmação das piores previsões com a mulher a ficar sozinha, em terra estranha, responsável pelos gémeos, o homem a mudar de casa para ficar junto do Rabi do Kibutz e da filha.
Creusa? Interrogou o jovem.
Como? O secretário, distraído, não acompanhava o poeta.
Chamava-se Creusa, a filha do chefe?
Não, nem o pai Creonte. Agora sorri e acrescenta: mas, como um raio, sabe-se em todo o Kibutz que Ester, assim se chamava, estava grávida.
A traição deixou a mulher destroçada mas, nas palavras do secretário, determinada a tomar o destino nas mãos.
Vingou-se? Perguntou, atento, o poeta.
O secretário interrompe a narrativa e fica pensativo uns segundos. Não é a primeira vez que a questão se lhe põe, tem a resposta preparada.
Conhecendo-a como conheço hoje, não creio que tenha pensado nesses termos. A vida é que é muito ardilosa e ela sabia-o bem.
Conta-lhes como ela, numa manhã, algumas semanas depois, levou os filhos de jipe até ao deserto, num passeio habitual e que eles adoravam, fotografou-os e fotografou-se em mil brincadeiras com eles. As películas ficaram nas mochilas das crianças quando os deixou no infantário estatal. Saiu do Kibutz a pé.
Ninguém mais soube dela, nem mesmo aos filhos deixou qualquer outra mensagem que eles pudessem vir a conhecer. Alguém afirmou que a vira mais tarde perto de Beirute, outros na Síria, mas nada de concreto.
E foi nessa mesma tarde que Osvaldo deixou de ver, acrescentou.
Cego? Indaga, espantado, o narrador, enquanto prolonga o olhar até à rua. Repara nas janelas do prédio em frente onde se espelha, amarelado, o sol que agora se põe.
Assim, sem mais? Interroga o jovem poeta, incrédulo, enquanto acende um cigarro.
O homem confirma, acrescentando dados estranhos: a cegueira foi tão dramática pela sua súbita instalação como pela aceitação que Osvaldo manifestou, recusando ser visto por qualquer médico. Naquele dia e sempre.
Sentiu como um castigo, afirma o poeta, cada vez mais envolvido.
Como Jasão, acrescenta espantado. E Ester? Pergunta a medo.
Não suportou o embate, nunca entendeu a recusa dele em ser tratado. Separaram-se logo a seguir e foi viver com a filha para Tel Aviv.
As frases do secretário são disparadas com rapidez, enquanto olha atento o casal, há longos minutos em conversa confessional no balcão.
Está mais solto, agora que três novas cervejas vão refrescando as três bocas e a sua memória. Parece esperar a pergunta inevitável que o narrador jornalista tem quase a obrigação de fazer.
E você, como conheceu o seu patrão?
Conheci-o em Buenos Aires, por acaso, cerca de um ano depois de ter cegado.

10 fevereiro 2010

Quadros urbanos

Título: Interacções verbais e o significado pragmático -------- dos enunciados
Série: Quadros urbanos
Técnica mista - 25x20cm
2010

1.  

2.

Há poucos dias, pelo fim da tarde e à saída da escola, no calor da discussão um dos dois jovens vira-se para o colega e dispara, aguerrido:
- Olha lá, mas porque é que estás a falar assim pra mim, pá? Pensas que estás a falar com um professor, ou quê?

 (Desculpem lá.  Sei que a ministra mudou, e parece dialogante. Mas eu tenho andado com pouca imaginação para escrever sobre as moscas.)

09 fevereiro 2010

Um Ano


Um ano Marcante:



Para cortar o silêncio e (a)largar o canto das tribos, fomos construindo o marcasdagua, um blogue articulado por três pessoas que se gostam, reconhecem e respeitam.

Festejamos hoje um ano de alegre partilha.



---------------- Fizemos amigos,


----------------------------------gritámos,----------chorámos,


----------------------------------- rimos,


-----------------festejámos, ---------convocámos.





Viva o Marcas!


Clara

C.

Paulo

06 fevereiro 2010

O segredo da mulher descalça



Vemos este homem e esta mulher juntos no final de uma sufocante tarde de Verão em Lisboa. Entram no Bar, primeiro ela, de vestido rasgado e um pé descalço, depois ele, com o sapato que pensa ser dela na mão.
Veste de forma irrepreensível, segue-a cambaleando, passa com dificuldade entre as mesas, parece hesitar, mas quer o perdão dela, o homem de quarenta anos, cego há cinco.
A mão que agora o impede de cair está agarrada ao balcão enquanto diz à mulher, ferida pelo seu amor, que ela cheira a Verão.

O narrador, sentado numa mesa junto à janela, observa um segundo homem que entra logo a seguir ao casal.
Troca um olhar de surpresa com o jovem poeta que está sentado há horas a seu lado.
Estão apaixonados, confidencia-lhe o poeta, segurando uma imperial meia vazia e já quente.
Conhece-os? O jovem abana a cabeça sem o olhar, vira-se agora também para a porta.
E aquele, quem será?
O segundo homem permanece de pé junto à porta, estático, ar oriental, cabelo de corte militar com tons aloirados, magro, com um fato escuro de péssimo corte que contrasta com o fato elegante do primeiro. Segura na mão direita a bengala do cego e tem uma pasta moderna presa por uma algema dourada ao pulso esquerdo.

O Bar está cheio, mas todas as conversas estão suspensas, com a maioria dos clientes a olharem fixamente a cena.
Em pouco tempo as vozes sobem de novo de tom e, progressivamente, apaga-se o silêncio.
O narrador termina a imperial num golo demorado inclinando a cabeça para trás e convida o segundo homem a sentar-se com eles à mesa.
Pede três imperiais e fazem espaço para se sentarem confortavelmente. O empregado pousa as imperiais na mesa, deixando um longo e não disfarçado olhar de curiosidade sobre o segundo homem. Sai depois para a esplanada.
O homem fala com um estranho sotaque. Nasceu em Macau, diz. É o secretário do primeiro homem e mantém uma espessa reserva sobre os acontecimentos.
O jovem poeta insiste no vestido rasgado, no pé descalço, mas o secretário olha o vazio com o rosto sem expressão. Abraça a pasta no colo com indisfarçável cuidado.
O narrador não retribui o silêncio do homem: identifica-se como jornalista, mas oculta os três casamentos e os filhos mal conhecidos. Fala duma ida a Macau, sem outra resposta senão o silêncio.
Quando se levanta para ir à casa de banho, o oriental parece ficar mais distendido com o poeta.
Olha com curiosidade o seu ar vagamente nórdico, fato de linho branco com sapatilhas azuis e, sobretudo, o relógio colorido no pulso direito. Indaga do conteúdo do saco de plástico pousado no chão e fica tranquilo com a resposta do jovem:
Livros, são poemas da minha autoria
Sabe, tudo isto vai ser ainda uma grande tragédia diz, inclinando o corpo sobre a mesa e olhando agora o poeta nos olhos
Ia continuar, mas a súbita chegada do narrador fá-lo calar-se de novo.
(continua)

04 fevereiro 2010

As revoltas da Madeira, quando o povo não brincava ao Carnaval



A 4 de fevereiro de 1931,celebram-se hoje 79 anos, os madeirenses revoltaram-se num movimento que ficou conhecido como a Revolta da Farinha.
Esta revolta foi seguida, cerca de um mês depois, pela chamada Revolta da Madeira um dos primeiros fortes movimentos de massas contra a ditadura saída do 28 de maio de 1926.
Na origem da Revolta da Farinha esteve um Decreto de Janeiro desse ano (1931), que estabelecia o monopólio da moagem e que ficou, então, conhecido como o "Decreto da Fome".
Este diploma entregava a importação de trigo e farinhas para a região, até aí livre, a um grupo monopolista de moageiros.
A contestação popular começou com uma grande manifestação pública em 29 de Janeiro.
A 4 de Fevereiro, a divulgação na imprensa da decisão do governo da ditadura levou à rebelião popular, originando motins de rua que duraram até ao dia 9, tendo a repressão provocado 5 mortos e muitos feridos.
Do governo central chegou no dia 9 uma força militar para a região com poderes especiais, discricionários, para realizar prisões e deportações.
A revolta foi esmagada, mas todo o terror repressivo desencadeado levou a que em Abril surgisse a Revolta da Madeira com a criação de um Governo democrático que governou, até se render, entre 11 de Abril e 2 de Maio.

02 fevereiro 2010

O Caçador


É uma pessoa agradável, conhece bem um vinho, balança o copo com destreza, a ver o tom, a sentir o perfume, senta-se com elegância, pega bem nos talheres, não põe os cotovelos na mesa, sabe contar uma graça a propósito, levanta-se quando chega uma senhora, se for casada ou viúva saberá beijar-lhe a mão, aflorando simplesmente, usa bem um lenço de seda, talvez com o colarinho aberto, oscila entre a calça de bombazine com bota alentejana, ou prefere a fazenda .cinzenta e o blazer azul escuro,ah,, sim, os botões de metal, já me esquecia.
Sim, gosta de carros antigos, ou então do jipe, porque com os cães, quando há batidas, ou caçadas, já se sabe como é.
Eu vou olhando, comparando, os homens da minha terra são do mar, passeiam na avenida como se fora no convés de um navio, as mãos atrás das costas, boné na cabeça e um andar balanceado,
por causa da nortada.
Este não, pisa terra firme e tem olhar certeiro, na mira, cofiando o bigode retorcido.
À saída, veste a samarra com pele de uma belo animal.
-De que é essa gola, pergunto.
-De raposa.
E remata, orgulhoso:
-Fui eu que a matei.
Abre-me a porta do carro, solícito.


(imagem do Google, sem autor)

01 fevereiro 2010

Mário Crespo, querem silenciar uma voz livre


O jornalista Mário Crespo vai abandonar a sua colaboração como colunista no Jornal de Notícias, depois de ter sido informado que a sua coluna semanal de opinião – onde revelava conversas hostis de membros do Governo - não ia ser hoje publicada no jornal.
O artigo em causa descreve conversas mantidas entre José Sócrates, o ministro da presidência, Silva Pereira, o ministro dos assuntos parlamentares, Jorge Lacão, e um executivo de media, onde os membros do governo se referiram a Mário Crespo como “mais um problema a resolver”. Em declarações ao Negócios, o jornalista revela que foi informado à meia-noite de hoje, por José Leite Pereira, director do título, de que o artigo não ia ser publicado.
“Ficou assente a não publicação do artigo e que eu não voltaria a escrever num jornal sob a direcção dele [José Leite Pereira]”, diz Mário Crespo. Até ao momento, não foi possível entrar em contacto com o director do jornal da Controlinveste...
Filipe Pacheco, Jornal de Negócios

Lemos, relemos e já nem náusea se sente. Parece tudo aceitável, toda a indignidade possível, toda a prepotência natural. E, no entanto, paulatinamente vão construindo o medo, calando as vozes livres, excluindo a dignidade da cidade onde cada vez mais impera a maldade e o nojo.

Avaliação, mérito e golpe de vista


Esqueçam o nome da pessoa mencionada no louvor. Vamos cingir-nos ao que é importante.
Os dirigentes são credíveis, quando pautam os seus comportamentos pela coerência. Já conhecíamos as inflexíveis exigências antitabágicas de alguém que fumava em transgressão à lei sempre que tinha oportunidade. Ou que não se importou de "dar o nome" para aparecer como responsável de projectos de marquises em vivendas de gosto duvidoso.

Com este despacho, ficamos a saber como avalia os seus colaboradores, aquele que, em tempos, foi o paladino das avaliações (dos outros) na função pública. Bastaram-lhe 4 (quatro?!) dias de (excelente) observação.
Notável.