13 fevereiro 2010

O segredo da mulher descalça (2)


O narrador vem com as mãos molhadas e procura secá-las na camisa suada enquanto se senta de novo. Observa como a mulher se inclina para o barman e lhe dá uma ordem em tom decidido. Tem uma mão pousada no ombro do cego, o que parece acalmá-lo.
Então, meu caro, que sabe você do casalinho desavindo? Pergunta, num tom sussurrado, olhando o homem da pasta. O poeta chega-se à frente e apoia os cotovelos na mesa, secundando a pergunta do parceiro.
Além de ser secretário do Dr. Osvaldo há cinco anos, menos um do que os que leva de cegueira total, conheço toda a história dos dois. Triste, muito triste.
O narrador olha o casal com redobrada atenção. Vê-lhes as costas, estão inclinados sobre o balcão e conversam num tom que lhe é desconhecido quando pensa em casos de rotura amorosa. Não fora a alça rasgada do vestido da mulher e dir-se-ia que namoravam.
Parece terem feito as pazes, acrescenta o poeta com curiosidade mal disfarçada .
Procura constantemente temas que façam ponte para o diálogo com o homem. A ansiedade e angústia para conhecer toda a trama assim lho exigem.
Medeia, murmura o oriental de olhar fixo nas costas do casal.
Medeia, repete de rosto fixo, perante o espanto dos companheiros de mesa.
O narrador entrega-lhe uma cerveja fresca, enquanto sugere hesitante:
Isso é Sófocles, não? Tragédia grega…
Eurípedes, quatrocentos e trinta depois de Cristo, mas a história repete-se. Na vida destes dois, assim foi. Uma paixão que teve tanto de súbita como de avassaladora. A jovem universitária que há vinte anos se apaixona pelo mestre durante uma conferência, que abandona todos os projectos que tinha e o segue para Israel onde vão viver, num Kibutz. Ali trabalham, amam e vivem mil aventuras sonhadas. Têm dois filhos, gémeos, hoje adultos. São felizes, saboreiam o amor.
Os dois homens, sedentos de outras vidas, bebem as palavras que lhes chegam como um elixir milagroso.
Você conheceu-os lá? O jovem poeta anseia por mais.
Não, nesse tempo estava longe, terminava os meus estudos em Hong Kong. Esclarece em tom confidencial. Foi pouco depois de terem nascido os gémeos que tudo se passou numa vertigem: a paixão dele que fenece, a chegada da filha do chefe ao Kibutz e a sua rápida ligação com Osvaldo.
O narrador lança um olhar jornalístico ao casal no balcão, de costas voltado para eles, à procura de um detalhe que revelasse a sua história.
Ouve, a confirmação das piores previsões com a mulher a ficar sozinha, em terra estranha, responsável pelos gémeos, o homem a mudar de casa para ficar junto do Rabi do Kibutz e da filha.
Creusa? Interrogou o jovem.
Como? O secretário, distraído, não acompanhava o poeta.
Chamava-se Creusa, a filha do chefe?
Não, nem o pai Creonte. Agora sorri e acrescenta: mas, como um raio, sabe-se em todo o Kibutz que Ester, assim se chamava, estava grávida.
A traição deixou a mulher destroçada mas, nas palavras do secretário, determinada a tomar o destino nas mãos.
Vingou-se? Perguntou, atento, o poeta.
O secretário interrompe a narrativa e fica pensativo uns segundos. Não é a primeira vez que a questão se lhe põe, tem a resposta preparada.
Conhecendo-a como conheço hoje, não creio que tenha pensado nesses termos. A vida é que é muito ardilosa e ela sabia-o bem.
Conta-lhes como ela, numa manhã, algumas semanas depois, levou os filhos de jipe até ao deserto, num passeio habitual e que eles adoravam, fotografou-os e fotografou-se em mil brincadeiras com eles. As películas ficaram nas mochilas das crianças quando os deixou no infantário estatal. Saiu do Kibutz a pé.
Ninguém mais soube dela, nem mesmo aos filhos deixou qualquer outra mensagem que eles pudessem vir a conhecer. Alguém afirmou que a vira mais tarde perto de Beirute, outros na Síria, mas nada de concreto.
E foi nessa mesma tarde que Osvaldo deixou de ver, acrescentou.
Cego? Indaga, espantado, o narrador, enquanto prolonga o olhar até à rua. Repara nas janelas do prédio em frente onde se espelha, amarelado, o sol que agora se põe.
Assim, sem mais? Interroga o jovem poeta, incrédulo, enquanto acende um cigarro.
O homem confirma, acrescentando dados estranhos: a cegueira foi tão dramática pela sua súbita instalação como pela aceitação que Osvaldo manifestou, recusando ser visto por qualquer médico. Naquele dia e sempre.
Sentiu como um castigo, afirma o poeta, cada vez mais envolvido.
Como Jasão, acrescenta espantado. E Ester? Pergunta a medo.
Não suportou o embate, nunca entendeu a recusa dele em ser tratado. Separaram-se logo a seguir e foi viver com a filha para Tel Aviv.
As frases do secretário são disparadas com rapidez, enquanto olha atento o casal, há longos minutos em conversa confessional no balcão.
Está mais solto, agora que três novas cervejas vão refrescando as três bocas e a sua memória. Parece esperar a pergunta inevitável que o narrador jornalista tem quase a obrigação de fazer.
E você, como conheceu o seu patrão?
Conheci-o em Buenos Aires, por acaso, cerca de um ano depois de ter cegado.

7 comentários:

relogio.de.corda disse...

Reparo agora que houve episódios anteriores...Esta narrativa combina na perfeição com o dia de hoje, embora eu faça parte daquele grupo de pessoas que não festeja efusivamente dias com "acontecimentos" pré-definidos.
Felicito o autor. Está muito bem, continue.

Paulo disse...

relogio.de.corda, estamos no mesmo grupo (dos que não festejam efusivamente dias...), que será, por certo, também o grupo dos que gostam de uma boa estória. Obrigado pela presença, continue a vir. Abraço

A disse...

Já vim até aqui duas ou três vezes para ler este episódio. Venho agora juntar-me ao grupo dos que apreciam uma boa história. :)
Parabéns!

César Ramos disse...

(...) linda narrativa! Continuamos no Bar mas, não esqueçamos que estes recintos - como os táxis - são ambientes de verdadeiros confessionários! Não!... não tem nada a vêr com o álcool!Há uma espécie de cumplicidade mística, como aquela que certas pessoas encontram nos "chats"!

Nascem impulsos de verdade e muita autênticidade transpira naqueles ambientes de azul, sob uma luz negra.

Neste caso, temos ainda nomes mágicos: Kibutz, Creusa, Ester, Tel Aviv...!
Um tipo sente-se, e eu sinto-me, testemunha da escrita de novas páginas acrescidas ao Antigo Testamento, no século XXI (...)

Além de me juntar ao grupo interessado no futuro destas vidas,
também me incluo entre os que não gostam de 'correr a foguetes' por datas pré-fabricadas!

Leia-se: não choro nem rio, por obrigação.

Vamos ao episódio seguinte!
Por agora, parabéns e um abraço.

César Ramos

Paulo disse...

Austeriana, boas histórias é aqui mesmo... pelo menos tenta-se :):):)
César Ramos, Avé, tentemos não colocar a fasquia muito alto, que é como quem diz lançar muitos foguetes antes do fim...:)
Abraço

César Ramos disse...

Paulo,

OK, sejamos coerentes! já que não apreciamos festejos efusivos, dispensemos portanto o foguetório e, limitemo-nos a um final bem humano (...) seja ele feliz, ou não!
Será sempre Humano.

Um abraço
César

"Avé!"[mania das grandezas e fasquias altas...]

Marta disse...

Paulo, li esta. e devo ter perdido mais. vou à procura.

muito bom. para não variar.

já estava com saudades de o ler/de os ler.

abraço.