11 março 2010

Sinto-me um idiota

Hoje em dia tenho a certeza de que não ser idiota é das coisas mais importantes na vida de um homem, até que pouco a pouco o vou esquecendo, porque o pior é que no final me esqueço; por exemplo, acabo de ver um pato que nadava num dos lagos do Bois de Boulogne, e ele era de uma beleza tão maravilhosa que não pude evitar agachar-me junto ao lago e deixar-me ficar não sei quanto tempo a observar a sua formosura, a alegria petulante dos seus olhos, aquela dupla linha delicada que corta o seu peito na água do lago e se vai abrindo até se perder com a distância. O meu entusiasmo não nasce apenas com o pato, trata-se antes de qualquer coisa que o pato cristaliza num dado momento, porque às vezes pode ser uma folha seca que se balança na ponta de um banco, ou uma grua alaranjada, enorme e delicada contra o céu azul da tarde, ou o cheiro de um vagão de comboio quando uma pessoa entra e se tem um bilhete para uma viagem de muitas horas e tudo se vai sucedendo prodigiosamente (....) e tudo me preenche como uma espécie de salgueiro interior, de uma verde chuva de delícia que nunca mais devia terminar. Porém, já muita gente me disse que o meu entusiasmo é uma prova de imaturidade (de idiotice, querem eles dizer, mas escolhem as palavras) e que não nos podemos entusiasmar assim por causa de uma teia de aranha que brilha ao sol, uma vez que se uma pessoa incorre em semelhantes excessos por causa de uma teia de aranha cheia de orvalho, o que é que vai guardar para a noite em que houver o King Lear? A mim isso surpreende-me um pouco, porque na verdade o entusiasmo não é uma coisa que se gaste quando se é realmente idiota, gasta-se quando uma pessoa é inteligente e tem a noção dos valores e da historicidade das coisas, e é por isso que mesmo que eu ande a correr de um lado para o outro no Bois de Boulogne para ver melhor o pato, isso não me vai impedir de nessa mesma noite dar saltos enormes de entusiasmo se gostar da forma como Fisher Dieskau canta. Agora que penso nesse assunto, a idiotice deve ser isso: o poder entusiasmar-se a toda a hora com qualquer coisa de que uma pessoa goste, sem que um desenhito numa parede tenha de se ver diminuído pela memória dos frescos de Giotto em Pádua. A idiotice deve ser uma espécie de presença ou de recomeço constante: agora gosto desta pedrinha amarela, agora gosto de L'année dernière à Marienbad, agora gosto de ti, ratita, agora gosto dessa locomotora incrível a bufar na Gare de Lyon, agora gosto desse cartaz arrancado e sujo. Agora gosto, gosto tanto, agora sou eu, um eu reincidente, idiota perfeito na sua idiotice que não sabe que é idiota e desfruta perdido no seu prazer, até que a primeira frase inteligente o devolva à consciência da sua idiotice e o faça procurar apressadamente um cigarro com as mãos desajeitadas, olhando para o chão compreendendo e às vezes aceitando porque um idiota também tem de viver, claro que até que outro pato ou outro cartaz, e assim sempre.

Julio Cortazar, A Volta ao Dia em 80 Mundos, Cavalo de Ferro, 2009
Foto: C.

6 comentários:

PAS[Ç]SOS disse...

Quem me dera a mim, também, ser idiota. Ou melhor, saber ser idiota para desfrutar dos prazeres que cada pormenor com que me cruzo, me pode proporcionar. Ou ainda mais: lembrar-me de ser idiota e gostar de gostar, sem me cansar de me repetir. Pois quando se gosta, gosta-se de repetir. Por idiotice… seguramente! Porque se é feliz!

César Ramos disse...

Idiota não,

mas passar por parvos, às vezes dá jeito!
É uma estratégia de guerrilha que tem de ser bem orientada, para não cairmos em terrenos minados ou em areias movediças.
Sei lá bem o que estou a dizer! Saí, com o m/bloguesinho, de uma área pantanosa, quase que por acaso, após uma virose electrónica!

Feito esperto, não fui a lado nenhum. Só me rodearam inteligentes informáticos!
Idiota já estava, sem perceber o que tinha envenenado o sistema...!

Faltava armar-me em parvo, no passo a seguir, que era dar uma de maluco e, fazer qualquer coisa!

Sabem o que é fazer qualquer coisa? Não!? eu também não... mas é assim que se ganham as medalhas de cruzes de guerra!!
E eu,... nesta guerra da blogosfera, tive a minha cruz... ganhei a batalha e... vejo os informáticos com ar esquisito a olhar para o parvo, e com ar de idiotas!

Sinto-me bem! Porém, eles, devem sentir-se toscos!

Peço desculpa por estar para aqui a "parvar".

Agradeço, e mando um abraço ao PAULO pela atitude de Amigo quanto a mim, e ao blog!

Entretanto, por idiotice, ou carolice, já ia em:

http://munho.blogspot.com

e..., também...

http:/munhodoalfobre.blogspot.com

Olhá divisa: "QUE NUNCA POR VENCIDOS SE CONHEÇAM"!

Contem comigo em qualquer situação!Personalizando:

cesar.st.ramos@gmail.com

ABRAÇOS
do
César Ramos

relogio.de.corda disse...

Eu chamaria a tudo o que está aqui escrito; sensibilidade.
Se assim é, então deveríamos ser todos, um pouco mais "idiotas".
Gostei muito deste texto.

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

PAULO , e não é que senti vontade de voltar ao Cortazar , mas em português , que parece que a tradução esta perfeita. claro que isto nunca se diz de uma tradução dizem os avisados que se deve dizer de excelente qualidade:) .
Vou procurar o book !
abraço
_______ JRMARTO

momo disse...

Que bueno todo lo que contais, y con esa visión , tanto la tuya como los comentarioas de Cesar, por quien encontré este blog.
un saludo

Paulo disse...

Pas(ç)sos, concordo.É preciso sabedoria para se ser idiota (no sentido que J.Cortazar lhe dá).E não nos cansarmos de o ser.

César, idiota, sim. Porque, também, os idiotas nunca se dão por vencidos. Saudações e combate aos virus cibernéticos! Abraço.

relogio.de.corda, o livro é todo ele magnífico de sensibilidade, reflexão e escrita viva.


Zé Marto, procura, sim. Lê e conta como foi. Abraço.

momo, saludo e gracias por tu visita.