11 abril 2010

A música, a escrita e o prazer de ler


"... No entretanto já se desencadeou o apocalipse, porque Louis não faz mais do que levantar a sua espada de ouro, e a primeira frase de When it's sleepy time down South cai sobre as gentes como uma carícia de leopardo. A música sai do trompete de Louis como os filmes falados das bocas dos santos primitivos, desenha-se no ar a sua quente escrita amarela, e atrás desse primeiro sinal solta-se Muskat Ramble enquanto nós nos agarramos nos nossos lugares a tudo aquilo que temos à mão, e também àquilo que é dos vizinhos, de forma que a sala parece uma vasta sociedade de polvos enlouquecidos, e ao centro está Louis com os olhos em branco atrás do seu trompete, com o seu lenço a flutuar numa despedida contínua de algo que não se sabe bem o que é, como se Louis precisasse de dizer um adeus perpétuo a essa música que cria e se desfaz no mesmo instante, como se soubesse o preço terrível dessa maravilhosa liberdade que é a sua."

Julio Cortázar, A Volta ao Dia em 80 Mundos

A fantástica narrativa de J.Cortázar em torno de um concerto de Louis Armstrong nos anos 60 do século XX, conduz-nos num voo pleno de referências literárias, mergulhando os sentidos na música (que na leitura não se ouve mas se sente), nos movimentos que se adivinham e na emoção que nos invade. Um texto que é uma homenagem à música, à sensibilidade e à cultura universal.

"No meio de tudo isto Louis escondeu o copo, tem um lenço fresco na mão, e então vem-lhe a vontade de cantar e canta, mas quando Louis canta a ordem estabelecida das coisas detém-se não por qualquer razão explicável, mas porque tem de deter-se quando Louis canta, e naquela boca de onde antes saíram bandeirolas de ouro cresce agora um mugido de cervo apaixonado, um bramido de antílope para as estrelas, um murmúrio de abelhão durante a sesta das plantações. Perdido na imensa abóbada do seu canto eu fecho os olhos, e com a voz deste Louis de hoje chegam-me todas as suas outras vozes a partir de outro tempo, a sua voz a partir de velhos discos perdidos para sempre, a sua voz a cantar Confessin', a cantar Dusky Stevedore.(...) E abro os olhos e ele ali está num palco de Paris, e abro os olhos e ele ali está, depois de vinte e dois anos de amor sul-americano ele ali está, depois de vinte e dois anos está ali a cantar, rindo-se com toda a sua cara de criança incorrigível, Louis cronópio, Louis enormíssimo cronópio, Louis alegria dos homens que te merecem".

Julio Cortázar, A Volta ao Dia em 80 Mundos

1 comentário:

Marta disse...

roubei uma das citações e a respectiva música. desta vez para o meu FB :)