"...o sargento olhou para o relógio: eram oito e quarenta e quatro minutos. Tinha de esperar que dessem as nove. Hladik, mais insignificante que infeliz, sentou-se num montão de lenha. Reparou que os olhos dos soldados fugiam dos seus. Para aliviar a espera, o sargento entregou-lhe um cigarro. Hladik não fumava; aceitou-o por cortesia ou por humildade. Ao acendê-lo, viu que lhe tremiam as mãos. O dia enevoou-se; os soldados falavam em voz baixa como se ele já estivesse morto.(...)
O piquete formou e perfilou-se. Hladik, de pé contra a parede do quartel, esperou a descarga. Alguém receou que a parede ficasse manchada de sangue; então ordenaram ao réu que avançasse alguns passos. Hladik, absurdamente, lembrou-se das vacilações preliminares dos fotógrafos. Uma pesada gota de chuva tocou uma das faces de Hladik e rolou lentamente pela sua bochecha; o sargento vociferou a ordem final.
O universo físico parou.
As armas convergiam sobre Hladik, mas os homens que iam matá-lo estavam imóveis.O braço do sargento eternizava um gesto inacabado. Numa ardósia do pátio uma abelha projectava uma sombra fixa. O vento havia cessado, como num quadro. Hladik tentou um grito, uma sílaba, o torcer de uma mão. Compreendeu que estava paralisado. Não lhe chegava nem o mais ténue rumor do tolhido mundo. Pensou estou no inferno, estou morto. Pensou estou louco. Pensou o tempo parou. A seguir reflectiu que nesse caso também se lhe teria parado o pensamento. Quis pô-lo à prova: repetiu (sem mover os lábios) a misteriosa quarta écloga de Virgílio. Imaginou que os já longínquos soldados compartilhavam a sua angústia: ansiou por comunicar com eles (...). Dormiu, ao cabo de um prazo indeterminado. Ao acordar, o mundo continuava imóvel e surdo. Na sua bochecha perdurava a gota de água; no pátio a sombra da abelha; O fumo do cigarro que expelira nunca mais acabava de se dispersar. Outro "dia" passou, antes que Hladik compreendesse.
Um ano inteiro havia solicitado de Deus para terminar o seu trabalho: um ano lhe outorgava a sua omnipotência. Deus operava para ele um milagre secreto: matá-lo-ia o chumbo alemão, na hora determinada, porém na sua mente um ano decorria entre a ordem e a execução da ordem.
Não dispunha de outro documento além da memória (...) Minucioso, imóvel, secreto, urdiu no tempo o seu elevado labirinto invisível. Refez o terceiro acto duas vezes. Apagou um ou outro símbolo demasiado evidente: as repetidas badaladas, a música. Omitiu, abreviou, ampliou; nalguns casos, optou pela versão primitiva. Chegou a gostar do pátio, do quartel (...) deu fim ao seu drama: já só lhe faltava resolver um único epíteto. Achou-o; a gota de água resvalou-lhe pela bochecha. Iniciou um grito enlouquecido, mexeu a cara, a quádrupla descarga abateu-o.
Jaromir Hladik morreu a vinte e nove de março, às nove horas e dois minutos da manhã."
1943
Jorge Luis Borges, Ficções
Foto C.
3 comentários:
Acho que isto foi a vida 'interminável' de um fuzilado.
Livra...!
O 'tempo' que se 'gasta' para nos matarem... encostados à parede!
Mal comparado, é como num desastre de queda de avião:
- foi rápido! ninguém sofreu muito... ou,... nem deram por nada! aquilo é um instantinho!
É porque nunca andaram de avião, ou nunca lhes tocou um pelotão de fuzilamento pela frente, para cronometrarem os tempos!
Olhos vendados, ou não!
(...)
Abraço
César
César, é costume dizer-se que o tempo é o que dele fazemos. Só que, sobretudo, no fim, faz muita falta porque ainda há muito para fazer...
E o que fazer? Por-nos a fazer com nossas angústias e incertezas para que não reste tão somente esse tal rumor? Nós que estamos sempre emparedados, cedo ou tarde...Mas a crueldade de suprimir o tempo, que já nos é escasso...ah...difícil de dizer...Belo...
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