27 julho 2010

Quando o assentimento habita Matilde...

Às vezes as pessoas não entendem a forma como fala Matilde, mas a mim parece-me muito clara.
- O escritório vem às nove - diz-me - e por isso às oito e meia o meu apartamento sai-me e a escada resvala-me rapidamente porque com os problemas do transporte não é fácil que o escritório chegue a tempo. O autocarro, por exemplo, na esquina o ar está quase sempre vazio, a rua passa depressa porque eu a ajudo atirando-a para trás com os sapatos; por isso o tempo não tem de esperar por mim, chego sempre primeiro. Por fim, o pequeno almoço põe-se em fila para que o autocarro abra a boca, vê-se que gosta de nos saborear até ao último. Tal como o escritório, com aquela língua quadrada que vai subindo as sanduíches até ao segundo e ao terceiro andar.
- Ah - digo eu, que sou tão eloquente.
- Claro - diz Matilde, - os livros de contabilidade são o pior, mal me precato e já saíram da gaveta, a lapiseira salta-me para a mão e os números apressam-se a pôr-se debaixo dela, por mais devagar que escreva estão sempre ali e a lapiseira nunca lhes escapa. Dir-lhe-ei que tudo isso me cansa bastante, de maneira que acabo sempre por deixar que o elevador me agarre (e juro-lhe que não sou a única, muito pelo contrário), e apresso-me a ir para a noite que às vezes está muito longe e não quer vir. Menos mal que no café da esquina há sempre uma sanduíche que quer enfiar-se na minha mão, isso dá-me forças para não pensar que depois vou ser eu a sanduíche do autocarro. Quando o "living" da minha casa acaba de me empacotar e a roupa vai para os cabides e para as gavetas para deixar espaço para o roupão de veludo que tanto terá estado à minha espera, coitado, descubro que o jantar está a dizer qualquer coisa ao meu marido que se deixou prender pelo sofá e pelas notícias que saem como bandos de abutres do jornal. Em todo o caso o arroz ou a carne adiantaram-se  e só resta deixá-los entrar nas caçarolas, até que os pratos decidem apoderar-se de tudo embora isso pouco dure porque a comida acaba sempre por subir até às nossas bocas que entretanto se esvaziaram das palavras atraídas pelos ouvidos.
- É um dia em cheio - digo.
Matilde assente; é tão bondosa que o assentimento não tem qualquer dificuldade em habitá-la, em ser feliz quando está em Matilde.

Julio Cortázar, Papéis Inesperados, Cavalo de Ferro, 2010

A descoberta em 2006 de centenas de páginas inéditas de J.Cortázar possibilitou a publicação deste magnífico Papéis Inesperados. São quase quinhentas páginas de textos que vão do conto ao poema, de textos chamados "de emergência" a outros ditos inclassificáveis (Fundos de gaveta), que se lêm de forma quase compulsiva e onde transparece toda a genialidade do grande escritor. Uma excelente leitura de férias.

4 comentários:

Keila Costa disse...

Tudo a toma...e como diria o genial Fernando Pessoa; "...não vivemos, somos vividos."
Abraço grande

Paulo disse...

Keila, não psso estar mais de acordo consigo, com pessoa e, naturalmente Cortázar. Obrigado.

Ana Paula Sena disse...

É um excelente livro. Estive com ele entre mãos por estes dias, li-o um pouco, senti a tentação...

Porque não tenho tempo para ler tudo? :)

Mas lá chegarei, a este, sim.

Um abraço, Paulo.

A disse...

O excerto recordou-me a "Matilde", de Tom Waits.
Excelente.