Li a notícia em dois jornais e fiquei deveras triste. Dezasseis anos depois de ter sido criada, a Fundação Eugénio de Andrade pode ser extinta, assim o solicitaram, ao Governo, os membros da Direcção.
Com direito apenas a uma pequena percentagem dos direitos de autor, sem outra fonte de rendimento, para além do apoio da Câmara do Porto, e acrescentando-se a insolvência das distribuidoras Diglivro e ECL, a Fundação encontra-se na falência e a questão está a ser analisada pela Presidência do Conselho de Ministros.
O facto de ter beneficiado, durante sete anos, de um financiamento com base num acordo verbal - o que coloca, naturalmente, questões de ordem jurídica - não invalida que, de 1997 até hoje, não tenha havido nenhum compromisso oficial para manter esta instituição. Não deveria ter sido esse o interesse dos seus gestores?
Parece-me também que, se a Fundação não prestou contas à família do poeta - que ele adoptou e que o acompanhou nas piores e melhores horas do último período da sua vida - quando ela lhas pediu... algo fica muito pouco transparente nesta história. Que deveria ser de poemas, mas é agora, também, de "notas"-de- roda-pé mal explicadas.
É uma pena, porque o Eugénio, não obstante o seu contacto muitas vezes difícil e ríspido, muitas vezes vestido de uma vaidade irreprimível, era um ser humano extraordinário. Não merecia nada disto. Felizmente, a sua poesia será imune a tudo.
Coração habitado
Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
de coração alegre e povoado.
Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.
Alguns pensam que são as mãos de deus
– eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.
Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.
3 comentários:
Parece ser a segunda morte do poeta. É uma pena.
Esperemos que se resolva a bem da memória do poeta.
Está a acontecer algo parecido com a Fundação de Amália Rodrigues.
Julgo que é sempre melhor legar os espólios a Instituições governamentais do que autárquicas. A Casa Fernando Namora está também com dificuldades.
Uma fundação precisa de fundos próprios e os interesses familiares entram, frequentemente, em conflito.
Tens toda a razão, Clara, mas é preciso que o(s) governo(s) vejam valor e interesse público na preservação das obras dos autores. De todos, não só de alguns. Guardar a memória da nossa literatura não pode ser uma questão de gosto ou de "modismos".
Muita vezes as autarquias são esse guardião de memórias, mas depois fica a parecer que é apenas uma questão de "bairrismo".
Obrigada pela tua reflexão.
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