27 janeiro 2010

Janelas para lugar nenhum



A vida pode ser muito perra, digo-lhe eu. E digo isto agora, mesmo sabendo que no próximo mês é o aniversário da primeira operação. Fixa o olhar por cima do meu ombro na janela suja com o vidro estalado.
A mulher que assim fala, carrega um olhar baço e triste nos ombros frágeis. Conta do homem que traz pela mão como se ele ali não estivesse, como se a sua presença fosse o espesso vazio que lhe enche o peito.
Acordou de madrugada, noite ainda, vestiu-lhe o fato gasto, escovou a caspa dos ombros do casaco e sentou-o à mesa, na cozinha húmida, em frente a uma caneca de cevada quente.
Antes viu-o, como sempre nos últimos meses, deitado na cama a seu lado, olhos abertos, fixos no tecto de madeira. Parece-lhe desperto, mas duvida. Imóvel apenas. Não sabe quando dorme.
Lembro-me sempre dessa operação porque foi no começo do ano em que ele fez os cinquenta e dois, estávamos juntos há cinco. Pensávamos ter um filho nesse ano.



O toque do telefone não lhe perturba a fala, e nem o facto de me ver desligá-lo, sem atender, a leva a inflectir o tom.
Demoram sempre mais de duas horas para percorrer os trinta quilómetros que separam a casa onde moram desta sala, da secretária que agora nos liga e da janela suja que continua a fixar enquanto fala.

Diz-se perdida na vida que tem agora, na casa e na aldeia onde vive e, sobretudo, dos sonhos que tiveram no princípio.
A lonjura foi uma necessidade para construir um amor proibido e reprovado. Por isso tinham vindo para a aldeia. O mesmo lugar de onde ela tinha saído para casar um ano antes. Arranjaram a velha casa com as próprias mãos, pois ninguém lhes dera mais do que olhares curiosos.
Conta que quem agora observar a casa de fora, com a oficina de carpintaria anexa, de porta escancarada, chão forrado de aparas e serradura, pode sentir ainda o respirar dos sonhos que a habitaram.

Era um artista, sabe, um marceneiro de primeira, lá no norte tinha encomendas de gente a mais de 100 quilómetros, do Porto e tudo, um homem bom em tudo o que fazia, mas do que eu gostava mais era do olhar que me trazia quando eu entrava na oficina e ele, inclinado na bancada, se virava para mim. Era um brilho de estrela e depois, o cigarro ao canto da boca dava-lhe um tal ar… não resisti.


A carpintaria está agora ocupada com restos de móveis nunca acabados, serve de abrigo a dois velhos cães e tem uma tristeza negra a escorrer das paredes.
A mãe da mulher olhou-a por trás da sua janela, manhã cedo, quando ela saiu com o homem. Moram casa com casa e mal se falam. Nem a doença dele fez recuar o marido na decisão de afastar a filha. Vê-os a caminharem para a paragem da carreira e nota como parecem dois bêbados em fim de festa.

Ao menos a minha mãe pensei que entendesse e me ajudasse. Bem sei que eu voltava à aldeia acompanhada dum homem que era o irmão mais velho daquele com quem tinha saído para casar. Para mais, o falatório tinha vindo antes de nós, este era casado, tinha deixado a mulher e os filhos para viver com a noiva do irmão. E o irmão era como um filho para ele... Mas a gente não manda no coração, não é?


Na casa da mãe, o silêncio de chumbo amplia a solidão que ali habita. A velha mulher, quando os perde de vista na curva, senta-se, mergulha o pão seco no café e come devagar as sopas. A filha toda a vida fora diferente das outras, sempre de se isolar, muita leitura, muito passeio sozinha, nunca de se preocupar com empregos, com dinheiro, nada. Ajudava, contrariada, no campo e pouco mais. Apenas lhe conheceu uma amiga, a Inês, vivia com os avós, os pais estão emigrados. Tinha um defeito numa perna, coxeava, houve um tempo que não se largavam. Estará com os pais na Suiça.
Foi uma surpresa quando um dia a filha apareceu com um namorado. Assim, sem aviso. E para mais, com a decisão de ir para a terra dele e casar. Deu cabo do pai, já se sabe. E do resto, claro.


A doença quase nos deitou abaixo. Valeu-nos o riso dele, a força que punha quando me falava do que sonhava, parece que os olhos mudavam de cor, ficavam mais azuis. São bonitos aqueles olhos, mesmo agora que não dizem nada.
Quatro vezes operado. Depois da primeira, nunca acreditei que recuperasse. Ele, sim, tinha força e ficava mais forte ainda quando vinha aqui. Consigo sentia-se bem, dizia: "este olha para mim quando fala e deixa-me fumar." Confiava sempre no que lhe falava da doença, confiava muito. Agora já não sei, este golpe foi tão inesperado, fiquei à deriva.
Não se estranha o discurso feito no passado, referido a alguém que está vivo e, mais ainda, presente. A nossa estranheza não desponta porque esta presença é uma dolorosa visão dum ausente.


(continua)

5 comentários:

A disse...

No final do post aparece: (continua):(
Não pode continuar já? Agora? Neste momento?

Teresa Oliveira disse...

fiquei pendurada...

clara disse...

Pois é, agora ficamos à espera como antigamente nos jornais, quando o Camilo escrevia os livros aos bocadinhos.
Gostei muito.

Paulo disse...

Austeriana, Teresa, Clara: obrigado por lerem.
O resto do cozinhado está quase pronto a vir para a mesa :):)

Marta disse...

isso, isso, Clara :)

vá lá Paulo, mais dessa excelente prosa!