23 janeiro 2010

O amor, o fascíno e os enganos


Estava como que entorpecido pelo fascínio do incompreensível. Ela levantou-se diante dele, alta e indistinta, como um fantasma negro no crepúsculo vermelho. Por fim, com uma aguda incerteza face ao que iria acontecer caso abrisse a boca, ele murmurou:
- Mas se o meu amor for suficientemente forte – hesitou.
Ele ouviu algo estalar ruidosamente na inflamada quietude. Ela tinha partido o leque. Caíram duas finas peças de marfim, uma após outra, sem qualquer ruído, sobre o tapete grosso, e, instintivamente, ele dobrou-se para as apanhar. Enquanto tacteava aos pés dela, lembrou-se de que aquela mulher tinha nas mãos uma dádiva fundamental, que não podia vir de mais nada neste mundo; e quando se levantou, estava invadido de uma crença avassaladora num enigma, pela convicção de que o autêntico segredo da existência, a certeza imaterial e preciosa estava ao seu alcance e a escapar-lhe! Ela dirigiu-se para a porta e ele foi atrás dela, procurando uma palavra mágica que desvendasse o enigma, que a levasse a conceder-lhe a dádiva. E essa palavra não existia! O enigma só pode ser revelado através do sacrifício, e a dádiva do paraíso está nas mãos de qualquer homem. Mas eles tinham vivido num mundo que odiava enigmas, e apenas se interessa pelas dádivas que podem ser compradas em lojas.
Ela estava a aproximar-se da porta. Ele disse, apressadamente:
- Palavra de honra que te amava, ainda te amo.
Ela parou por um momento, quase imperceptível para lhe dirigir um olhar indignado, e depois seguiu. Aquela penetração feminina tão inteligente e maculada pelo eterno instinto de auto preservação, tão pronta a reconhecer uma vilania evidente em tudo aquilo que não é capaz de compreender, inundou-a de amargo ressentimento contra ambos os homens que nada podiam oferecer ao conflito espiritual e trágico dos seus sentimentos, a não ser a rudeza do seu materialismo abominável. A raiva que sentia pela forma ineficaz como se enganava a si própria chegava para os odiar aos dois. O que queriam eles? O que queria mais este? E, quando o marido voltou a olhar para ela, com a mão na maçaneta, perguntou a si própria se ele era irremediavelmente estúpido ou simplesmente desprezível.
Nervosa, afirmou rapidamente:
- Estás a enganar-te a ti próprio. Nunca me amaste. Querias uma esposa, uma mulher, qualquer mulher que pensasse, falasse e se comportasse de uma determinada forma que tu aprovasses. Amavas-te a ti próprio.
- Não acreditas em mim? – perguntou ele, devagar.
- Se eu tivesse acreditado que me amavas – começou ela, com fervor, inspirando profundamente; pausa em que ele conseguia ouvir o batimento do sangue nos ouvidos. – Se eu tivesse acreditado. Nunca teria regressado – terminou com ousadia.
Joseph Conrad, in O Regresso, Editora Quadra, 2009

O conto O Regresso (1898), de J.Conrad (1857-1924), narra de forma magistral e intensa algumas horas da vida de um casal. Durante essas (poucas) horas, a vida dos dois é irremediavelmente marcada pela discussão, motivada por uma carta de despedida da mulher e o seu posterior regresso a casa. A escrita revela-se duma invulgar intensidade, conseguindo Conrad (em finais do século XIX) levar o leitor a sentir, ouvir e ver com uma agudíssima precisão toda a trama narrativa.
O seu ritmo levou, naturalmente, ao interesse em transpô-lo para o cinema. Deu origem ao filme Gabrielle (2005), de P.Chéreau, com Isabelle Huppert.

3 comentários:

clara disse...

Se bem entendo, o mais importante do texto é a certeza de que o sacrifício é o supremo amor, aquela atitude que não se compra nas lojas.Podem dizer: isso é a cultura cristã de que todos estamos impregnados, é certo, mas é como sinto.
Se pensares bem, o que une os pais e filhos são as renúncias que ambos fizeram, as noites mal dormidas por causa de um filho que foi à discoteca e por quem esperámos, a manhã de domingo em que não dormimos para o,a, levar a uma prova desportiva. Isso é que fica.
No amor entre casais é semelhante, julgo, o que une é a cumplicidade nos maus momentos, mesmo em namorados. Quando se tem um problema é que se vê se o amor é verdadeiro, não é quando tudo corre bem.
O texto é complexo, julgo que muito depurado, mas descreve o que não sinto primordial, o jogo de afectos, o fascínio e os enganos.

Paulo disse...

Clara,o teu comentário mereceria uma resposta muito mais longa e detalhada do que a que aqui cabe.Ainda assim, ficam umas linhas.
O conto tem, para mim,uma construção formal muito intens: é muito "visual"nas descrições que faz dos sentimentos que envolvem as duas personagens, isso, creio, não é muito comum em autores daquele período (é, em muitos momentos, cinematográfico). Depois, tem a curiosidade e a força imensa de ter sido escrito no fim do século XIX, centrado no choque de duas concepções de amor (num casal): o homem que pensa, exactamente, que no casal é suficiente que haja conforto (material)em casa, diálogos educados e "respeito" e a mulher esvaziada, insatisfeita e que lhe deixa uma carta, saindo em busca de outra coisa e volta (antes de concretizar os seus propósitos). Mas volta consciente (como diz) de que não é amada nem ama.Ou seja, embora o aceite,aquilo não é o amor (para ela).
O que me parece importante no texto é esta questão ser colocada assim no século XIX. A maioria das reflexões em todo o texto são as do homem que, no fundo, são as socialmente aceites e que a saída da mulher põe em causa.
O homem (como a sociedade na época) não as entende nem aceita: o que lhe falta a ela, afinal?
No fundo a questão é actual até hoje e tu mesma a colocas no teu comentário de que discordo.
O amor de um casal não pode em circunstância alguma, ser comparado ao amor pelos filhos (ou outros). É um fenómeno complexo, pleno de variantes, mas que tem um ponto que é central e que não existe desta forma em mais nenhum tipo de amor: o corpo.
De resto, como sabes, é aí que tudo começa e acaba. O resto está no meio e constrói-se.Com amor.
Beijinho

clara disse...

Pois, nesse aspecto tens razão, o corpo é o princípio de tudo, mas também é o fim.
O texto é muito rico e, se centrado nessa época é bem mais surpreendente.
Percebi o que queres dizer. É sinal que estás vivo e isso é bom.
Esta minha tendência para a espiritualidade torna-me às vezes um pouco parvinha.
Beijinho.