19 abril 2010

A expressão das emoções


Em 1872, um ano depois de Proust nascer, Claude Monet exibiu uma tela intitulada Impressão: Nascer do Sol. O quadro representava o porto de Le Havre ao amanhecer, deixando entrever, através de um denso nevoeiro matinal e uma amálgama de pinceladas invulgarmente espessas, o contorno de uma orla marítima industrial, com um conjunto de guindastes, chaminés fumarentas, edifícios. A tela pareceu uma confusão desconcertante para a maioria das pessoas que a observaram e irritou particularmente os críticos da época que apelidaram pejorativamente o seu criador e o grupo disperso a que pertencia de “impressionistas”, referindo que o domínio que Monet tinha da vertente técnica da pintura era tão limitado que só conseguia produzir uma representação infantil, com muito poucas semelhanças com as verdadeiras manhãs de Le Havre.
O contraste com o julgamento feito, alguns anos depois, pela elite do mundo da arte, não podia ter sido maior. Afinal de contas, parecia que os Impressionistas não só sabiam usar o pincel, como a técnica que usavam era extraordinária para captar uma dimensão da realidade visual ignorada por contemporâneos menos talentosos.
O que poderia explicar uma reavaliação tão díspar? (…).
A resposta proustiana começa com a ideia de que todos temos o hábito de atribuir ao que sentimos uma forma de expressão que difere tanto da realidade e que, ainda assim, após algum tempo, acabamos por tomar como sendo a própria realidade.(...)
Se Monet é um herói neste contexto, é porque se libertou das representações tradicionais e, em certos aspectos, tradicionais do Le Havre, para se concentrar mais de perto nas suas próprias e incorruptas impressões da cena.
Numa homenagem aos pintores Impressionistas, Proust incluiu um deles no seu romance, o fictício Elstir, que partilha características com Renoir, Degas e Monet.(...) Nas paisagens de Elstir não existe demarcação entre o mar e o céu, o céu parece-se com o mar, o mar parece-se com o céu.(...)
Tal como Proust disse: a nossa vaidade, as nossas paixões, o nosso espírito de imitação, a nossa inteligência abstracta, os nossos hábitos estão em actividade há muito tempo e a tarefa da arte é desfazer essa actividade, fazendo-nos recuar na direcção de onde viemos para as profundezas onde o que existiu verdadeiramente permanece desconhecido dentro de nós.
E o que permanece desconhecido dentro de nós inclui coisas tão surpreendentes como navios que atravessam cidades, mares que não se distinguem momentaneamente dos céus e sentimentos intensos desencadeados pelo contacto de uma pele macia.

Alain De Botton, Como Proust pode mudar a sua vida, D.Quixote, 2009

4 comentários:

momo disse...

que entrada más bella...
Acabo d ellegar de gira, y me gusta venir a pasear por los puentes amigos.
un abrazo

Keila Costa disse...

Belo ensaio...e quantas realidades em uma única cena, porque múltipla ainda que indivisa, e nós reféns dessa maravilhosa percepção do imperceptível que só a nós é concedido...solitários que somos em nossas percepções e 'impercepções'. Encantada com seus escritos...Abraços

A disse...

Tenho a obra aqui à minha frente, mas ainda não tive tempo de lhe pegar!
Aliás, esta questão do tempo - no meu caso, da falta dele - tem tudo que ver com o escritor que nos colocou à procura do tempo perdido...
Na verdade, sempre que aqui venho, sinto que não estou a perder tempo. O problema é que ando com uma carga de trabalho desgraçada (isto é cíclico...)e, entre ganhar a vida e viajar pela blogosfera, a primeira hipótese ganha peso...
Enfim, isto tudo para dizer que já tinha saudades de aqui vir e só tenho pena de ter que voltar ao trabalho. Senão, ficava por aqui.:)))
Excelente post.
Abraço.

Paulo disse...

momo, obrigado pela visita. Abraço

Keila, é,de facto, uma maravilha a percepção do que só se "vê" através do sentir. Obrigado por ter vindo.

Austeriana, seja bem vinda:):). Logo que possa, pegue no livro que vai gostar muito... e quebre a rotina do trabalho; faz bem à saúde e a tudo.
Abraço