Mas o que há aqui de mais notável, é que todas as mais vivas & subtis partes do sangue, que o calor rarefez no coração, entram sem cessar em grande quantidade nas cavidades do cérebro. E a razão que faz com que elas para aí vão mais do que para outro lugar algum, é que todo o sangue que sai do coração pela grande artéria, toma o seu curso em linha recta para esse lugar, & que, não podendo todo ele aí entrar, posto que não tem para isso senão passagens bastantes estreitas, só lá entram aquelas das suas partes que são as mais agitadas & as mais subtis, enquanto o resto se espalha por todos os outros sítios do corpo. Ora estas partes muito subtis do sangue compõem os espíritos animais. E não têm necessidade para esse efeito de receber outra mudança alguma no cérebro, mas separam-se nele das outras partes do sangue menos subtis.
Por isso a que aqui chamo espíritos, não são senão corpos, & não têm outra propriedade, salvo que são corpos muito pequenos, & que se movem muito depressa, à maneira das partes da chama que sai de um archote: assim é que não se detêm em lugar algum; & que à medida que alguns deles entram nas cavidades do cérebro, deste saem também alguns outros pelos poros que há na sua substância, os quais poros os conduzem aos nervos, & daí aos músculos, através do que movem o corpo de todas as diversas maneiras segundo as quais pode ser movido.
René Descartes, As Paixões da Alma, Ed. Fim de Século, 2009
3 comentários:
Notável esforço cartesiano para explicar a relação mente-corpo!
Uma explicação que mantém grande interesse, ainda que os paradigmas hoje sejam outros.
À medida que ia lendo, ia reconhecendo o texto... vá lá, não me enganei :)
Obrigada, Paulo.
Texto de poesia científica...inquietante...esses corpos nossos tão sanguíneos e nervosos de pensar e não pensar...e esse não seria nossos pequenos e grandes espíritos, esse sangue a procurar caminhos? Essa fronteira?
Abraço grande Paulo
Ana Paula, o texto é avançadíssimo para o seu tempo e coloca questões, que V. conhece muito melhor que eu, de enorme importância.
Keila, na verdade um texto fortemente poético. Obrigado. Abraço
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