O meu pai estava na berma da estrada, junto ao carro dele. Estava à espera, com um bidão de plástico na mão, que alguém lhe desse boleia. Eu ia de mota, com um capacete que me tapava a cara.
Detive-me junto dele sem me identificar.
- Ficou sem gasolina? - perguntei
- Sim - respondeu
- Suba.
O meu pai subiu para a mota sem me ter reconhecido. Havia cinco anos que não nos víamos nem nos falávamos. A última vez em que nos déramos um abraço fora no enterro da minha mãe. Depois, sem que tivesse acontecido nada entre nós, fôramos espaçando as chamadas telefónicas até que a comunicação se cortou.
Reparei na forma como baixava a cabeça para se proteger do vento. Sem dúvida reparou na alça do meu sapato direito, pois tinha essa perna mais curta que a esquerda. O meu pai comentara muitas vezes o desgosto que tiveram quando, depois de eu nascer, o médico lhes deu a notícia. Eu nunca vivi isso como um drama, mas sempre me pareceu que eles se sentiam responsáveis por aqueles centímetros a menos, ou a mais, conforme se veja: jamais consegui averiguar qual das duas pernas eles consideravam defeituosa.
Eu guio com muirta agilidade, esgueirando-me por entre os carros com movimentos que de um certo ponto de vista poderiam parecer imprudentes. Reparei que o meu pai, apesar do pudor que lhe causava o contacto com outro homem, se agarrava ao meu ombro com a mão esquerda enquanto tentava colar à sua coxa o bidão de plástico que leveve na direita. Percebi que não deixava de olhar para a alça do meu sapato. Sem dúvida, ter-se-à interrogado sobre a possibilidade de que eu fora o seu filho. Talvez se lembrasse da sucessão de médicos pelos que passara, a cadeia de radiografias, o rosário de soluções, para chegar por fim àquele remédio simples, mecânico, de colocar um pequeno suplemento no sapato da perna mais curta.
Então, exerceu no meu ombro uma pressão que poderia interpretar-se como um sinal de afecto a que eu não respondi.
Pouco depois chegámos à bomba de gasolina, onde desceu da mota com o bidão de plástico na mão. Disse-lhe que não podia levá-lo de volta ao carro e ele respondeu que não me preocupasse, que já encontraria alguém. Reparei que tentava ver a minha cara através da viseira fumada do meu capacete.
Naquela noite o telefone tocou duas vezes em minha casa, mas desligaram quando atendi.
Juan José Millás, Os objectos chamam-nos, Ed.Planeta, 2010
Millás convoca-nos para o quotidiano em que não reparamos por ser tão comum. O retrato de uma realidade que supera, de longe, a ficção,, numa escrita profunda, densa e exemplar na capacidade que tem de criar ambientes e personagens.
Como se diz na apresentação deste livro: "Seja bem-vindo ao mundo de Juan José Millás".
Millás convoca-nos para o quotidiano em que não reparamos por ser tão comum. O retrato de uma realidade que supera, de longe, a ficção,, numa escrita profunda, densa e exemplar na capacidade que tem de criar ambientes e personagens.
Como se diz na apresentação deste livro: "Seja bem-vindo ao mundo de Juan José Millás".
3 comentários:
Não conheço o autor, mas este post é um "tremendo" convite para a descoberta de Millás!
"Tremendos" os afectos e as emoções veladas. "Tremenda" a comunicação nos gestos, na troca de olhares, no que é insinuado mas não é dito, ou seja,em tudo aquilo que fará parte do nosso quotidiano e que o hábito apaga ou faz com que (aparentemente)desapareça...
Obrigada por mais esta excelente proposta de leitura!
Abraço.
Austeriana, Millàs merece toda a atenção. Excepcionais as suas narrativas. Vai gostar, estou certo. Abraço
eu sou fã.
do Millas.
ainda não sei como Laura e Julio não são um filme, por exemplo!
abraço
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