28 junho 2010

Tarde de domingo


- Olhem os patos... e o cágado, vá...
(Zé, tás a ouvir bem agora? Conta lá então...)
- Pai, o cágado tá morto?
(Não Zé, o que eu disse foi que os espanhóis tinham de fazer a oferta deles primeiro... É pá , se não, somos comidos pelos gajos do Porto, já sabes como eles são...)
- Pai, os peixes não comem o cágado?
(Não, pá... a nossa proposta foi clara, pomos lá o equipamento quando eles derem a entrada, só nessa altura.)
- Vocês não estão a dar atenção nenhuma aos bichos, caramba, não fiquem aí à sombra, venham ver os patinhos!
(Tou, Zé, desculpa, tenho aqui os miúdos a chatear... dizia eu que temos de garantir a entrada do primeiro pagamento...)
- Pai, o cágado não se mexe?
(Não, não e não. Nenhum material sai daqui antes de chegar a massa e o resto é conversa! Estou farto de ser lorpa....)
- Pai? Pai...
- Isto é um inferno!
(Desculpa um minuto, Zé.)
- Vocês não ligam nenhuma ao que eu digo e isso é uma falta de respeito. O Pai já disse para verem o cágado. Olhem pró cágado, chiça!... e prós patos...

Fotografia: Jardins da Fundação Gulbenkian, Lisboa

26 junho 2010

A voz de um homem livre

O que eu acho, então, é que há uma soma de pessoas (na Igreja), e digo-o com respeito, que ficaram perfeitamente analfabetas, cheias de complexos, de maldade, de sensualidade, quase castradas. Quem conhece o mundo e o adora, olha-o de forma límpida e feliz. Eu dou graças à vida e aos educadores que tive, por olhar para o mundo de forma descomplexada e desinibida...
Entrevista ao Jornal i 26/06/2010  

Num tempo de silêncio e múltiplas cumplicidades, um tempo difícil para quem quer uma cidadania exigente, é de saudar os homens que têm uma voz própria e se exprimem  com coerência, inteligência e liberdade. 
D. Januário Torgal Ferreira é um homem assim e a sua entrevista de hoje ao jornal i merece uma leitura atenta . AQUI

24 junho 2010

Gardel, el Zorzal Crioulo

Nasci em Buenos Aires aos dois anos e meio, assim colocava Carlos Gardel um ponto final no mistério das suas origens.
Nasceu em Dezembro de 1890, tavez em Toulouse e faleceu num acidente de aviação em Medellin, num 24 de Junho de há 75anos .
É o grande responsável pela divulgação do Tango que popularizou, como cantor, no mundo inteiro.
Hoje, em sua memória, recordamos "Por una cabeza", um dos seus êxitos maiores,  em duas versões: a original de Gardel  e aquela que é representada numa das cenas mais fascinantes do cinema, onde adquire uma dimensão estética extraordinária.


22 junho 2010

Austeridade, a nossa e a deles

A austeridade tem as costas quentes. Serve para desviar a atenção de propostas divertidas, mas vesgas, como a eliminação dos feriados do 5 de Outubro ou do Dia de Todos os Santos. Existe para que ninguém repare na notícia jocosa que circula pela CGD: que Mário Lino vai para lá para presidente do Conselho Fiscal das companhias de seguros. Expliquem só, por favor, como é que alguém um dia pode ser competente para administrar a Cimpor, no outro dia a REN e finalmente vá como fiscalista para o universo do banco do Estado? A austeridade funciona para que ninguém repare que se fecham centenas de escolas no interior do País. A austeridade é a máscara que comprámos para que o Carnaval seja todo o ano. Em nome dela podem continuar a multiplicar-se os dislates, a insistir-se nos mesmos erros, a confundir os portugueses com cortes que afectam apenas quem não pode ou não deseja fugir à lei. Mesmo com austeridade, Portugal continua a engordar para os lados. Já se sabe para que vai servir esta austeridade: para que, quando as contas estiverem minimamente equilibradas, regresse o regabofe sem pudor. Porque, entretanto, ele vai continuar dentro do princípio de vícios privados e públicas virtudes. A história de Portugal, neste aspecto, é tão previsível como uma fotocópia. Como é que se pode levar a sério a austeridade e os sacrifícios pedidos aos portugueses se a elite oficial deste sítio se continua a comportar assim? A crise não ensinou nada a esta gente que se julga a viver no último andar do Empire State Building. Está. Até um dia cair.

Fernando Sobral , Jornal de Negócios
Foto Google

21 junho 2010

O chá, a gramática e o resto que se bebe em pequenino


O oficioso "Osservatore romano", que o Vaticano costuma usar para atirar pedras escondendo a mão, achou que a morte de Saramago seria boa altura para o apedrejar, tanto mais que, agora, ele já não pode defender-se. O apedrejador de serviço meteu, por isso, mãos à vaticana obra e, mesmo não percebendo por que motivo terá Deus deixado Saramago viver até à "respeitável idade de 87 anos" e andar por aí a exibir uma "crença obstinada" não nos dogmas da Igreja mas nos do materialismo histórico, condenou-o às chamas do Inferno (infelizmente a Igreja já não tem poder para condenar gente como Saramago à fogueira na Terra). Também Cavaco tem queixas de Saramago mas, no seu caso, só protocolares pois, ao contrário do Vaticano, Cavaco não é rancoroso. Saramago não teve, de facto, o cuidado de acertar a data da morte com a agenda da Presidência, o que impediu o presidente de ir ao funeral. Saramago devia saber que Cavaco "gosta de cumprir promessas" e que prometera "à família que no dia 17 partiria com eles para a ilha de S. Miguel".
Ora regras de concordância gramatical podem interromper-se, férias não.

Manuel António Pina AQUI

18 junho 2010

"a morte é isto: hoje estás aqui e amanhã já não estás"


Excerto do Discurso perante a Real Academia Sueca:
"De como a Personagem Foi Mestre e o Autor Seu Aprendiz"
08.10.1998

(…)
Escrevi estas palavras há quase trinta anos, sem outra intenção que não fosse reconstituir e registar instantes da vida das pessoas que me geraram e que mais perto de mim estiveram, pensando que nada mais precisaria de explicar para que se soubesse de onde venho e de que materiais se fez a pessoa que comecei por ser e esta em que pouco a pouco me vim tornando. Afinal, estava enganado, a biologia não determina tudo, e, quanto à genética, muito misteriosos deverão ter sido os seus caminhos para terem dado uma volta tão larga... À minha árvore genealógica (perdôe-se-me a presunção de a designar assim, sendo tão minguada a substância da sua seiva) não faltavam apenas alguns daqueles ramos que o tempo e os sucessivos encontros da vida vão fazendo romper do tronco central, também lhe faltava quem ajudasse as suas raízes a penetrar até às camadas subterrâneas mais fundas, quem apurasse a consistência e o sabor dos seus frutos, quem ampliasse e robustecesse a sua copa para fazer dela abrigo de aves migrantes e amparo de ninhos. Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtoras da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as outras, as efectivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é defeito mas também naquilo que é excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei. Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha chegado a ser.

Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de autor, como títeres articulados cujas acções não pudessem ter mais efeito em mim que o peso suportado e a tensão dos fios com que os movia. Desses mestres, o primeiro foi, sem dúvida, um medíocre pintor de retratos que designei simplesmente pela letra H., protagonista de uma história a que creio razoável chamar de dupla iniciação (a dele, mas também, de algum modo, do autor do livro), intitulada Manual de Pintura e Caligrafia, que me ensinou a honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustração, os meus próprios limites: não podendo nem ambicionando aventurar-me para além do meu pequeno terreno de cultivo, restava-me a possibilidade de escavar para o fundo, para baixo, na direcção das raízes. As minhas, mas também as do mundo, se podia permitir-me uma ambição tão desmedida. Não me compete a mim, claro está, avaliar o mérito do resultado dos esforços feitos, mas creio ser hoje patente que todo o meu trabalho, de aí para diante, obedeceu a esse propósito e a esse princípio.
(…)
Cegos. O aprendiz pensou: "Estamos cegos", e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante. Depois, o aprendiz, como se tentasse exorcizar os monstros engendrados pela cegueira da razão, pôs-se a escrever a mais simples de todas as histórias: uma pessoa que vai à procura de outra pessoa apenas porque compreendeu que a vida não tem nada mais importante que pedir a um ser humano. O livro chama-se "Todos os Nomes". Não escritos, todos os nossos nomes estão lá. Os nomes dos vivos e os nomes dos mortos.

Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo.

17 junho 2010

Hallelujah! para descontrair, que o verão está a chegar


Um curioso trabalho de coordenação, acrescido de humor e criatividade. Ascender "aos céus" deve ser mesmo difícil! (O monge que o diga.)

Goran Bregovic


Festival MED em Loulé a partir de 23 de Junho:

GORAN BREGOVIC RECEBE PRÉMIO SONGLINES NO FESTIVAL MED

A Songlines, uma das mais conceituadas publicações internacionais de música, escolheu o Festival MED para entregar o prémio de Melhor Artista a Goran Bregovic. 

A mais alta distinção dos prestigiados Songlines Music Awards deste ano coube a Goran Bregovic, com o álbum “Alkohol”. O galardão será oficialmente entregue após a actuação do músico e da sua Wedding and Funeral Band no palco MED, a 25 de Junho. 

A entrega do prémio será realizada por Simon Broughton, editor de world music da Songlines, Seruca Emídio, presidente da Câmara Municipal de Loulé, e Joaquim Guerreiro, vereador da Cultura e director do Festival MED. 

Os Songlines Music Awards distinguem anualmente os melhores projectos de world music, atribuindo prémios em quatro categorias: melhor artista, grupo, colaboração multi-cultural e grupo revelação. 

Entre os vencedores desta e de outras edições estão Lura, Tinariwen, Justin Adams e os portugueses Deolinda, nomes que já passaram pelo palco MED. 

16 junho 2010

História Mínima


Há duas horas que espero e que me importa se me olham, resmungo em voz baixa enquanto procuro ver-me num ângulo do espelho para alisar o cabelo e endireitar o nó da gravata. Vêem-se muitas coisas no espelho: costas de material sintético que ostentam casacos de marca; pernas metidas em calças de linho porque o Verão se aproxima; estranhas estruturas vagamente antropomórficas como suportes de camisas ou camisolas daquelas que se usam negligentemente sobre os ombros e, entre dois pares de mocassins, vê-se também a minha cabeça, o meu rosto um pouco nervoso, sério, esperançoso.
As pessoas olham para mim, algumas sorriem, outras dão uma cotovelada ao companheiro de caminho para que repare em mim, e sei que não é pela minha indumentária. Vestido ou despido, nunca passarei despercebido. Cortei umas flores no parque vizinho, nada de especial, flores simples que ali estavam, ao alcance da minha mão. Nem sequer sei como se chamam.
Virá? Duvido, porque sei como é difícil vencer o medo que não é medo, a vergonha que não é tal, a culpa mais inocente. Duvido e, para mitigar a desconfiança destas horas em que permaneço à espera, acendo um cigarro. Atraio muito mais olhares dos passantes. É sempre assim. "Está a fumar", "está a comer", "está a chorar". Faça o que fizer, é sempre assim.
De repente olho para o ramo de flores e descubro que a minha mão, longe de as segurar, as aperta, as estrangula com essa violência mínima que basta para destroçar os frágeis pescoços vegetais. Sorrio ao pensar que em tão ínfima porção de tempo ficaram murchas, como as bandeiras de um diminuto exército vencido, e as pétalas como trapos sugerem-me que é tempo de empreender a retirada.
Atiro as flores para o primeiro caixote de lixo que encontro e afasto-me, seguido pelo olhar dos passeantes e pelas suas vozes que dizem: viste como o anão deitou fora as flores? Teria um encontro? Com uma anã? Deixaram o anão plantado. São estranhos os anões.
E outras observações cuja elevação não quero nem devo comentar.

Luis Sepúlveda, Lâmpada de Aladino, Porto Editora, 2008
Pintura Man Ray

Lâmpada de Aladino é constituída por treze belíssimos contos em que nos são revelados lugares e personagens  inesquecíveis. Em todos há uma espessura e uma densidade de sentimentos que fazem com que cada um pudesse também desenvolver-se  num grande romance.

14 junho 2010

De imprescindível leitura

Os dados estão lançados, o jogo é claro e quanto mais tarde identificarmos as novas regras mais elevado será o custo para os cidadãos europeus. A luta de classes está de volta à Europa e em termos tão novos que os actores sociais estão perplexos e paralisados. Enquanto prática política, a luta de classes entre o trabalho e o capital nasceu na Europa e, depois de muitos anos de confrontação violenta, foi na Europa que ela foi travada com mais equilíbrio e onde deu frutos mais auspiciosos. Os adversários verificaram que a institucionalização da luta seria mutuamente vantajosa: o capital consentiria em altos níveis de tributação e de intervenção do Estado em troca de não ver a sua prosperidade ameaçada; os trabalhadores conquistariam importantes direitos sociais em troca de desistirem de uma alternativa socialista.
Assim surgiram a concertação social e seus mais invejáveis resultados: altos níveis de competitividade indexados a altos níveis de protecção social; o modelo social europeu e o Estado Providência; a possibilidade, sem precedentes na história, de os trabalhadores e suas famílias poderem fazer planos de futuro a médio prazo (educação dos filhos, compra de casa); a paz social; o continente com os mais baixos níveis de desigualdade social.
Todo este sistema está à beira do colapso e os resultados são imprevisíveis. O relatório que o FMI acaba de divulgar sobre a economia espanhola é uma declaração de guerra: o acumulo histórico das lutas sociais, de tantas e tão laboriosas negociações e de equilíbrios tão duramente obtidos, é lançado por terra com inaudita arrogância e a Espanha é mandada recuar décadas na sua história: reduzir drasticamente os salários, destruir o sistema de pensões, eliminar direitos laborais (facilitar despedimentos, reduzir indemnizações).
A mesma receita será imposta a Portugal, como já foi à Grécia, e a outros países da Europa, muito para além da Europa do Sul. A Europa está a ser vítima de uma OPA por parte do FMI, cozinhada pelos neoliberais que dominam a União Europeia, de Merkel a Barroso, escondidos atrás do FMI para não pagarem os custos políticos da devastação social.
O senso comum neoliberal diz-nos que a culpa é da crise, que vivemos acima das nossas posses e que não há dinheiro para tanto bem-estar. Mas qualquer cidadão comum entende isto: se a FAO calcula que 30 mil milhões de dólares seriam suficientes para resolver o problema da fome no mundo e os governos insistem em dizer que não há dinheiro para isso, como se explica que, de repente, tenham surgido 900 mil milhões para salvar o sistema financeiro europeu? A luta de classes está a voltar sob uma nova forma mas com a violência de há cem anos: desta vez, é o capital financeiro quem declara guerra ao trabalho.
O que fazer? Haverá resistência mas esta, para ser eficaz, tem de ter em conta dois factos novos. Primeiro, a fragmentação do trabalho e a sociedade de consumo ditaram a crise dos sindicatos. Nunca os que trabalham trabalharam tanto e nunca lhes foi tão difícil identificarem-se como trabalhadores. A resistência terá nos sindicatos um pilar mas ele será bem frágil se a luta não for partilhada em pé de igualdade por movimentos de mulheres, ambientalistas, de consumidores, de direitos humanos, de imigrantes, contra o racismo, a xenofobia e a homofobia.
A crise atinge todos porque todos são trabalhadores.
Segundo, não há economias nacionais na Europa e, por isso, a resistência ou é europeia ou não existe. As lutas nacionais serão um alvo fácil dos que clamam pela governabilidade ao mesmo tempo que desgovernam. Os movimentos e as organizações de toda a Europa têm de se articular para mostrar aos governos que a estabilidade dos mercados não pode ser construída sobre as ruínas da estabilidade das vidas dos cidadãos e suas famílias. Não é o socialismo; é a demonstração de que ou a UE cria as condições para o capital produtivo se desvincular do capital financeiro ou o futuro é o fascismo e terá que ser combatido por todos os meios.
Boaventura Sousa Santos, in Visão
David Siqueiros: Retrato das Camadas Médias (fragmento de Mural)

13 junho 2010

Legados


Durante os meus anos de infância desenhou-me dezenas e dezenas de giríssimas caricaturas de gatos. Eram inventadas por ele e coloridas a lápis de cores de boa qualidade, daqueles que se diluem como aguarelas se lhe passarmos um pincel molhado por cima. O humor era fantástico, com gatos a patinar ou a tocarem guitarra numa banda de rock. Os gatos tinham uns olhos expressivos e bigodes a "abanar ao vento".

Ana Cunhal, entrevista ao Diário de Notícias por ocasião dos 5 anos da morte do pai.

Um dia feliz




Um dia feliz, C.

11 junho 2010

Como avisei na altura devida, chegámos a uma situação insustentável...

























Olhar


Olhar esta pintura de Darocha, de há tanto tempo, 1965, creio, e encontrar já os traços que nele são tão particulares, os brinquedos com que enche a tela, coisas que ninguém ousaria juntar.
Brinquedos que se simbolizam e nos interrogam, vivências pueris e sábias, mascotes, como quem vai à praia buscar conchinhas e as semeia no areal, feliz. Ao fundo, o farol da nossa juventude, a magia da luz no olhar da menina que centra o quadro.
E depois tudo voa, se sobrepõe, se transcende.

Vamos legendá-lo?
Eu sei que ele lê e aprecia muito.
Vá lá, eu começo: 
Um olhar, um farol.

08 junho 2010

Acerca da turbulência dos mercados


A 10 de Maio de 2010, os detentores de títulos do banco Société Générale, tranquilizados por uma nova injecção de 750 mil milhões de euros na fornalha da especulação, registaram ganhos de 23,89%. No mesmo dia, o presidente francês Nicolas Sarkozy anunciou que, por necessidades de rigor orçamental, iria ser cancelada a ajuda excepcional de 150 euros às famílias em dificuldades. Crise financeira após crise financeira, vai crescendo a convicção de que o poder político alinha a sua conduta pelas vontades dos accionistas. Periodicamente, porque a democracia assim exige, os eleitos convocam a população a privilegiar partidos que os «mercados» pré‐seleccionaram em função da sua inocuidade.

Serge Halimi, O governo dos bancos Ler Aqui
Quadro: Saturday Morning, Jennifer Li

06 junho 2010

El Secreto de Sus Ojos

 Uma  história de amor contada de forma magistral. Vidas que se cruzam na sequência de um homicídio e que ficam ligadas para sempre pela vontade indestrutível de recusar viver uma "vida vazia, cheia de nada". Olhares que falam mais do que a voz, gestos subtis que adquirem o valor de momentos únicos na vida (um botão de camisa que se solta, um amigo que, subitamente, fala do valor determinante das paixões).
Um decor que nos leva à Buenos Aires dos cafés do início do séc XX e dos bares num tempo em mudança.
Um elenco de actores excepcional, com uma realização magnífica, este filme revela bem a força do cinema quando sabe contar uma história.
E depois, mostra também de forma cristalina como a chegada das ditaduras é um tempo certo para a ascensão de toda a espécie de canalhas.

05 junho 2010

O eduquês como ideologia de incompetentes e oportunistas

Sugiro que usem alguns minutos do vosso tempo e conheçam esta intervenção de Guilherme Valente, um homem invulgar.

Diz que é uma espécie de avaliação ou... são as estatísticas, estúpido!


Pensávamos já ter visto tudo no domínio da destruição da escola pública levada a cabo nos últimos anos pelas cliques instaladas no Ministério da Educação.
A competição a que as novas gerações vão estar sujeitas e que a globalização tornou quase planetária, obrigaria os responsáveis  (se o fossem) à promoção de uma escola exigente, avaliadora do mérito e da competência, premiando o esforço, o trabalho e a dedicação dos estudantes.
A escola exigente será sempre um elemento formador de um jovem. A escola que aceita o laxismo, que desculpa e justifica a trapaça e o golpismo ... também.
Inventar agora uma forma  para que os alunos reprovados, sim - reprovados, no oitavo ano de escolaridade, caso tenham mais de quinze anos, possam autopropor-se a concluir o nono ano sem que o tenham frequentado é um daqueles momentos em que a realidade consegue ultrapassar qualquer ficção.

São evidentes as desigualdades que esta medida vem instaurar - «Aos adolescentes que completarem o 8º ano com sucesso exige-se que transitem para o 9º ano e aos alunos que não obtiveram aproveitamento curricular ao longo do ano lectivo abre-se a possibilidade de, após fazerem as provas nacionais e de equivalência de frequência, saltarem uma etapa e passarem à frente dos outros colegas. "Isso significa que os que trabalharam pior são mais beneficiados dos que os que se esforçaram na avaliação contínua"»

Assim, não vamos, de facto, a lado nenhum. Mas somos os ases das "estatísticas de sucesso".

04 junho 2010

Mesmo que não acreditem...



Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen.

Natália Correia, in Poesia Completa, Dom Quixote, 1999

Hoje quisemos fazer coro com a  Marta. Porque sim, ora!

03 junho 2010

Às vezes


Nos dias em que se vendia um borrego, havia dinheiro em casa. O meu pai voltava da feira e trazia da venda uma posta e dois rabos de bacalhau. Sem palavras, pousava tudo, embrulhado num jornal velho, em cima da mesa da cozinha. A minha mãe, em silêncio, guardava-o e punha-o  de molho no sábado seguinte.
No domingo eu acordava com o inconfundível cheiro, denso e húmido, do bacalhau e das couves a cozerem.
Quando voltava da missa, o cheiro persistia e as janelas da cozinha escorriam humidade.
Às vezes, a minha mãe cozia um ovo.

02 junho 2010

A inescrutabilidade de alguns propósitos

Ele ia todas as semanas a Barcelona por causa de assuntos da empresa e ela imaginava que ele ficava lá para sempre. Barcelona era na sua fantasia um espaço irreal de onde algumas pessoas não conseguiam voltar. O marido, no entanto, voltava e sem ter perdido uma pitada da sua autenticidade. Quase poderíamos dizer que regressava mais autêntico do que quando fora. As terças-feiras, enfim, eram dias felizes até que à noite ouvia deslizar a chave dele na fechadura.
Naquela terça-feira ela teve a premonição de que o avião sofreria um acidente em que pereceriam todos os passageiros.Teve-a antes de sair da cama, com um pé no sono e outro na vigília, e pensou que a ideia lhe sairia da cabeça no duche, ou enquanto estivesse a fazer o café. (...)
Quando ficou sozinha, ligou o rádio e esperou ansiosamente que dessem a notícia. Demoraram um pouco mais de uma hora, mas caíra um avião, com efeito, e era aquele em que seu marido viajava.(...) À hora do almoço ainda não recebera nenhuma chamada, mas não se preocupou por achar que a identificaçãodas vítimas seria muito laboriosa. O importante era que morrera. Venderia a casa, que ficava nos arredores, e iria viver para o centro, para estar perto dos cinemas, dos restaurantes, do bulício. O marido dela nunca gostara de Madrid, e por isso viviam na periferia. Ela detestava a periferia. O seguro de vida era muito alto e duplicava em caso de acidente. Não teria problemas em seguir em frente. (...)
A meio da tarde começou a inquietar-se, mas ligou o rádio e disseram que nem tinham começado as tarefas de identificação.(...)
Às oito e meia, ao ouvir um ruído proveniente da porta, foi até ao corredor e viu o marido entrar com toda a naturalidade. A primeira coisa que pensou foi que era uma aparição. Muitos mortos não se apercebiam que estavam mortos e continuavam a fazer as mesmas coisas que faziam quando estavam vivos. (...)
Deduziu que às terças-feiras não ia a Barcelona, mas sim que se encontrava com alguma amante nalgum sítio muito isolado, pois nem sequer soubera do acidente.
- Não soubeste que o teu avião teve um acidente e que estás morto, meu cabrão?
- O que estás a dizer, mulher?
- Que ainda não te identificaram. Não ouviste a rádio durante todo o dia?
Ele ficou corado de vergonha e durante uns instantes hesitou em fingir que era uma aparição.
- Pois para mim, a partir de agora, estás morto - disse ela, indo para a cama sem ver a televisão.
Desde esse dia ele começou a fazer-se morto e as suas relações, com alguma surpresa, melhoraram inefavelmente. Às terças feiras deixou de fingir que ia a Barcelona e passavam o dia todo juntos, na cama, como se fossem amantes clandestinos.Descobriram a necrofilia os dois ao mesmo tempo e há alguns meses conheceram o prazer de ter filhos póstumos. Agora, por fim, são uma família feliz, normal, das que conhecemos todos os dias e das que nos despedimos todas as noites.
Os caminhos do Senhor são inescrutáveis.

João José Millás, Os Objectos Chamam-nos

01 junho 2010

Ferreira Gullar























A poesia
quando chega
não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
de qualquer de seus abismos
desconhece o Estado e a Sociedade Civil
infringe o Código de Águas
relincha
como puta
nova
em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
reconsidera: beija
nos olhos os que ganham mal
embala no colo
os que têm sede de felicidade
e de justiça
E promete incendiar o país
........................................................................
Ferreira Gullar, poeta e dramaturgo, nascido em 1930 em S. Luis do Maranhão, ganhou o Prémio Camões 2010. Homem e cidadão integro, para quem nada é intocável ou indiscutível, manifestou-se felicíssimo com este Prémio.
Nós também. 

Este ganhou a guerra?


Com o que se passa na Europa, no nosso pequeno país, na Inglaterra,Irlanda, em França, Espanha, Grécia,Itália,,Países Baixos, com a Alemanha a liderar e a não assumir os pressupostos de uma União, eu, modestamente, gostaria que alguém me dissesse:
ESTE GANHOU A GUERRA?
Era só isso.
Abraço.