Ele ia todas as semanas a Barcelona por causa de assuntos da empresa e ela imaginava que ele ficava lá para sempre. Barcelona era na sua fantasia um espaço irreal de onde algumas pessoas não conseguiam voltar. O marido, no entanto, voltava e sem ter perdido uma pitada da sua autenticidade. Quase poderíamos dizer que regressava mais autêntico do que quando fora. As terças-feiras, enfim, eram dias felizes até que à noite ouvia deslizar a chave dele na fechadura.
Naquela terça-feira ela teve a premonição de que o avião sofreria um acidente em que pereceriam todos os passageiros.Teve-a antes de sair da cama, com um pé no sono e outro na vigília, e pensou que a ideia lhe sairia da cabeça no duche, ou enquanto estivesse a fazer o café. (...)
Quando ficou sozinha, ligou o rádio e esperou ansiosamente que dessem a notícia. Demoraram um pouco mais de uma hora, mas caíra um avião, com efeito, e era aquele em que seu marido viajava.(...) À hora do almoço ainda não recebera nenhuma chamada, mas não se preocupou por achar que a identificaçãodas vítimas seria muito laboriosa. O importante era que morrera. Venderia a casa, que ficava nos arredores, e iria viver para o centro, para estar perto dos cinemas, dos restaurantes, do bulício. O marido dela nunca gostara de Madrid, e por isso viviam na periferia. Ela detestava a periferia. O seguro de vida era muito alto e duplicava em caso de acidente. Não teria problemas em seguir em frente. (...)
A meio da tarde começou a inquietar-se, mas ligou o rádio e disseram que nem tinham começado as tarefas de identificação.(...)
Às oito e meia, ao ouvir um ruído proveniente da porta, foi até ao corredor e viu o marido entrar com toda a naturalidade. A primeira coisa que pensou foi que era uma aparição. Muitos mortos não se apercebiam que estavam mortos e continuavam a fazer as mesmas coisas que faziam quando estavam vivos. (...)
Deduziu que às terças-feiras não ia a Barcelona, mas sim que se encontrava com alguma amante nalgum sítio muito isolado, pois nem sequer soubera do acidente.
Deduziu que às terças-feiras não ia a Barcelona, mas sim que se encontrava com alguma amante nalgum sítio muito isolado, pois nem sequer soubera do acidente.
- Não soubeste que o teu avião teve um acidente e que estás morto, meu cabrão?
- O que estás a dizer, mulher?
- Que ainda não te identificaram. Não ouviste a rádio durante todo o dia?
Ele ficou corado de vergonha e durante uns instantes hesitou em fingir que era uma aparição.
- Pois para mim, a partir de agora, estás morto - disse ela, indo para a cama sem ver a televisão.
Desde esse dia ele começou a fazer-se morto e as suas relações, com alguma surpresa, melhoraram inefavelmente. Às terças feiras deixou de fingir que ia a Barcelona e passavam o dia todo juntos, na cama, como se fossem amantes clandestinos.Descobriram a necrofilia os dois ao mesmo tempo e há alguns meses conheceram o prazer de ter filhos póstumos. Agora, por fim, são uma família feliz, normal, das que conhecemos todos os dias e das que nos despedimos todas as noites.
Os caminhos do Senhor são inescrutáveis.
Os caminhos do Senhor são inescrutáveis.
João José Millás, Os Objectos Chamam-nos
4 comentários:
Muito giro!
Obrigada, Paulo.
Inquietante!
Só tenho a agradecer como a Ana!
Ana Paula, Millàs é um fantástico narrador do quotidiano e consegue retratá-la em contos exemplares.
Obrigado eu :):)
Keila, inquietante, sim, tal a forma como se cola à realidade.
Abraço
tanto tanto tanto.
vou levar, Paulo.
abraço.
Enviar um comentário