03 junho 2010

Às vezes


Nos dias em que se vendia um borrego, havia dinheiro em casa. O meu pai voltava da feira e trazia da venda uma posta e dois rabos de bacalhau. Sem palavras, pousava tudo, embrulhado num jornal velho, em cima da mesa da cozinha. A minha mãe, em silêncio, guardava-o e punha-o  de molho no sábado seguinte.
No domingo eu acordava com o inconfundível cheiro, denso e húmido, do bacalhau e das couves a cozerem.
Quando voltava da missa, o cheiro persistia e as janelas da cozinha escorriam humidade.
Às vezes, a minha mãe cozia um ovo.

4 comentários:

Keila Costa disse...

O inconfundível cheiro do bacalhau...e as lembranças evocadas...Belo!

C. disse...

Acho este texto uma pérola, Paulo. Os não ditos são incrivelmente sugestivos.

"Caçaste" bem o ambiente pesado, pobre e angustiante de um tempo longínquo. O Herberto Helder diz que "a memória é improvável". Será?

clara disse...

Giro!!!Fixe, gostei.

Paulo disse...

Keila, é um bom exercício para a escrita o retomar a memória e trazê-la para a narrativa.
Obrigado

C., a memória do narrador é, acho, essencial à escrita.
Obrigado.

Clara, o ponto de partida foi o cheiro da memória do narrador, de que se apropriou a personagem. Este odor surge primeiro que tudo em jantares de Natal que tu conheces.
Beijo