16 junho 2010

História Mínima


Há duas horas que espero e que me importa se me olham, resmungo em voz baixa enquanto procuro ver-me num ângulo do espelho para alisar o cabelo e endireitar o nó da gravata. Vêem-se muitas coisas no espelho: costas de material sintético que ostentam casacos de marca; pernas metidas em calças de linho porque o Verão se aproxima; estranhas estruturas vagamente antropomórficas como suportes de camisas ou camisolas daquelas que se usam negligentemente sobre os ombros e, entre dois pares de mocassins, vê-se também a minha cabeça, o meu rosto um pouco nervoso, sério, esperançoso.
As pessoas olham para mim, algumas sorriem, outras dão uma cotovelada ao companheiro de caminho para que repare em mim, e sei que não é pela minha indumentária. Vestido ou despido, nunca passarei despercebido. Cortei umas flores no parque vizinho, nada de especial, flores simples que ali estavam, ao alcance da minha mão. Nem sequer sei como se chamam.
Virá? Duvido, porque sei como é difícil vencer o medo que não é medo, a vergonha que não é tal, a culpa mais inocente. Duvido e, para mitigar a desconfiança destas horas em que permaneço à espera, acendo um cigarro. Atraio muito mais olhares dos passantes. É sempre assim. "Está a fumar", "está a comer", "está a chorar". Faça o que fizer, é sempre assim.
De repente olho para o ramo de flores e descubro que a minha mão, longe de as segurar, as aperta, as estrangula com essa violência mínima que basta para destroçar os frágeis pescoços vegetais. Sorrio ao pensar que em tão ínfima porção de tempo ficaram murchas, como as bandeiras de um diminuto exército vencido, e as pétalas como trapos sugerem-me que é tempo de empreender a retirada.
Atiro as flores para o primeiro caixote de lixo que encontro e afasto-me, seguido pelo olhar dos passeantes e pelas suas vozes que dizem: viste como o anão deitou fora as flores? Teria um encontro? Com uma anã? Deixaram o anão plantado. São estranhos os anões.
E outras observações cuja elevação não quero nem devo comentar.

Luis Sepúlveda, Lâmpada de Aladino, Porto Editora, 2008
Pintura Man Ray

Lâmpada de Aladino é constituída por treze belíssimos contos em que nos são revelados lugares e personagens  inesquecíveis. Em todos há uma espessura e uma densidade de sentimentos que fazem com que cada um pudesse também desenvolver-se  num grande romance.

1 comentário:

Keila Costa disse...

Tão denso que de início jamais pensaria em uma característica física, mas absolutemente psicológica... embora a descrição seja tão pertinente, o que desperta em nós é o sentimento do físico, e não ele próprio, e o olhar que mira por tantas razões e desrazões...Belo conto!
Obrigada Paulo! Abraços