31 agosto 2009

Uma insuportável aridez no conforto

Passar mais tempo na companhia dos residentes de Starfish Beach era outra possibilidade insuportável. Ao contrário dele, muitos conseguiam não só construir conversas inteiras que giravam à volta dos netos mas também encontrar na existência dos netos razões para eles próprios existirem. Apanhado na companhia deles, experimentava por vezes a solidão naquela que era talvez a sua forma mais pura. E mesmo com aqueles residentes que eram pessoas ponderadas e de conversa agradável, só era interessante estar de vez em quando. Na sua maioria, os residentes idosos tinham casamentos que duravam há décadas e continuavam de tal maneira ligados ao que restava da sua felicidade conjugal que raramente conseguia convencer um marido a ir com ele almoçar fora sem levar a mulher. Embora por vezes olhasse com nostalgia para aqueles casais quando descia a noite ou nas tardes de domingo, havia a considerar as restantes horas da semana, e aquilo não era vida que desejasse para si quando estava no auge da melancolia. A conclusão a tirar era de que nunca devia ter ido viver para uma comunidade como aquela. Tinha-se desenraizado precisamente na altura em que aquilo que a idade mais exigia dele era que estivesse enraizado como tinha estado durante todos os anos em que dirigiu o departamento criativo da agência. Sempre tinha sido revigorado pela estabilidade, não pela estase. E aquilo era estagnação. O que tinha agora era a ausência de todas as formas de consolação, uma total aridez a que chamavam conforto, e nenhuma hipótese de voltar ao que era antes. Tinha-se apoderado dele uma sensação de "alteridade", uma palavra que no seu léxico pessoal descrevia um estado que lhe era quase estranho até que a sua aluna de pintura Millicent Kramer a tinha usado em tom lancinante para lamentar o estado a que tinha chegado.Já nada lhe despertava a curiosidade ou satisfazia as necessidades, nem a pintura, nem os vizinhos, nada a não ser as mulheres jovens que de manhã se cruzavam com ele no passeio marítimo, a fazer jogging. Meu Deus, pensava, o homem que eu era! A vida que me rodeava! A força que eu tinha! Não sentia nenhuma "alteridade"! Em tempos que já lá vão fui um ser humano completo.


Philip Roth, Todo-O-Mundo, Dom Quixote, 2006

30 agosto 2009

O PS, os problemas e anseios da juventude



Há jovens que procuram trabalho e não encontram. Há jovens que têm de emigrar para trabalhar. Há jovens que no país e no estrangeiro estudam e fazem investigação de altíssimo nível, sem qualquer garantia de reconhecimento no seu país.Há jovens com qualidades artísticas invulgares que aprofundam a sua arte em escolas e Conservatórios de onde saem sem acesso ao mercado de trabalho. Será que estes jovens, com os seus problemas e anseios, se revêem na mandatária escolhida, para sua representante, na próxima campanha eleitoral do Partido Socialista .

29 agosto 2009

A cosmética da ética

«É impossível não ver no programa eleitoral do PSD ontem apresentado, e no anúncio pela dra. Ferreira Leite de políticas de firme combate a medidas da dra. Ferreira Leite, a mão maoista (ou o que resta dela) de Pacheco Pereira, a da autocrítica.
Assim, se chegar ao Governo, a dra. Ferreira Leite extinguirá o pagamento especial por conta que a dra. Ferreira Leite criou em 2001; a primeira-ministra dra. Ferreira Leite alterará o regime do IVA, que a ministra das Finanças dra. Ferreira Leite, em 2002, aumentou de 17 para 19% ; promoverá a motivação e valorização dos funcionários públicos cujos salários a dra. Ferreira Leite congelou em 2003; consolidará efectiva, e não apenas aparentemente, o défice que a dra. Ferreira Leite maquilhou com receitas extraordinárias em 2002, 2003 e 2004; e levará a paz às escolas, onde o desagrado dos alunos com a ministra da Educação dra. Ferreira Leite chegou, em 1994, ao ponto de lhe exibirem os traseiros. No dia anterior, o delfim Paulo Rangel já tinha preparado os portugueses para o que aí vinha: "A política é autónoma da ética e a ética é autónoma da política". »

27 agosto 2009

Espelho meu, espelho meu...





/155/ Há muitos anos um oficial do exército de ocupação, em Moçambique, disse-me, na parada, enquanto eu, perfilado, tremia de medo: "você, nessa cabeça tem só merda!" Eu acreditei!
Quando poetas me dizem: "o teu lugar é aqui, entre nós", como se alguém estivesse a tirar-nos uma fotografia, acredito logo.
Porque não sei o que pensar de mim, se vocês me desprezarem, sentir-me-ei desprezível; se me estimarem, estimável. Sou quem os que amo (ou detesto) pensam de mim. Pouco mais. Sublinhei algumas palavras para que vocês notem que não há uma sinfonia, um poema, sequer "aquela cartinha" que escrevemos a alguém que não sejam conduzidas por qualquer ideia. Temática. Insistente. Obcecante.

Sebastião Alba, in Albas, Ed. Quasi, 2003
Foto: R.Misrach
Música: Kate Bush & Larry Adler

26 agosto 2009

algumas tristezas não são de espanar*


O relatório recentemente divulgado por um Grupo Canadiano de defesa dos direitos da Criança, Hard Work, Little Pay and Long Hours ,revela que milhares de crianças no Malawi trabalhando em campos de tabaco estão a sofrer de intoxicação por nicotina (Green Tobacco Sickness) devido ao contacto com a folha de tabaco.
Considera o estudo que estas crianças, muitas vezes a partir dos 5 anos, têm uma absorção cutânea de nicotina de cerca de 54 miligramas, o equivalente a 50 cigarros por dia.
É conhecido que a Doença de Tabaco Verde tem uma gravidade muito maior em crianças, dado não terem desenvolvido qualquer mecanismo de tolerância à nicotina. Nestas crianças tudo se agrava devido à sua pequena estatura e debilidade física.
O relatório enfatiza a necessidade de haver uma mobilização mundial no sentido de se exigir que as companhias multinacionais respeitem os direitos humanos básicos quanto à forma como são explorados os trabalhadores dos campos de tabaco e, sobretudo, os direitos das crianças num país onde a mais extrema miséria leva a que cerca de 80.000 meninos e meninas trabalhem em condições sub-humanas, mais de 12 horas por dia, a troco de 17 cêntimos.
Estas crianças vivem e sofrem em silêncio, mas o seu silêncio é um grito ensurdecedor.

* Ondjaki in Materiais para a Confecção de um Espanador de Tristezas, Caminho Poesia 2009
Foto aqui

Nabices

----Houve leitores que me avisaram do bloqueio da playlist publicada há uns dias. Aquando da criação, não me apercebi de que duas ou três faixas não estavam disponíveis "para o meu país" - diziam no site. Por isso, ficou bloqueada a escuta. Penso que já consegui resolver a questão que, obviamente terá maior significado para quem viveu na época dessas melodias. Aqui fica o "trabalho de casa" que já pode ilustrar o ambiente do post. Obrigada.

25 agosto 2009

Outono

Talvez este silêncio more em ti
nesse breve instante do teu ser
e antes de subir ao pó antigo
falo-te de palavras e de gestos
Aqui será então eternidade
e o que não tem nome será dito
seremos filhos das estrelas e dos rios
do mundo sem tempo nem lugar



(foto:António Cruz)

24 agosto 2009

a ocasião

"Talvez já tenham ficado enlevados com alguém numa festa, no escritório ou na praia e, mais tarde, perguntado se não terão apenas sido levados pela excitação do momento. O vosso desejo de amar e ser amados, alterou a vossa visão - transformando um sapo num príncipe ou princesa. Confundiram o dançarino com a dança.
O amor pode desencadear-se quando menos se espera. Por puro acaso. O par perfeito pode estar sentado ao vosso lado numa festa sem que vocês reparem nele ou nela, sobretudo se estiverem ocupados (... ) envolvidos noutra relação, ou emocionalmente ocupados por qualquer outro motivo.
Mas se uma pessoa acabou de entrar para a faculdade, ou se se mudou para outra cidade sozinha, se acabou de recuperar de um caso de amor não satisfatório( ... ) se se sente só ou sofre por estar a atravessar uma experiência difícil, ou dispõe de muito tempo livre, essa pessoa está pronta para se apaixonar. De facto, as pessoas que estão emocionalmente excitadas, por alegria, tristeza, ansiedade, medo, curiosidade (...) têm maior predisposição para (...) paixão.
Suspeito que assim aconteça porque todos os estados mentais agitados estão associados a mecanismos de activação no cérebro, bem como a níveis elevados das hormonas de tensão. Ambos os sistemas elevam os níveis de dopamina - pondo assim em acção a química da paixão amorosa. "
Helen Fisher in Porque Amamos

A chamada química do amor (ou a biologia das paixões) é um tema apaixonante. Propício à reflexão, quando o estio e o outono já se vão misturando ...

22 agosto 2009

Nenhuma ocasião vale o temor





Que o medo não te tolha a tua mão
Nenhuma ocasião vale o temor
Ergue a cabeça dignamente irmão
falo-te em nome seja de quem for

No princípio de tudo o coração
como o fogo alastrava em redor
Uma nuvem qualquer toldou então
céus de canção promessa e amor

Mas tudo é apenas o que é
levanta-te do chão põe-te de pé
lembro-te apenas o que te esqueceu

Não temas porque tudo recomeça
Nada se perde por mais que aconteça
uma vez que já tudo se perdeu

Ruy Belo

Foto Herby Crus

Silje Nergaard canta Bewitched, Bothered and Bewilded

21 agosto 2009

"Nunca é tarde demais para amar"



Um filme que podia ser um melodrama banal sobre um triângulo amoroso. E não é.
Num tempo de obsessivo enaltecimento da juventude, de corpos atléticos, ginasticados, magros e sem defeitos, não se esperaria que houvesse filmes mostrando todas as marcas do envelhecimento, corpos que sentem desejo de outros corpos igualmente marcados pelo desgaste.
Este é, por isso, um filme diferente.
Para mais, centrando toda a narrativa no desejo e na complexidade de opções a ultrapassar por uma mulher e um homem, donos destes corpos, para afirmarem o amor. Desta ousadia resulta um filme espantoso.
A realização de Andreas Dresen utiliza os rostos, os diálogos, a lentidão do tempo e os silêncios, numa proximidade com Bergman que resulta numa obra densa, expressiva e envolvente.
O trabalho dos 3 actores é notável, sobretudo a magnífica Ursula Werner.
Nota: O filme chama-se no original Wolke 9. A tradução não é fácil, mas, mesmo para quem não conhece bem a língua alemã, consegue, com um pequeno esforço de busca, encontrar alternativas ao nome "piegas" que lhe deram em Portugal. As expressões "Sétimo Céu" ou "Sentir-se nas Nuvens" são muito mais próximas do conteúdo do filme.

19 agosto 2009

Frederico Garcia Lorca


No dia 19 de Agosto de 1936, o poeta espanhol Federico García Lorca foi fuzilado por um grupo de fascistas em Viznar (Granada).
Tinha nascido em 5 de Junho de 1898, em Fuentevaqueros, um povoado próximo de Granada. O pai era um importante latifundiário daquela região, mas os Lorca eram personalidades liberais, que deram ao filho uma educação avançada para a época.
Na sua última entrevista conhecida, publicada em Junho de 1936, dizia que em Granada vivia "a pior burguesia de toda a Espanha". Esta corajosa declaração, aliada às simpatias políticas e à sua homosexualidade, terá sido a causa próxima da sua morte.
Durante o governo republicano, Lorca, sem qualquer filiação partidária, teve uma actividade cultural militante, viajando com o teatro ambulante La Barraca por todo o país, levando peças a zonas que o desconheciam por completo.
Garcia Lorca pertence à chamada Geração de 1927 , grupo de que fazem parte os maiores escritores de Espanha do séculoXX.
A sua obra como dramaturgo é marcada pelas personagens femininas em luta contra as regras e a moral vigente.

Cancion Tonta
Mamá,
yo quiero ser de plata.
Hijo,
tendrás mucho frío.
Mamá.
Yo quiero ser de agua.
Hijo,
tendrás mucho frío.
Mamá.
Bórdarme en tu almohada.
¡Eso sí!
¡Ahora mismo!

18 agosto 2009

Aquele Agosto


 
 
Chegávamos à aldeia pelo lado da Portela, o Fiat 1400 ziguezagueando na castanha estrada poeirenta a que chamávamos, cheias de contentamento, "a estrada de canela". O cheiro dos pinheiros e a cor da terra diziam-nos que estávamos quase a chegar a casa da avó.
- Já aí estão, António! É a Nina.O súbito reencontro das lembranças - a leira com a latada, o musgo seco a romper nos degraus graníticos da casa, tão grandes... tão altos, até ao patim; a imensa cozinha sombria, o forro proibido.
- E os coelhos, avó, não tens coelhos? Mãe, é este ano que podemos ir ao baile? E podemos ir com a Sãozita para casa dela?O motor da rega longínquo, a tossir, por entre os feijoeiros.

Agosto era o mês das festas, das feiras, do casamento das afilhadas e da animação à volta do coreto, quase em frente da igreja. Era o mês da doçaria nas bancadas da estrada - os sonhos, os beijinhos de mil cores, o doce da Teixeira de sabor a canela.
Mas naquele ano... naquele ano havíamos de pôr a tocar o rock'n roll. Os que vinham de mais longe, das cidades, já traziam outros ritmos no ouvido. Alguns vinham estrangeirados e tinham até revistas coloridas com cantores na capa.
 
Então, um dos mais afoitos pediu emprestado o pátio da casa ao primo Heitor, que era o dono do café e da mercearia. Outro tratou de arranjar “o som” e não sei quem mais chegou com uma mão cheia de LP’s e 45 rotações que haviam de pôr a rapaziada a dançar.

A tarde já ia a meio, pachorrenta e morna, com o sol por trás das casas, o carro dos bois chiando ao longe, as sombras acolhendo o mulherio à beira dos tanques, na sossega da lavoura.
- Ei, malta, o Pinto já chegou. Que é do som? Tragam o som! Ide buscar umas cadeiras e a mesa, ali para o canto. Temos de puxar o fio da electricidade aqui para baixo. E quem é que vai chamar as moças? Vão buscar as raparigas!Nessa tarde, o coreto havia de esperar.
Escolhemos os vestidos de flores azuis, desprendemos o cabelo e deixámos soquetes e laços, que ficavam melhor com os sapatos de fivela para a procissão de domingo. Aos poucos lá nos fomos juntando – os irmãos Pinto, a Estelinha e a Zé, eu e a minha irmã, o Fernando que viera com a madrinha, o Carlos da moto, todo vaidoso do exame do liceu que havia de fazê-lo “o senhor engenheiro Carlinhos”. Era uma animação.

Hoje, tudo parece ridículo – as danças ritmadas de cotovelo à cintura, o corpo bamboleante, as músicas meladas de olhares cruzados, desviados para o largo da igreja, ali em frente. O risinho miúdo das raparigas. As graçolas sonoras dos rapazes, folgazões.
- A próxima música é para mim, Estelinha! Ouviste, ó Carlos?
A memória é improvável, mas sei que lá pela quinta ou sexta música, uma madeixa de cabelo se colou à testa no calor da dança, e uma mão trémula a desviou dos olhos, brevíssima, inaugurando sorrisos.
Nesse agosto que não voltaríamos a repetir. A saída de uma longa infância era já ali.

O Poeta Em Lisboa

Quatro horas da tarde. O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos. Tem febre. Arde. E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos. Segue por esta, por aquela rua sem pressa de chegar seja onde for. Pára. Continua. E olha a multidão, suavemente, com horror. Entra no café. Abre um livro fantástico, impossível. Mas não lê. Trabalha - numa música secreta, inaudível. Pede um cigarro. Fuma. Labaredas loucas saem-lhe da garganta. Da bruma espreita-o uma mulher nua, branca, branca. Fuma mais. Outra vez. E atira um braço decepado para a mesa. Não pensa no fim do mês. A noite é a sua única certeza. Sai de novo para o mundo. Fechada à chave a humanidade janta. Livre, vagabundo dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta. Sonâmbulo, magntfico segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado. Um luar terrífico vela o seu passo transtornado. Seis da madrugada. A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa. Defende-se à dentada da vida proletária, aristocrática, burguesa. Febre alta, violenta e dois olhos terríveis, extraordinários, belos, Fiel, atenta a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.

António José Forte

(in O Pó Da Escrita)

Imagem de autor desconhecido

17 agosto 2009

Um sinal apenas...



It's time to make a start
To get to know your heart
Time to show your face
Time to take your place
In every speck of dust
In every universe
When you feel most alone
You will not be alone
Just shine a light on me
Shine a light
I'll shine a light on you
Shine a light
And you will see my shadow
On every wall
And you will see my footprints
On every floor
It only takes a spark
To tear the world apart
These tiny little things
That make it all begin
Just shine a light on me
Shine a light
I'll shine a light on you
Shine a light
And you will see my shadow
On every wall
And you will see my reflection
In your freefall
Ooooooooh
Ooh ooh
Just shine a light on me
Shine a light
I'll shine a light on you
Shine a light
Cos when your back's against the wall
That's when you show no fear at all
And when you're running out of time
That's when you hitch your star to mine
We won't be leaving by the same road that we came by
...............

Os Keane, são uma Banda de Pop Rock Britânica, formada em 1995 por Tim Rice-Oxley (baixo, guitarra e vocal), Dominic Scott (guitarra e vocal) e Richard Hughes (bateria). Em 1997, Tom Chaplin (vocal e guitarra) passa a integrar a banda. Nessa altura, o grupo adopta também o teclado como um dos instrumentos. Em 2001 Dominic Scott deixa a Banda e a partir de 2002 o seu som destaca-se pela maior utilização do piano e pela original voz de Tom Chaplin.

Foto de Erwin Olaf. Um dos mais importantes fotógrafos europeus da actualidade. Em Montemor o Novo decorre até ao fim do mês uma exposição de trabalhos seus feitos a partir de obras de pintura de artistas espanhóis (El Greco, Picasso, Zurbáran)

14 agosto 2009

O dia vem com as sombras

--*


















Nesse tempo somos cegos
pelas manhãs e os sonhos
tão suaves como amoras

_______leva-me a ver a lua
o que é um homem na noite
no silêncio, quando chora?

Nesse tempo somos cegos
e em tudo a vida demora
o tempo – uma rosa a arder

Nesse tempo
___________________
um dia descubro
que a casa sou eu


* The Cinematic Orchestra - To build a home

12 agosto 2009

Luz


Era assim a inocência feita de luz
nas cores primeiras da nossa infância
o azul de sempre e o branco total
em todas as coisas o tempo tardava

O som do restolhar dos passos na rua
os barcos pousados na lenta manhã
uma voz anuncia vento norte
ao rez do sonho desfeito e breve

um nó de brisa escorre dos dedos
nas pedras breves na carne dos dias
na frescura das águas adormecidas

11 agosto 2009

Silêncios

--*













Cheguei a ter medo

Cheguei a ter medo de te perder,
tu não chegaste sequer a ter medo.
Este silêncio de já não termos palavras
ouve-se nas outras palavras que trocamos.

Miserável mundo nosso e alheio,
igual ao que todos disseram da sua época,
e pior, porque este vivemos nós
e conhecemos nós, cada um conforme pode.

Já morrerem os ídolos todos da infância
e os da adolescência vão a caminho,
sobrevivente é o teu olhar cego
(hoje há já só um dos Righteous Brothers).

Na feira de velharias uma caixa
para tabaco com uma rosa verde.
Tem o preço ainda em escudos, uma falha
num dos cantos, uma pequena cruz de cal.

Permaneces aí, à lareira, lendo livros vivos
e o seu turbilhão de palavras profundas.
Nunca mais chega o medo de nos perdermos,
eco um do outro em ricochete de silêncios.

Helder Moura Pereira, Mútuo Consentimento, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005
Foto daqui
* Gary Moore – Still Got the Blues

10 agosto 2009

Visita de médico



"Chegado a casa do doente, antes de o observar, pergunte se já lá foi o confessor. Se isso não tiver ainda acontecido, faça com que tal suceda ou ele deve prometer de que isso irá acontecer. Um doente que ouve falar dessa necessidade após ser observado pelo médico vai pensar que este desesperou de o curar.
Ao entrar no quarto do doente, não se deve apresentar nem exuberante nem contido. Deve cumprimentar os que se levantam à sua chegada e sentar-se junto ao doente.
Virando-se para o doente, deve perguntar-lhe como vai, segurando-lhe delicadamente no braço. A princípio pode haver diferenças de pulsação. A do doente pode estar acelerada pela excitação da chegada do médico ou pelo susto do preço da consulta
O médico deve prometer sempre ao doente que, com a ajuda de Deus, o vai curar. À saída, o médico deve dizer à criadagem que ele está muito mal, porque, se houver recuperação, isso dar-lhe-á muito crédito e se morrer confirmarão que o médico o tinha previsto desde o início.
Entretanto, o médico é aconselhado a não demorar o olhar na esposa, na filha ou nas criadas do doente."
(Glick, Livesey, Wallis in Medieval Science, Technology and Medicine)

A Schola Medica Salernitana foi a primeira escola médica medieval.
Fundada no séc.X, teve o seu maior esplendor nos séc. XI e XII. O seu elemento mais conhecido foi Constantino Africano, que traduziu os clássicos da medicina árabe para o latim.
Nesta escola cruzaram-se os conhecimentos das escolas Grega, Árabe e de Norte de África.
Foi a Escola de Salerno que iniciou o estudo das características do pulso arterial, desenvolvido mais tarde, durante a Renascença, com o conhecimento da circulação humana.

09 agosto 2009

A terceira mãe

--*


















Tive de ser eu a fazer as perguntas todas e a encontrar respostas. Encontrá-las no mínimo som de uma porta a fechar-se. Havia as tardes do estrondo e as tardes do sussurro, as tardes da pressa e as da hesitação. E através dos movimentos da porta, das vozes e não-vozes atrás dela, dos diálogos entre as mãos à mesa, dos recantos interiores e exteriores aos corpos, fui formulando as perguntas e capturando respostas à socapa.
A vontade nunca foi o teu forte, muito menos o de clarificar as coisas. O teu forte é a humildade, é a paciência, são os ombros tantas vezes encolhidos que se tornaram covas e engoliram a alegria, a tua e a dos teus, de tanto lhes quereres bem. Mereces ser condecorada no treze de Maio, Grã-Cruz da Ordem da Renúncia. Melhor ainda, a beatificação em vida, na próxima visita do Papa ao nosso queridíssimo Santuário.
Mas para isso era preciso fazeres milagres, e não consegues. Está provado que não consegues. Tentaste tanto. Querias curar-me as dores de barriga com a mão e conseguias acalmar-me o choro, mas depois ias a correr chamar o médico. Com o pai a mesma coisa. Passavas-lhe a mão pela testa suada, entravas em tudo quanto fosse ervanária à procura de chás, xaropes, poções.
E depois foi o que se viu. Até desistires sem sequer chorar.
Eu não desisto. Sou uma Fúria desintegrada da tragédia. Rasgo as vestes, choro prantos de sangue, firo o corpo nas lages do chão. Mas nunca mais de meia hora. A decisão sacode-me, grito por uma caneta.

Julieta Monginho, A Terceira Mãe, Campo das Letras, 2008.
Pintura de Paula Rego, Prey, 1986
* Nick Cave & The Bad Seeds, People Ain't No Good

08 agosto 2009

Olhando



"Assim ela ficou presa, mas sem vaidade, à paisagem do seu eu, que tinha diante dos olhos sob uma película de vidro. Chegou aos cabelos, que continuavam claros e aveludados; abriu a gola à imagem do espelho e afastou-lhe o vestido dos ombros; despiu-o em seguida completamente, examinando a imagem até às conchas rosadas das unhas, onde o corpo termina nas mãos e nos pés e já mal é pertença sua. Tudo era ainda como o dia citilante a aproximar-se do zénite: ascendente, puro, nítido, atravessado por aquele tempo-de-devir de antes do meio dia, que se manifesta de forma indescritível numa pessoa ou num animal jovem como numa bola que ainda não alcançou o ponto mais alto, mas está pouco abaixo dele..."
Robert Musil, O Homem Sem Qualidades

07 agosto 2009

Lubna Hussein


Lubna Ahmed al-Hussein viu adiado o julgamento para o dia 7 de Setembro.
Este adiamento foi devido, em larga medida, aos protestos que têm crescido de dimensão, em Cartum, Sudão e um pouco por todo o mundo devido à divulgação do seu caso.
A jornalista, trabalha no gabinete de imprensa da ONU e é acusada de "atentado ao pudor" por ter entrado vestindo calças num restaurante da capital do Sudão.
A pena prevista para este "crime" é de 40 chicotadas, mais uma multa pecuniária.
"Ser chicoteada não é uma dor, é um insulto aos seres humanos, às mulheres e às religiões", declarou Lubna Hussein.
No passado dia 4,cerca de 50 mulheres foram agredidas pela polícia com bastões e gaz lacrimogénio à porta do tribunal de Cartum, quando ali protestavam contra o julgamento de Lubna Hussein.
É imperioso que este caso seja divulgado, que por todo o mundo se tomem posições firmes contra este julgamento, a favor desta mulher que passou a ser um símbolo de dignidade de todos os seres humanos.

06 agosto 2009

Stieg Larsson

Stieg Larsson, jornalista sueco (1954-2004), morreria, subitamente, em 2004, logo após ter entregado os manuscritos dos livros que iriam ser um fantástico sucesso em todo o mundo. Responsável pela revista Expo, Larsson foi um grande investigador dos movimentos antidemocráticos e nazis.
A sua Trilogia Milénio, constituída pelos três volumes "Os Homens Que Odeiam As Mulheres", "A Rapariga Que Sonhava Com Uma Lata De Gasolina E Um Fósforo" e "A Rainha no Palácio das Correntes de Ar", centram-se em crimes económicos e de sangue, antecipando, surpreendentemente, o que se viria a passar, recentemente, com célebre caso Madoff.
O estilo é de thriller, policial, mas vai muito além disso, descreve-nos até quase ao tempo real, todo o mistério de uma sociedade corrupta, quer mergulhando nos segredos de uma família poderosa da alta finança, Os Vangler, quer das instituições em que, incautos, confiamos.
A hacker Lisbet Salander e o jornalista Mikael Blomvist são os heróis da sua narrativa. O mundo da informática é desvendado de um modo minucioso, fazendo-nos pensar que é quase impossível, actualmente, preservar a privacidade.
Uma boa leitura de férias. Atenção, é viciante e pode ser pandémico.

Hiroshima


Alfred Eisenstaedt

6 de Agosto de 1945 08,45h.
Neste dia, a esta hora, o avião B29 "Enola Gay", pilotado por Paul Warfield Tibbets Jr., lançou a primeira bomba atómica sobre um alvo humano.
Em menos de um segundo os prédios desapareceram juntamente com a vegetação, transformando Hiroshima num campo deserto. Num raio de 2 km, a partir do centro da explosão, desapareceu tudo. Uma onda de calor imenso, emitia raios térmicos, com a radiação ultravioleta. Para fora do raio de 2 km o calor fez desaparecer a roupa e a pele de quase todas as vítimas. Inúmeros incêndios foram, depois, causados pelo calor da explosão. Vidros e metal derreteram como lava.
Uma chuva preta, oleosa e pesada, caiu ao longo do dia. Essa chuva continha grande quantidade de poeira radioactiva, contaminando áreas mais distantes do centro. Peixes morreram em lagos e rios.
Até hoje são sentidos pelas vítimas e seus descendentes os efeitos deste crime. Um crime contra a Humanidade.

05 agosto 2009

Fariseias


Gostam de ser cumprimentadas
nas praças
e de ter o primeiro lugar
à mesa dos banquetes
são calculistas
formigas carreiristas
cheias de sucesso
e tudo usam e tudo gastam
indistintamente
porque são altas as suas entropias
e depois não sabem dar
os bons-dias às mulheres-a-dias

Adília Lopes, in Caras Baratas, Relógio D'Água, 2004
Foto: Julia Fullerton-Batten

Adília Lopes (n.1960) é poeta, cronista e tradutora. O quotidiano, principalmente o universo feminino, os velhos, os diferentes e a "anormalidade" são temáticas recorrentes na sua obra. Fá-lo duma forma original, mesmo muito pouco comum: «há sempre uma grande carga de violência, de dor, de seriedade e de santidade naquilo que escrevo» (A.L.)

04 agosto 2009

Poesia


"Muitos de nós, os nascidos na segunda metade do século, durante o regime político salazarista, com o seu ensino quadriculado e a papel cavalinho. Muitos de nós que tivemos de vir estudar para as grandes cidades e para chegar à cidade demorava um dia. E um dia era muito, lento e triste. Muitos de nós, "os vencidos do catolicismo", fomos obrigados a crescer culturalmente por conta própria. E também a poesia, por enigmáticos tropismos afectivos, tivemos de descobrir à nossa custa. E foi ela que nos ajudou a crescer e a dar estofo aos bancos de pau dos velhos combóios fumarentos. Muitas vezes, em demoradas viagens, atravessámos o país com as palavras dos seus poetas. As vinhas do Douro, a cerâmica de Valadares, a fumarada de Campanhã, os arrozais do Mondego. E milheirais. E as hortas. As montanhas ao longe. O mar. E dentro dos combóios, passageiros de chapéu escuro a olhar o que líamos e para os nossos sonhos. Vivíamos a profunda nostalgia de um país agridoce. Que não era pátria, como escrevia Ruy Belo. Enevoado e temeroso, de que a poesia nos ia revelando intensos sintomas. A doença do nervo, ou ciática. A chuva lacrimal. O sótão mal iluminado. "As casas, as casas, as casas." E por que referir tudo isto a propósito de Ruy Belo? Justamente porque aquele pequeno livro azul dos cadernos de Poesia, com o título Homem de Palavra(s) caiu em cheio na nossa adolescência inquieta e deslocada. Tenho-o ainda lido e relido e amarelado pelo tempo. Ele colava-se à nossa branda irrequietude e nós ficávamos por dentro dele, sei lá, como um guarda chuva molhado. Aderíamos instantaneamente àqueles versos desconfortados".
Manuel Hermínio Monteiro, Jornal das Letras, 7 de Outubro de 1998

Manuel Hermínio Monteiro nasceu em 1952 em Trás os Montes e faleceu em 2001, aos 49 anos. Foi um intelectual destacado e teve como actividade principal a direcção da Editora Assírio e Alvim, onde divulgou alguns dos maiores nomes da poesia portuguesa.
O belíssimo texto de que reproduzimos um extracto, tem por título Esquecimento e é dedicado ao poeta Ruy Belo, falecido precocemente em Agosto de 1978, aos 45 anos.

03 agosto 2009

Ver, Olhar e Sentir com Evgen Bavcar



É um artista de fotografia e é cego. Chama-se Evgen Bavcar .
Nasceu em 1946 na Eslovénia e deixou de ver aos 12 anos, depois de dois acidentes sucessivos.
Bavcar estudou História e Filosofia na Universidade de Ljubljana e Filosofia na Sorbonne.
Em Paris, iniciou uma carreira académica e intensificou a sua actividade fotográfica. Em 1988 foi nomeado Fotógrafo Oficial do Mês da Cidade Luz e a partir daí o seu trabalho tem tido grande divulgação, sobretudo na Europa.
O trabalho de Bavcar relaciona a visão, a cegueira e a invisibilidade: O meu objectivo é juntar o visível e o invisível, fotografar permite-me subverter a estabelecida divisão entre os que vêem e os que não vêem.
A imagem não é algo necessariamente visual: quando um cego diz que imagina, significa com isso que tem uma representação interna de realidades externas, que o seu corpo faz a mediação entre ele e o mundo.
Bavcar usa por vezes óculos que têm, no lugar das lentes, pequenos espelhos para que quem fale com ele possa ver o seu próprio reflexo e não se perturbe por falar com um cego...

02 agosto 2009

Cantigas do Maio em Agosto



















Zeca Afonso poeta, cantor andarilho e cidadão, faria hoje 80 anos. Para uma geração que se habituou a ouvi-lo como o porta-voz da esperança, a sua ausência é ainda mais significativa. A sua voz, embora seja agora uma voz de saudade, traz sempre, à mistura, "qualquer coisa de verdade". Ainda. E é isto também o que faz a eternidade de qualquer ser.
Sobre o Zeca, ler actualidades aqui, mas também aqui e aqui. Para haver memória.