Durante muito tempo pensei que não sabia o que era a solidão e, como todas as pessoas que não sabem o que é, acabei por escrever sobre ela, como é evidente.
Acho que um dia aprendi o que era
Eu moro num bairro pobre, um bocadinho de uma aldeia dentro de Lisboa, com merceariazinhas, padariazinhas, cafezinhos, pessoas pobres, a maior parte delas velhas, pequenos comércios, pequenos marginais, inclusive pequenos travestis e costumo comer nos restaurantes pequeninos que há ali à volta.
A um desses restaurantes vai jantar às vezes uma Senhora, uma actriz de teatro, que eu não conhecia, uma actriz do tempo do António Silva, do Vasco Santana, da Beatriz Costa, que mora na Estefânia e vai a pé, à hora do jantar, já com certa dificuldade em andar, e senta-se muito coquete, sempre muito bem vestida, com colares, anéis, o penteado armado com laca e come com gestos preciosos, cirúrgicos, cheia de mindinhos – há pessoas em que todos os dedos são mindinhos, têm uma delicadeza aérea de mindinhos – e então as mãos dela mexem nos talheres como se estivessem dançando com eles.
Eu perguntei ao dono do restaurante – que é assim um Senhor que foi louro e de olhos azuis, conserva os olhos azuis, mas perdeu o louro, que se chama Arménio e que poderia ter competido com o Vergílio Teixeira nos filmes portugueses dessa época e que é extraordinariamente bem-educado, extraordinariamente delicado – perguntei”Quem é?” e ele disse-me “é fulana tal, que era uma grande actriz e continua a vir aqui jantar. Sabe, ela continua a deitar-se às duas da manhã porque continua ainda no tempo da sua glória teatral, em que os artistas na época se deitavam tarde e então fica a fazer não sei o quê e só vai para a cama a essa hora, mantém o mesmo horário dos seus tempos de glória”. E estava ali a comer, sozinha. Dois ou três dias depois, entrei no restaurante, ela estava lá e, não sei, foi um daqueles impulsos que todos nós temos às vezes, fui ter com a Senhora e disse-lhe “dá-me licença que lhe beije a mão?” Ela estendeu-me a mão, imperial, de princesa, que cheirava bem ainda por cima, e que eu beijei e depois pedi licença para me sentar e ficámos a falar e a certa altura disse “ a Senhora tem um sorriso tão bonito. Importa-se de me fazer um sorriso?” E ela, toda arranjada, olhou para baixo e eu reparei que estava a tirar da carteira o espelhinho para ver se estava bem pintada e então tirou um tubo e concertou o bâton até fazer uma boca perfeita, em forma de copa de carta de jogar, só então é que levantou os olhos para mim, olhou para mim e sorriu. Eu tinha a impressão que aquele sorriso estava dentro de uma lágrima e fiquei com a certeza de que não há nada mais bonito do que um sorriso dentro de uma lágrima.
Foi, até hoje, o sorriso mais bonito que me deram, o mais bonito que eu vi.
E enquanto ela sorria, era tão engraçado porque de repente era uma rapariga nova, de repente tinha dezasseis, dezassete, dezoito anos, as rugas desapareceram, o cabelo pintado passou a ser natural, os gestos dela ficaram fáceis, os olhos eram uns olhos de uma menina coquete, numa espécie de flirt, num jogo de sedução. E depois, quando o sorriso acabou, a menina desapareceu, os dezasseis anos desvaneceram-se, apareceram rugas, voltou a ficar corcovada na mesa e voltou a estar diante de mim uma actriz já muito idosa que fica acordada até às duas da manhã, a lembrar-se, diante da televisão apagada, dos seus tempos de glória.
António Lobo Antunes, in Viver mais, viver melhor, Fórum Gulbenkian Saúde
Acho que um dia aprendi o que era
Eu moro num bairro pobre, um bocadinho de uma aldeia dentro de Lisboa, com merceariazinhas, padariazinhas, cafezinhos, pessoas pobres, a maior parte delas velhas, pequenos comércios, pequenos marginais, inclusive pequenos travestis e costumo comer nos restaurantes pequeninos que há ali à volta.
A um desses restaurantes vai jantar às vezes uma Senhora, uma actriz de teatro, que eu não conhecia, uma actriz do tempo do António Silva, do Vasco Santana, da Beatriz Costa, que mora na Estefânia e vai a pé, à hora do jantar, já com certa dificuldade em andar, e senta-se muito coquete, sempre muito bem vestida, com colares, anéis, o penteado armado com laca e come com gestos preciosos, cirúrgicos, cheia de mindinhos – há pessoas em que todos os dedos são mindinhos, têm uma delicadeza aérea de mindinhos – e então as mãos dela mexem nos talheres como se estivessem dançando com eles.
Eu perguntei ao dono do restaurante – que é assim um Senhor que foi louro e de olhos azuis, conserva os olhos azuis, mas perdeu o louro, que se chama Arménio e que poderia ter competido com o Vergílio Teixeira nos filmes portugueses dessa época e que é extraordinariamente bem-educado, extraordinariamente delicado – perguntei”Quem é?” e ele disse-me “é fulana tal, que era uma grande actriz e continua a vir aqui jantar. Sabe, ela continua a deitar-se às duas da manhã porque continua ainda no tempo da sua glória teatral, em que os artistas na época se deitavam tarde e então fica a fazer não sei o quê e só vai para a cama a essa hora, mantém o mesmo horário dos seus tempos de glória”. E estava ali a comer, sozinha. Dois ou três dias depois, entrei no restaurante, ela estava lá e, não sei, foi um daqueles impulsos que todos nós temos às vezes, fui ter com a Senhora e disse-lhe “dá-me licença que lhe beije a mão?” Ela estendeu-me a mão, imperial, de princesa, que cheirava bem ainda por cima, e que eu beijei e depois pedi licença para me sentar e ficámos a falar e a certa altura disse “ a Senhora tem um sorriso tão bonito. Importa-se de me fazer um sorriso?” E ela, toda arranjada, olhou para baixo e eu reparei que estava a tirar da carteira o espelhinho para ver se estava bem pintada e então tirou um tubo e concertou o bâton até fazer uma boca perfeita, em forma de copa de carta de jogar, só então é que levantou os olhos para mim, olhou para mim e sorriu. Eu tinha a impressão que aquele sorriso estava dentro de uma lágrima e fiquei com a certeza de que não há nada mais bonito do que um sorriso dentro de uma lágrima.
Foi, até hoje, o sorriso mais bonito que me deram, o mais bonito que eu vi.
E enquanto ela sorria, era tão engraçado porque de repente era uma rapariga nova, de repente tinha dezasseis, dezassete, dezoito anos, as rugas desapareceram, o cabelo pintado passou a ser natural, os gestos dela ficaram fáceis, os olhos eram uns olhos de uma menina coquete, numa espécie de flirt, num jogo de sedução. E depois, quando o sorriso acabou, a menina desapareceu, os dezasseis anos desvaneceram-se, apareceram rugas, voltou a ficar corcovada na mesa e voltou a estar diante de mim uma actriz já muito idosa que fica acordada até às duas da manhã, a lembrar-se, diante da televisão apagada, dos seus tempos de glória.
António Lobo Antunes, in Viver mais, viver melhor, Fórum Gulbenkian Saúde
Foto: Diane Arbus
8 comentários:
Lindíssimo,íssimo,íssimo, como diz a Marta.
Este é o melhor registo de Lobo Antunes, quando não está com a preocupação de fazer a grande literatura, é então que ela acontece.
Digo eu, mas há quem não diga.
Olá, Paulo :)
Adorei reler esta pequena história tão cheio de humanidade e de intensa sensibilidade do António Lobo Antunes. Por sinal, é também este registo aquele que mais aprecio do escritor.
A foto da Diane Arbus é qualquer coisa! Genial.
Destaco também a leitura sugerida, ali na barra lateral, de Alain Badiou, "Éloge de l'amour". Por coincidência, tenho andado a ler alguns excertos que encontrei online. Mas quero ler o livro. Com base nessa mesma obra, há alguns vídeos no Youtube de palestras e leituras do filósofo, mas as gravações são um pouco deficientes.
Muito obrigada e um abraço :)
É, também, por posts destes, que eu acho óptimo que se façam blogues!!!
A.L.A. no seu melhor - no seu lado menos teatral, menos "poseur", penso. Gosto quando a literatura me aproxima dos seres de que ninguém fala. São o outro lado da nossa História, porventura o mais interessante.
Obrigada, Paulo.
Soberbo
Lobo Antunes despido
no seu melhor
Agradeço a memória
Clara, o curios é que este texto foi uma comunicação (de A.L.A.) numa reunião sobre envelhecimento e abandono.
Ana Paula, concordo consigo sobre a força da crónica ou do conto em Lobo Antunes. Obrigado pelas dicas sobre o Badiou.
C.,devoro as crónicas de A.L.A. e,sobretudo depois de As Naus, não passo da pág 20 nos romances. Já desisti. Bj
Mar Arável, nós no Marcas é que agradecemos a visita e o comentário.
Abraço
Não sou um leitor assíduo de Lobo Antunes, sobretudo dae crónicas, de tal modo que não adivinhei a autoria , e fui lendo com gosto parágrafo a parágrafo até ao fim . Gostei muito e juro que conheço a actriz ...
abraço
________ JRMARTO
Uma doçura. Uma ternura.
Belo post.
é por estas e por outras que este blog é um lugar onde me encontro... e juro, juro, sem lamechices,
faz-me falta quando tenho de me ausentar.
íssimo, íssimo. tanto, tudo. Clara :)
Enviar um comentário