04 agosto 2009

Poesia


"Muitos de nós, os nascidos na segunda metade do século, durante o regime político salazarista, com o seu ensino quadriculado e a papel cavalinho. Muitos de nós que tivemos de vir estudar para as grandes cidades e para chegar à cidade demorava um dia. E um dia era muito, lento e triste. Muitos de nós, "os vencidos do catolicismo", fomos obrigados a crescer culturalmente por conta própria. E também a poesia, por enigmáticos tropismos afectivos, tivemos de descobrir à nossa custa. E foi ela que nos ajudou a crescer e a dar estofo aos bancos de pau dos velhos combóios fumarentos. Muitas vezes, em demoradas viagens, atravessámos o país com as palavras dos seus poetas. As vinhas do Douro, a cerâmica de Valadares, a fumarada de Campanhã, os arrozais do Mondego. E milheirais. E as hortas. As montanhas ao longe. O mar. E dentro dos combóios, passageiros de chapéu escuro a olhar o que líamos e para os nossos sonhos. Vivíamos a profunda nostalgia de um país agridoce. Que não era pátria, como escrevia Ruy Belo. Enevoado e temeroso, de que a poesia nos ia revelando intensos sintomas. A doença do nervo, ou ciática. A chuva lacrimal. O sótão mal iluminado. "As casas, as casas, as casas." E por que referir tudo isto a propósito de Ruy Belo? Justamente porque aquele pequeno livro azul dos cadernos de Poesia, com o título Homem de Palavra(s) caiu em cheio na nossa adolescência inquieta e deslocada. Tenho-o ainda lido e relido e amarelado pelo tempo. Ele colava-se à nossa branda irrequietude e nós ficávamos por dentro dele, sei lá, como um guarda chuva molhado. Aderíamos instantaneamente àqueles versos desconfortados".
Manuel Hermínio Monteiro, Jornal das Letras, 7 de Outubro de 1998

Manuel Hermínio Monteiro nasceu em 1952 em Trás os Montes e faleceu em 2001, aos 49 anos. Foi um intelectual destacado e teve como actividade principal a direcção da Editora Assírio e Alvim, onde divulgou alguns dos maiores nomes da poesia portuguesa.
O belíssimo texto de que reproduzimos um extracto, tem por título Esquecimento e é dedicado ao poeta Ruy Belo, falecido precocemente em Agosto de 1978, aos 45 anos.

7 comentários:

Marta disse...

sem aspas. gostei de ler. muito.

A disse...

Belíssimo! Tenho "este" Ruy Belo algures e o texto de M.H.Monteiro encheu-me de vontade de o reler...
Quanto ao post, só posso dar-lhe os parabéns pela qualidade a que, de resto, já nos habituou.

Paulo disse...

Marta, gostei que gostasse... muito.
Austeriana, o que acho de mais notável no texto é a forma notável como nele é feita a fotografia de um tempo e uma geração que aprendeu a poesia à sua custa ("por enigmáticos tropismos afectivos"). E isso passou, naturalmente por ler e reler Ruy Belo.

Bruce disse...

Retrato de uma época, onde era tudo mais vagaroso e quiçá mais verdadeiro...

Gostei de ler e de conhecer a bela poesia de Ruy Belo.

PAS[Ç]SOS disse...

Marcas de uma época em que o tempo parecia, ainda, não fugir.

Paulo disse...

Bruce, Pas(ç)sos, obrigado pela vossa presença. Concordo convosco na lentidão do tempo (comparando, parece que os verões há 40 anos eram intermináveis...), mas era também, por vezes, um vagar opressivo, sufucante,que parecia não ter fim. Abraço.

Paulo disse...

sufocante, não sufucante... :) :)