24 junho 2009

Espelhos (II)

(...Tentava não pensar neste vizinho, mas a curiosidade era superior à sua vontade… “Maria do Carmo, Maria do Carmo, não tens já problemas que cheguem?” dizia baixinho, enquanto preparava o barco para sair ao moliço… “”só queria dizer bom dia” desculpava-se, “só um cumprimento”)
...Os latidos do cão mexiam-lhe com os nervos desde que ali chegara e Jorge levantou a questão no primeiro encontro que tivera com o responsável pela instalação.
Os amigos garantiram que não há risco desse lado - respondeu Amílcar com a secura que lhe era habitual quando questionado sobre questões que punham em causa, ainda que vagamente, as suas decisões. A segurança de Jorge Serpa depois da saída da prisão, enquanto era preparada a sua ida para o exterior, fora uma indicação “vinda de cima”, pelo que dúvidas sobre aspectos funcionais do plano era admitir a possibilidade de um erro.
Nos poucos momentos de contacto que tiveram, foi fácil a Jorge conhecer-lhe alguns tiques. A primeira impressão fora logo perturbada por dois aspectos, para si essenciais: o aperto de mão - o de Amílcar era mole e sem energia, apenas pousava a mão na mão de quem cumprimentava, sem o olhar nos olhos. Depois, o cabelo: Amílcar tinha o crânio coberto com uma espécie de peruca tipo ninho de pássaro, mas que numa observação mais atenta mostrava uma rebuscada forma de pentear comum a alguns calvos, trazendo o cabelo da têmpora esquerda até ao lado direito, cobrindo toda a cabeça. Ficava com um ar ridiculamente cómico que impedia Jorge de perceber o que ouvia, absorvido que ficava naquela enigmática obra de engenharia. Usava um tom de voz baixo, com as vogais ciciadas, o que indicava uma origem Beirã. Quando queria sublinhar alguma afirmação procurava a atenção do interlocutor lançando um olhar aguado por cima dos óculos de massa pretos.
Fica tranquilo, Serpa, disse-lhe de novo; segundo o Amigo, a moça vive só, confinada a este espaço, donde raramente sai. Foi expulsa da Vila desde que enganou o marido. Um escândalo no Natal passado, o homem a chegar de Angola ao fim de 4 anos de tropa e uma antiga namorada foi-lhe contar da aventura da mulher com o irmão mais novo dele. Tinham casado no Verão, por procuração . Como vês, é seguro, ninguém lhe fala, excepto o nosso contacto.
Estavam sentados na cozinha, a porta entreaberta deixando entrar a brisa do início da noite e, terminada a reunião habitual, Amílcar achara melhor voltar a este assunto para tranquilidade do companheiro.
Por várias razões, as questões envolvendo relações amorosas eram agora, para Jorge, temas onde estava pouco à vontade.
O tempo passado na prisão tornara-o inseguro em tudo o que se relacionasse com assuntos sentimentais. Tinha vivido dois anos sem qualquer espaço de intimidade. Uma restrição total de sentimentos, a obrigatoriedade de partilhar um espaço fechado com três homens que desconhecia e não escolhera para companhia. Odiava a sala / camarata, estar aí fora mais doloroso do que a própria perda de liberdade.
E havia a Fátima. No momento da prisão planeavam viver juntos. Depois, até ao julgamento, sentiu sempre a sua proximidade. Mais tarde, começara a dar aulas e não tinha dias para as deslocações. Nos últimos seis meses apenas tinha vindo vê-lo três vezes e sempre em visitas com mais gente, o que impedia a proximidade.
Depois falamos, Jorge. Quando saíres e tudo estiver mais calmo falamos.
Afinal, tinha a aguardá-lo cá fora não a Fátima, mas uma carta da Fátima entregue pela irmã dela a sua mãe. Na carta, que nem era longa, dizia ter concluído que não tinha estofo para o acompanhar.
Encenara vezes sem conta o que fariam no momento do reencontro. Alimentara a saudade e o frémito do desejo com o sonho dos braços dela e o que tinha a esperá-lo, além da carta, era uma reunião de família com frango frio e espumante para celebrar a sua chegada....

Fotografia Pedro G. Prata

6 comentários:

clara disse...

Muito bem, Paulo, agora tens que continuar, porque eu sou uma leitora compulsiva e quero ler até ao fim.
Estou a gostar!

C. disse...

Ah, esse fôlego para efabulação! Bora lá, agarrar esse ritmo.
Agora tens-nos aqui, pelo beicinho, à espera... à espera.
Parabéns! E não digo mais.

Jinhos

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

tive de ler desde o início, e de um fõlego fui de um lado a outro, atento no detalhe , » le détail, c ´est le bon dieu» como disse Flaubert a proposito de escrever... e andei de um lado para outro , detendo-me no frango frio e no champanhe, ou nos adequados nomes de Serpa ou Amilcar, mas não só...
Um prazer de ler-te!
______ JRMarto
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PAS[Ç]SOS disse...

A curiosidade abraçou-se à intriga e há um certo desassossego que nos obriga a engolir em seco... que rumos a ‘ordeira’ efabulação primeira acabou por tomar deixando-nos a mão aberta para adivinhar maiores surpresas vindouras.

Anónimo disse...

O aperto de mão pode dizer muito acerca da pessoa, e da sua relação com o mundo ...com os outros...
Uma escrita emocionante que se lê com prazer,antecipando com inquietude o próximo capitulo
estou a gostar muito ...
fico a aguardarmais...
CM

Paulo disse...

Clara, é de leitores (compulsivos ou não) que vivem os textos... C., obrigado pelo estímulo; sabes como isso tem sido a essência "da coisa".
Vaandando e Pas(ç)sos, as vossas opiniões contam muito; caramba, dois dos "meus" bloggers a lerem-me :):). Obrigado.
CM, muito, muito obrigado pela constância e pela sensibilidade.