23 setembro 2009

Entre nós e as palavras há metal fundente

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Ruhrpottlady - Light Spot

Não, não me devias ter mentido acerca do mundo – (e eu, que só queria acreditar em tudo o que dizias.)
Devias ter-me ensinado a inclinação perfeita do gume, ter-me treinado no golpe contido e certeiro nas asas das vespas (os brinquedos eram de madeira, seriam perfeitos).
Devias ter insistido comigo no ajuste das receitas: metade mel, metade cicuta. Aprenderia a arder um fósforo na falange, sem gemidos, sem vacilação das pálpebras, sem paixão.
Em vez da lógica de todas as demências, em vez da geografia dos êxitos, em vez da fuga aprazada, ensinaste-me a dormir sobre a consolção da alma, esse interstício insaciavelmente obscuro.
Devias ter-me dito a verdade acerca do choro dos homens e do riso das bestas. Sempre achei incrível como os cães podiam sorrir às ameaças dos donos. Nunca acreditaste que isso era possível. E ensinaste-me que nunca se jura sobre o que não se sabe. Mas juravas pelos anjos e arcanjos das pagelas e santinhos que havia uma bondade natural no coração dos homens.

Não, não me devias ter mentido sobre o mundo. Eu teria aprendido a desconfiar da minha própria condição de humano e não seria incauto viajante ou obstinado pescador de estrelas. Devias ter-me dito a verdade: que ninguém escapa, ninguém escapa à sedução da posse da palavra soberana. Que ninguém avisa da vilania e que ninguém... ninguém tem o coração puro.
Devias ter-me dito: a alma é um intestino que se enche - nuns dias frango gourmet noutros paté e vinho maduro; e o mais é trabalho de fotógrafo em dias de feira. Devias ter-me dito, eu ia perceber tudo. Eu tinha os olhos sempre acesos noite dentro, como se ela trouxesse a verdade insofismável da brancura.

O que me devias ter ensinado – hoje sei – é do silêncio dos livros e do labor das rosas.

E eu apenas venho aprendendo a morrer esse amor.

Título: transcrição do primeiro verso do poema You are welcome to Elsinore, de Mário Cesariny
* Nick Cave & Warren Ellis - The Road, do álbum White Lunar, 2009

4 comentários:

PAS[Ç]SOS disse...

O daqui a pouco é sempre o desconhecido. Muito mais o é o amanhã. Mas é nossa a necessidade de acreditar que para lá da fronteira do agora haverá uma paisagem que desenhamos, uma melodia que compomos, um poema que escrevemos, como se fossemos o génio que o mundo nunca teve. E iludimo-nos ao crer podermos encontrar quem nos garanta este sonho.
Não és tu que me mentes. Sou eu que vivo na cegueira de te encontrar mais perfeito do que és… na ingenuidade de acreditar na pureza… de ler nas palavras aquilo que desejo e não o que elas realmente dizem.

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

è EXCELENTE, esta prosa , chega a doer no nosso rosto , frase a frase , imagem a imagem ...
Abraço Amigo, C.

Ps, espero mais , assim ...

Marta disse...

este "entre nós e as palavras"... doi-me num coração que já não tenho.

e a prosa, esta belíssima prosa, tem parágrafos que são o meu número.

sei lá, C. sei lá. tanto. tudo. íssimo.

mais, por favor.

destes. fabulásticos.

beijinhos

Bruce disse...

Junto os comentários anteriores e sublinho...