16 julho 2009

Foram Muito Felizes


O professor falava, a bata branca um pouco curta por cima do fato cinzento, sempre cinzento.Os professores e os fatos cinzentos...só que este tinha colorido na alma e, por baixo das lentes grossas, um olhar inesperadamente terno e sincero. Também a fixação dos inteligentes. Quantos anos teria? Não sabíamos, mas era novo, apesar dos prováveis trinta, o que seria, para nós, em situação normal, sinal evidente de um ser caduco e a abater. Este era novo.

Era O Professor.
Imediatamente eleito, aceite, introduzido nas tertúlias, convidado para as festas de anos.
Havia sempre, mas sempre, um pequeno grupo que o levava a casa, ao fim da tarde. Aconteceram paixões secretas que ele recusava, sistematicamente. Não era feliz, contudo. Uma esposa que vinha, ao fim de semana, que era estranha, que dormia com um gorro na cabeça!
Sempre pareceu a Tê que isto do gorro era peta, como é que sabiam que a mulher dormia assim enchapelada?
De qualquer forma, todos achávamos que um homem como ele não merecia dormir com alguém-de-gorro-na-cabeça. E esse facto redobrava a nossa afeição,tentávamos tudo para o compensar de tão cruel destino.
O nosso professor não nos poupava a esforços, contudo. Nas aulas , fazia-nos trabalhar muito e havia um acordo secreto, mas não explícito, de que ninguém quebraria essa regra. Tê quebrava-a, mas só exteriormente. Enquanto falava de Platão e de Sócrates, de Camus, de Sartre, muito de Sartre, olhava os seus gestos suaves, seguia o seu olhar adivinhador que percorria ,um a um, os cadernos, as cabeças, as carteiras, ou então vagamente a janela, a cabeça levantada, quando mais atento. Elegante, e esse cheiro a lavanda fresca, quando passava. O perfume ficava até à aula seguinte. Como é que os perfumes podem ter efeitos tão diferentes, conforme as pessoas que os usam? O Cenoura. O Cenoura, por exemplo, quando entrava na explicação, era um desgosto. Vinha todo cheiroso, despejava os frascos de after-shave do pai pela cabeça abaixo. Toda a gente ficava enjoada. E depois, usava aqueles lenços de seda ao pescoço, por dentro do colarinho aberto - de tão charmoso que se punha, acabava por ser rejeitado. Pobre Cenoura, não se pode ser diferente.

Julieta Bota. Via-a passar já com filhos. Dezassete anos, dois filhos. Um corpo ainda bonito, mas já amolecido pelos trabalhos. O olhar, sempre aquele, fixo. Que o olhar dos ciganos é muito diferente, um misto de raiva e ternura, é selvagem e antigo. Vem do fim dos tempos, traz a memória dos povos por onde deambularam. Nunca submisso. Tê andara com ela na escola. Ainda por cima, os Bota moravam na rua de trás.
Tê, às vezes, vinha com Julieta, entrava no quintal pelo portão do fundo e brincavam, na sala do piano. Não se pode dizer que fosse a companhia mais edificante, mas Tê gostava dela, ou tinha curiosidade, sei lá...Julieta falava de coisas tão estranhas, dos casamentos, das lutas, dos enterros, das festas, das músicas, dos parentes, das histórias. Tê ouvia-a, cheia de cautelosa atenção. Cautelosa, porque sabia, mais cedo ou mais tarde, não resistiria, iria a casa de Julieta Bota conhecer esse fantástico e assustador mundo. Cautelosa, porque segredo, a mãe nunca deixaria, o pai talvez.

Numa dessas tardes, Tê resolveu dar-lhe uma prenda, um servicinho-miniatura de louça Vista-Alegre pintado à mão, uma relíquia da casa, coisa finíssima e ancestral. Julieta, incrédula e muda, levou-o, contentíssima e sorrateira.
Ninguém deu pela falta e os dias foram correndo, como correm os dias. (continua)

6 comentários:

Paulo disse...

Excelente, Clara. Estou preso na narrativa... à espera!

clara disse...

Queres saber o que acontece à Julieta Bota?
Vais ter que esperar pelo próximo capítulo..Eh,Eh...

PAS[Ç]SOS disse...

Interessante a sucessão de fotos sugeridas, com aromas de sentimentos perfumando uma história em que ficamos sem saber onde mora a realidade ou por onde a ficção a penetrou.

A disse...

Quem é o/a autor(a)? Queria adquirir a obra... em pulgas para ler o resto!

C. disse...

Clara, não nos faças esperar muito pelos próximos capítulos, hein?!
Era este o tal livro que havia de sair ainda este ano?
:-)

Beijinho grande

clara disse...

Era, era para ser um romance, mas perdi as folhas.
A sério!