17 julho 2009

O Homem sem Qualidades


...Entrou na pequena sala onde estava o caixão com o morto. Aquela cela severa, de paredes direitas, no meio da azáfama agitada que suscitava, era qualquer coisa de estranhamente inquietante. O morto, hirto como um pau, flutuava entre as ondas dessa azáfama, mas durante alguns instantes a imagem invertia-se, agora era o vivo que parecia hirto, e o morto deslizava num movimento incrivelmente calmo. "Que importam ao viajante", disse de si para si, "as cidades que vão ficando para trás nos lugares onde aporta? Eu vivi aqui, comportei-me como me era pedido, mas agora a viagem continua!..."A insegrança do homem que vive no meio dos outros mas busca algo diferente deles oprimia o coração de Ulrich: olhou de frente o pai. Talvez tudo aquilo que ele via como singularidade pessoal não fosse mais do que uma contradição dependente desse rosto, que um dia assimilara infantilmente. Procurou um espelho, mas não havia nenhum na sala, e toda a luz era reflectida por aquele rosto cego. Tentou descobrir nele semelhanças. Talvez existissem. Talvez tudo estivesse aí, a raça, a dependência, a impessoalidade, a corrente da hereditariadade em que somos apenas uma ruga, a limitação, o desânimo, a eterna repetição e o círculo vicioso do espírito, que odiava do fundo da sua vontade de viver!
Subitamente tocado por esse desânimo, interrogou-se sobre se não devia fazer as malas e regressar antes mesmo do enterro. Se ainda tinha alguma coisa a fazer na vida, porquê ficar ali?...

Robert Musil, O Homem sem Qualidades (Tradução João Barrento, D.Quixote)
Fotografia:Annelise Kretschmer (Encontrada aqui).


Em O Homem sem Qualidades Robert Musil propõe-nos uma intensa viagem em torno das emoções, dos sentimentos e dos valores, numa sociedade em mudança. Neste excerto uma perturbante reflexão sobre o significado da morte do Pai e do sentido que a sua figura teve (tem) na nossa construção.

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