06 março 2009

Figurações do olhar

In memoriam -Vieira da Silva, falecida a 6 de Março de 1992. Teria agora cem anos. A música é de Sérgio Assad.

Maria Helena não tem a simpatia pronta, por isso as entrevistas que dá embatem contra uma superfície lisa, um espelho onde tremem reflexos, onde se procuram teoremas. O repórter tenta desdobrá-la como um pano cuidadosamente enrolado, e sucedem-se os espaços neutros e, de certa maneira, as evasivas. Ela não confia nesse intuito de divulgação, porque o espírito humano não se divulga. A paz e o sofrimento não se divulgam; são fluidos depois de usados, e, no momento em que se praticam, não têm rosto e, assim, não se podem descrever.

Todas as vezes em que procurei Maria Helena porque eu estivesse doente, ou desanimada (como foi o caso, em 1965, de eu pensar em deixar o País), aí deparei com a verdadeira presença que não se distrai, não vagueia, não ilude. Maria Helena reage às coisas concretas e essenciais com uma prontidão admirável.
É raro que as pessoas tenham esse respeito pelo essencial. Costumam escapar ao essencial e ocupar-se pormenorizadamente do acessório. E a vida parece nelas um tumulto de confabulações e artes, sem nada de resistente ou de culto. Aproximamo-nos da Maria Helena e ela pode olhar-nos como se fôssemos um objecto mais ou menos preciso mas que não atrai a curiosidade nem o afecto. Mas se tocamos esse registo do essencial, se houver em nós um risco, um alarme, ela actua e torna-se de repente incansável; algo mais do que amizade e incorrupção da aliança humana surge, como uma flor.


Agustina Bessa-Luís
Longos Dias Têm Cem Anos - Presença de Vieira da Silva, INCM, 1ª edição,1982

1 comentário:

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

... li e reli este livro da Agustina com grande prazer , alíás , Agustina é uma escritora com quem tenho sempre hora marcada com os seus livros ...
Lembro-me de que a escriba nortenha dizia que o século xx era um século azul e não vermelho, quando s referia à grande pintora.
Abraço

___________ JRMARTO