Um negócio obsceno
Os 38 apartamentos de luxo construídos no edifício que foi a sede da PIDE, em Lisboa ("um edifício com história" que, diz a imobiliária, se mostra "novamente orgulhoso da sua herança") estão a ser vendidos convidando os compradores a "reviver tempos de esplendor" e um passado de "luzes a reflectirem-se nas pratas do aparador e nas vestes de gala de cavaleiros e damas".
A suja história de sangue e horror do edifício e os gritos de dor de milhares de portugueses que as "velhas e nobres paredes com um metro de espessura" abafavam, são agora, pelo turvo milagre da usura, uma memória doirada, transbordante de festas e de bodas, e de duques, príncipes e embaixadores. Num país onde o dinheiro compra tudo, até a memória colectiva, os antigos torturadores tornaram-se "copeiros e gentis homens" ao serviço de ricaços e recém-chegados ansiosos por reconhecimento. Bem pode o poeta clamar que "com usura homem algum terá casa de boa pedra" e que "com usura, pecado contra a natureza,/ sempre teu pão será rançosa côdea"; os usurários não têm pesadelos nem temem fantasmas. O esquecimento é o seu "estilo de vida".
crónica de Manuel António Pina, no JN de hoje
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