31 maio 2009

Nós, "Europeus"

"...Sentada num murete, cá fora, Florinda Vaz, de 78 anos, olhava para o frenesim que a rodeava sem forças para ir à procura do marido e do "senhor presidente da junta que está lá dentro".
Ouviu o pároco da sua freguesia - "em Espinho, ali perto do Sameiro"- a anunciar um passeio para sábado e, quem quisesse, "bastava dar o nome na Junta".
"- É um comício?
- Isso não sei explicar".
Tão pouco tinha notícia de que José Sócrates lá ia.
"Viemos numa excursão e parámos no S. Bentinho da Porta Aberta. Agora estamos aqui, mas eu não aguento aquele calor..."
(Reportagem Público, no exterior do Pavilhão ABC,em Braga, onde decorria um comício do PS)

30 maio 2009

Ah...e tal


Escolha

Hoje à tarde sou professor.

Pastoreios

De Repente

e de repente
houve uma surpresa ao olhar a casa
a cal de linho o gesto brando
o passeio do pincel
uma aguarela milimétrica
gutural por dentro
inteira a voz devastando
apurando-se na surpresa
o espectro

depois a boca de palavras ásperas
remos do mundo pássaros caídos
fundos

estavas rente à solidão dos jogos

plainos altos de chamas

fogo perpétuo a qualquer esquina
não sobrava sol
não se ouvia um cão rasgando
a indivisível unidade do mundo
ou uma criança pedindo água
cansada de ouvir o silêncio
fonte escura


(José Marto)
Música: Anouar Brahem (Le pas du chat noir)

José Ribeiro Marto (http://vaandando.blogspot.com/)
lança o seu livro de Poesia"Pastoreio"sexta feira 20 de Junho às 19,30h
Palácio Galveias, Lisboa.

29 maio 2009

O Cativo

Em Junín ou em Tapalquén contam a história. Um miúdo desapareceu depois de um ataque de indios; disse-se que o tinham raptado. Os seus pais procuraram-no inutilmente; passados anos, um soldado que vinha de terra adentro falou-lhes de um indio de olhos celestes que bem podia ser o seu filho. Deram por fim com ele (a crónica perdeu as circunstâncias e não quero inventar o que não sei) e pensaram reconhecê-lo. O homem, trabalhado pelo deserto e pela vida bárbara, já não sabia ouvir as palavras da vida natal, mas deixou-se conduzir, indiferente e dócil, até casa. Aí se deteve, talvez porque os outros se detiveram. Olhou a porta, como se não a compreendesse. De repente, baixou a cabeça, gritou, atravessou correndo o saguão e os dois pátios largos e enfiou-se pela cozinha. Sem vacilar, mergulhou o braço no enegrecido sino e tirou o canivete de cabo de chifre que ali tinha escondido em criança. Os olhos brilharam-lhe de alegria e os pais choraram porque tinham encontrado o filho.
Talvez a esta recordação se tivessem seguido outras, mas o índio não podia viver entre paredes e um dia foi à procura do seu deserto.
Gostaria de saber o que terá sentido naquele instante de vertigem em que o passado e o presente se confundiram; gostaria de saber se o filho perdido renasceu e morreu naquele êxtase ou se conseguiu reconhecer, como uma criatura ou um cão, os pais e a casa.
Jorge Luis Borges

28 maio 2009

Momentos de um Percurso

" Não há na pintura de Lúcia Maia marcas de aleijões, distorções, caricatura, antes de uma busca incessante de harmonia, de beleza, numa palavra de Sonho. Mesmo quando tem uma pedra no meio do caminho, não há agressão, muito menos revolta. Há antes um contornar, que é compreensão. Uma ave, na amplidão do azul, de asas distendidas,deixa um rasto de solidão, mas, simultaneamente, uma mensagem de infinito. De liberdade. A casa da infância, no esfumado dos tons diluídos em água serena, diz afecto e diz mágoa. Mas mágoa escorrida,contida, que é emoção. Angústia ultrapassada, talvez.
E assim, as duas facetas a terrena, humana e a da evasão criadora se harmonizam na magia da comunicação.
Apetece pegar na velha frase metafórica e pô-la como legenda na obra de Lúcia Maia: tem raízes e tem asas como as árvores cobertas de ninhos".

(Cecília Sacramento -1993)

Começa hoje, em Coimbra - Edifício Chiado - onde vai ficar até 27 de Junho a exposição de Lúcia Maia, Momentos de Percurso.


Façamos, pois, os nossos percursos cruzarem-se com os de Lúcia.

Não Queriam Mais Nada?

Estou cansada de ouvir ralhar com o meu país
Assim não vale

Vocês também
Assim não brinco
Parece mal
Que coisa

o que é que querem
Um país a sério
Era o que faltava
não queriam mais nada
E depois onde é que eu passava férias
E onde é que eu ficava sem fazer nenhum
a ouvir as cigarras de verão
e a ver passar os dias
devagarinho
a ler o jornal de ontem
e a falar com a vizinha
Eu sei
o que vocês queriam
queriam mesmo é
que não fossemos de cá
e deixássemos tudo
arrumadinho
limpinho
chatinho

ai, ai, estou tão cansada
de ouvir ralhar com o meu país

( pintura de Costa Pinheiro)

27 maio 2009

Persona

Persona (1966) é um dos melhores filmes de todos os tempos, talvez a obra-prima de Bergman. Considerado uma das obras mais belas da história do cinema, seja pelos elementos literários muito intensamente presentes, seja pela emoção que o desempenho das actrizes provoca.
O filme conta a história de Alma (Bibi Andersson) a enfermeira incumbida da recuperação psíquica de Elisabet (Liv Ullmann), uma actriz que perdeu a voz durante a exibição do espectáculo Electra.
Afinal, o seu mutismo foi uma decisão, não fruto de qualquer doença.
Tudo gira em torno do ser e do parecer. O anseio de Elisabet é deixar de parecer e passar a ser. Para isso, encontra como solução o silêncio. Uma vez instalado o silêncio, não haverá mais falas nem gestos falsos que levam à construção da aparência e escondem a realidade.
Sobre este tema Clarice Lispector criou um tocante texto ("Persona") onde, "não querendo falar de Bergman", retoma o tema, desenvolve-o e produz uma extraordinária peça literária.
Aqui, num clip, com uma apresentação maravilhosa.

Nós, "Europeus"


"Mais recentemente, a partir dos anos 80 - a afectividade social de antigamente e o familiarismo sofreram golpes decisivos com a desestruturação da família e com um acontecimento único, talvez, na história de Portugal, o enriquecimento súbito, possível, para uma grande parte dos cidadãos, e a saída definitiva da situação geral de pobreza em que o país vivera durante séculos. Ainda que a pobreza continue a atingir, hoje, mais ou menos 2 milhões de portugueses.(...)
O corte operou-se com o cavaquismo, e com a torrente de dinheiro que choveu sobre Portugal vinda da Comunidade Europeia. "Enriquecei !", eis a palavra de ordem da política económica cavaquista, que ecoou aos ouvidos dos portugueses como uma libertação. (...).
A poupança (no Salazarismo) não se praticava apenas nas classes populares, abrangia quase sem excepção as classes médias. Que significava poupar? Restringir o desejo ao mínimo indispensável para criar um "pé-de-meia". O que impressiona, hoje, é a obsessão, a continuidade obstinada, a paixão quase, com que se poupava. (...). Umas calças podiam durar dez ou vinte anos mesmo, e os sapatos outros tantos; remendavam-se camisas, cerziam-se saias, guardavam-se os restos da véspera e da antevéspera para as refeições do dia seguinte. Aproveitavam-se as águas usadas da cozinha para as verter na sanita, economizando gastos da companhia. Economia familiar de medos e esperança, com os seus pequenos potlatchs nas celebrações cerimoniais, nascimentos, casamentos, festas do calendário religioso. Não é difícil imaginar as consequências de um tal regime de vida. Redução do espaço de expansão dos corpos, dos movimentos próprios de exploração, de investimento afectivo, de liberdade corporal, de espontaneidade do desejo. Controlo permanente, autodisciplina mutiladora da vontade de vida (e da vida da vontade). Além do desenvolvimento de um certo egoísmo social que limita a generosidade e a solidariedade, tão largas em geral nas sociedades de pobreza. Mas também, o desenvolvimento de um espírito cauteloso, prudente, desconfiado. (...)
À lógica da poupança seguiu-se, sem mediações, a lógica do consumismo e do desperdício. (...) O "enriquecei!" cavaquista provocou talvez a primeiras brechas profundas na experiência do espaço e do tempo do povo português desde há séculos. . (...) Curiosamente, o processo de transformação representa uma violência que irrompe de fora para dentro, repentinamente, artificialmente. A União Europeia já entrou em nós e modificou o nosso mapa geográfico, as nossas leis, a nossa economia, fez desaparecer muitos comportamentos ancestrais, perturbou a nossa afectividade social, deslocando-a, pervertendo-a, abolindo-a em muitos casos. (...) Às transformações económicas e tecnológicas que a Comunidade Europeia impõe ao nosso país, nós respondemos com uma resistência (sobretudo passiva) que se apoia em velhas estratégias de "inteligência de sobrevivência", que têm décadas, talvez séculos. Moldadas em estratos inconscientes, elas condicionam os principais reflexos de defesa, constituindo uma verdadeira barreira ao "desenvolvimento". Por isso o país não se desenvolveu realmente durante os anos de riqueza oferecida de bandeja. Não operámos nem revoluções radicais na educação (condição primeira do desenvolvimento), nem criámos planos de reorganização da economia, da administração, de reforma fiscal, de investigação científica ou da saúde. Perdemos - estamos a perder - uma oportunidade única. E o nosso frágil tecido económico esboroa-se dia após dia. Portugal arrisca-se a desaparecer."
José Gil, in Portugal, Hoje. O Medo de Existir, Relógio D'Água 2004

Era assim, lucidamente, analisado o país muito antes da "crise". Estava tudo previsto, só que não se esperava o desabar da economia mundial. Portanto, tudo pior (agora) do que aquilo que as piores análises sugeriam.

26 maio 2009

Feliz aniversário, Paulo!

E vamos lá então cantar todos à uma: um... dois... e ...


Buenas noches D.Diego!

Em 26 de maio de 1907, nasceu um dos cowboys mais populares dos filmes do farwest, o actor e realizador americano John Wayne, que teve seu primeiro grande trabalho com o filme No Tempo das Diligências, clássico de John Ford rodado em 1939. Chamaram-lhe o grande cowboy.
Para um “menino” que já sonhou com filmes onde os cowboys defendiam as cidades dos maus e saqueadores, aqui fica um mimo para lembrar esses tempos. Hoje ele é o sheriff. É ele que defende e "põe em marcha" esta nossa "pequena cidade de encantos". Merece a promoção.
Watch out ladies!
E venham todos dar os parabéns, em dia de aniversário.


Um dia bom

25 maio 2009

O fascínio da mente

"Os gémeos estavam sentados, juntos, a um canto, com um sorriso misterioso e secreto no rosto, um sorriso que nunca tinha visto. Gozavam um prazer e uma paz estranhos e inéditos neles. Aproximei-me com cuidado para não os perturbar. Pareciam estar isolados numa conversa singular, puramente numérica. John dizia um número de seis dígitos e Michael "apanhava-o", acenava, sorria e parecia saboreá-lo. Depois Michael"recebia-o" e apreciava-o profundamente. Pareciam, à primeira vista, apreciadores de vinho, partilhando sabores e aromas raros. Sentei-me, imóvel, sem que me vissem. Estava hipnotizado desconcertado. O que estariam a fazer? Não conseguia perceber. Talvez fosse uma espécie de jogo, mas tinha uma intensidade, uma gravidade, serenas e meditativas, quase sagradas, que nunca tinha visto em jogo nenhum e que, de certeza, nunca vira nos gémeos, normalmente tão agitados e distraídos. (...)
Logo que cheguei a casa, peguei nas tabelas de potências, factores, logaritmos e números primos (...). Já tinha um palpite e confirmei-o : todos os números de seis dígitos que os gémeos tinha trocado entre si eram números primos, isto é, números só divisíveis por eles próprios e por um. Regressei à enfermaria no dia seguinte, com o meu precioso livro de números primos. Voltei a encontrá-los, isolados na sua comunhão numérica, mas desta vez sem dizer nada, juntei-me calmamente a eles.(...) Afastaram-se ligeiramente para fazer espaço para mim, um novo companheiro de jogos numéricos, um terceiro no seu mundo. Então John, que tomava sempre a dianteira, pensou durante muito tempo - pelo menos cinco minutos durante os quais não me mexi e mal respirei - e disse um primeiro número de nove dígitos; depois de pensar outros cinco minutos, Michael respondeu. Eu, depois de uma olhadela sub-reptícia ao livro, acrescentei a minha contribuição, um número de dez dígitos.
O silêncio e a surpresa duraram ainda mais tempo e então, John, após uma prodigosa contemplação interna, disse um número de doze dígitos. Não tinha maneira de confirmar se o número era primo ou não, porque o meu livro - que tanto quanto sei é único no género - não ia além dos números de dez dígitos. Mas Michael não se atrapalhou, embora tenha demorado outros cinco minutos.
Uma hora depois, os gémeos trocavam números primos de vinte dígitos..."
Oliver Sacks, in O homem que confundiu a mulher com um chapéu, Relógio d'Água 2002

Uma notável obra de divulgação sobre algumas alterações da mente, geralmente rotuladas como anomalias e aqui apresentadas duma forma fascinante por quem as estuda e sente a intensa maravilha que a mente contém.

24 maio 2009

On s'amuse

Abou-Khalil criador de música onde faz a fusão do jazz, rock e da música clássica. Nesta composição com elementos de música portuguesa.

Memória

Elegia da Lembrança Impossível
O que não daria eu pela memória
De uma rua de terra com baixos taipais
E de um alto ginete enchendo a alba
(Com o poncho grande e coçado)
Num dos dias da planície,
Num dia sem data.
O que não daria eu pela memória
Da minha mãe a olhar a manhã
Na fazenda de Santa Irene,
Sem saber que o seu nome ia ser Borges.
O que não daria eu pela memória
De ter lutado em Cepeda
E de ter visto Estanislao del Campo
Saudando a primeira bala
Com a alegria da coragem.
O que não daria eu pela memória
Dos barcos de Hengisto,
Zarpando do areal da Dinamarca
Para devastar uma ilha
Que ainda não era a Inglaterra.
O que não daria eu pela memória
(Tive-a e já a perdi)
De uma tela de ouro de Turner,
Tão vasta como a música.
O que não daria eu pela memória
De ter sido um ouvinte daquele Sócrates
Que, na tarde da cicuta,
Examinou serenamente o problema
Da imortalidade,
Alternando os mitos e as razões
Enquanto a morte azul ia subindo
Dos seus pés já tão frios.
O que não daria eu pela memória
De que tu me dissesses que me amavas
E de não ter dormido até à aurora,
Dissoluto e feliz.

Jorge Luis Borges, in "A Moeda de Ferro"

O que fica

"Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vividas; o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, de que tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza o mel mitigava, podiam abarcar por inteiro a sua alma.
Conhecia o terror mas também a cólera e a coragem, e uma vez foi o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, casual, sem outra lei que a fruição e a indiferença imediata, percorreu a terra vária e olhou, numa e noutra margem do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou no sopé de uma montanha de cume incerto, em que bem podia haver sátiros, tinha escutado complicadas histórias, que recebeu como recebia a realidade, sem imaginar se eram verdadeiras ou falsas.
Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma teimosa nebelina confundiu-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estrelas, a terra era insegura sob os seus pés. Tudo se afastava e confundia. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor estóico não tinha sido inventado e Heitor podia fugir sem deslustre. Já não verei (percebeu) nem o céu cheio de pavor mitológico, nem esta cara que os anos transformarão. Dias e noites passaram sobre esse desespero da sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem assombro) as indistintas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que tudo isso já lhe tinha acontecido e que o havia encarado com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Então desceu à sua memória, que lhe pareceu interminável, e conseguiu tirar daquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moeda sob a chuva, talvez porque nunca a tivesse olhado, salvo, quem sabe, num sonho..."
Jorge Luis Borges, in O Fazedor, (Difel 2002)
Fotografia G. Crewdson

22 maio 2009

Escolhas

O brilho intelectual (britânico) não logra derrubar um filistinismo consolidado. Em Inglaterra - mas não tanto na Escócia -, a "inteligência", uma paixão intelectual demasiado manifesta, a aspiração de se vir a ser um "cérebro", bem como os valores professorais típicos tão difundidos em França, foram durante muito tempo objectos de desconfiança. São castigados tanto no mundo escolar como no corpo político. A palavra "intelectual" não está longe de constituir um termo que traduz reprovação ou desprezo. O título de "pensador" não tem curso fácil na língua. Os triunfos da literatura inglesa, da sua ciência desde Roger Bacon, dos momentos mais altos do seu discurso filosófico, não apagam esta rejeição enraizada. Uma sondagem recente, que pedia aos inquiridos que fizessem uma lista dos nomes que mais tivessem marcado a consciência nacional, atribuiu a Darwin o décimo lugar. Nos primeiros lugares do rol figuravam os homens de Estado e os desportistas. Hoje são as estrelas pop que dominam as listas de convidados do nº 10 de Downing Street. Mas o quadro está longe de ser exclusivamente negativo. Foi precisamente este filistinismo, esta repugnância por qualquer odium theologicum (...) foi de facto esta desconfiança perante o abstracto e o ideológico que facultou à história inglesa as suas marcas invejáveis de tolerância, imunidade irónica ao carisma intelectual. Dubitativo perante o brio da argumentação, perante os furores e os empenhamentos cerebrais - como o engagement francês -, o inglês preferiu um pragmatismo irónico, uma indiferença saudável. Nem o fascismo nem o marxismo leninismo conseguiram suscitar as emoções de mais de meia dúzia de espíritos. (...). Faz-se assim sentir a necessidade de uma anatomia aprofundada das relações existentes entre a educação inglesa e este anti - intelectualismo terapêutico. E talvez este último mereça um elogio bem ponderado .

George Steiner, Os livros que não escrevi, Gradiva 2008
Foto aqui

Lembrando

Hoje, 22 de Maio, decorre em Aveiro um colóquio sobre Mário Sacramento, na Escola de que é Patrono. Em simultâneo é posto à venda o Livro de Amizade - Lembrando Mário Sacramento.
É imprescindível que a sua vida e obra sejam conhecidas e divulgadas.

"Morei sucessivamente, na infância, junto às casas de ensaio dos novos e dos velhos filarmónicos locais. Foi isso que fez de mim um ensaísta? Apraz-me supô-lo. Gostava de vê-los a caminho do ensaio, ainda em fatos de trabalho, rumorosos e barbudos, sopesando os instrumentos envoltos em guardas de chita ou cotim. E ouvi-los, pela noite dentro, ensopar o silêncio em saliva e suor. Como eles sou e serei um ensaísta de retalho, que semeia a escuridão de clangores torturados e síncopes desabridas, alanceado por dispneias em falsete e, invariavelmente, impróprio para o consumo em coreto. Ensaio, como eles, nas horas de folga, manhãs de domingo e serões de semana. E como eles sofro o terror da batuta, gavião insaciável do melhor que o peito dá e o sopro leva. Aqui lhes deixo o meu solfejo. Aos novos e aos velhos. Homens de fé e surdina. De trenos e amavios. Matutos e salivares. Com sonho ensacado em chita
."

Mário Sacramento, in Ensaios de Domingo I

Trevas e Luz


Ken Follett, na sua obra "Um Mundo Sem Fim", romance histórico bem fundamentado, passado na Inglaterra medieval, descreve, de entre outros aspectos, o flagelo da peste.
Retiro este texto pelo inusitado, surpreendente. Passa-se a seguir à enorme devastação da doença:

"Fora um bom ano para a generalidade das pessoas, pensou Caris, enquanto assistia à missa do dia de Natal.As gentes da terra estavam a adaptar-se à catástrofe decorrente da peste com uma rapidez assombrosa. Para além de ter sido responsável por um sofrimento terrível e pela quase-paralização da vida civilizada, a epidemia trouxera consigo a oportunidade de uma reviravolta. Segundo os seus cálculos, quase metade da população perecera; um dos efeitos, porém, era que os camponeses que tinham sobrevivido vinham a cultivar apenas os terrenos mais férteis e, por conseguinte, a produtividade aumentava.(...), os salários eram mais elevados(...).Havia mais casas livres, cereais em abundância e as manadas e os rebanhos estavam de novo a crescer.(...).A riqueza gerava riqueza e os bons tempos nas zonas rurais trouxeram mais negócio à cidade, e, assim, os artífices e os comerciantes de Kingsbridge começavam a regressar à opulência de outrora."

21 maio 2009

Vergonha


O texto que se transcreve é da autoria de Rui Peres Jorge e foi hoje publicado no Jornal de Negócios.
A dimensão da falta de dignidade com que actua a elite que ocupa os lugares de decisão nos vários níveis do aparelho de estado e a prática de saque e delapidação dos bens públicos que sistematicamente executa em benefício próprio, terá consequências dramáticas para a maioria dos cidadãos deste país. Claro que esta gente, que sairá incólume de tudo isto, continuará a ser ouvida nos telejornais e dará mesmo inúmeras opiniões sobre a "crise" e a forma de sair dela ("são necessários sacrifícios", "redução de salários", "cortes nas despesas", dirão).
Vai ser preciso muito tempo, várias gerações, até que este país se torne um espaço habitável e limpo, até que haja uma consciência cívica e uma opinião pública fortes, que isolem e impeçam a sociedade de dar origem a este tipo de biltres.
Não o veremos nós.
Saúde-se entretanto o profissionalismo e a dignidade dos jornalistas que nos abanam as consciências.
Parabéns Rui Peres Jorge.

Vítor Constâncio e a sua equipa de administradores vão ser aumentados em cerca de 5% este ano, um aumento que também vai ser aplicado aos administradores da Anacom, liderada por Amado da Silva, e da Autoridade da Concorrência, liderada por Manuel Sebastião, ex-administrador do Banco de Portugal.
O aumento é justificado pelo facto de em 2008 estes reguladores não terem recebido qualquer aumento o que, em vez de uma opção, foi, afinal um lapso. Por essa razão estes conselhos de administração serão aumentados em cerca de 5% este ano, o que equivale aos aumentos da função pública de 2,1% de 2008 e de 2,9% em 2009.
A notícia é avançado hoje pelo jornal “i”, que afirma que o “lapso do Banco de Portugal deixou os reguladores sem aumentos”, isto porque os aumentos de entidades como a Anacom e a Autoridade da Concorrência dependem das actualizações salariais definidas para o Banco de Portugal.
Segundo o mesmo jornal, fonte oficial do banco central garante que o lapso de 2008 será agora corrigido, frisando que ao aumento de 5% este ano não se juntarão retroactivos pelo aumento de 2,1% de que não beneficiaram em 2008. A decisão de níveis salariais e aumentos no banco central é decidida pelo ministério das Finanças.
No ano passado, após a publicação pelo Jornal de Negócios de uma comparação de salários entre governadores de bancos centrais do mundo, Vítor Constâncio, em declarações à Lusa, afirmou que “já tenho dito que deveria haver uma redução [no salário do governador do Banco de Portugal]”, acrescentado: esse salário não depende de mim”.
O salário de Vítor Constâncio – e por arrasto de outros reguladores – é decidido por Teixeira dos Santos que, definiu para 2007, uma remuneração anual de 250 mil euros, cerca de 18 vezes o rendimento nacional per capita, o que, por esta medida, faz de Constâncio um dos banqueiros centrais mais bem pagos do mundo.
“Aumento de 2,9% na função pública não teria justificação neste momento”, afirmou Constâncio em Abril
Em Abril, após o Banco de Portugal ter revisto a previsão de crescimento da economia portuguesa para uma contracção de 3,7% este ano – confirmando a pior recessão de três décadas em Portugal – e de ter previsto uma deflação de 0,2% em 2009, Vítor Constâncio afirmou que "é evidente [que a actualização de 2,9 por cento para a função pública] não teria justificação perante uma previsão de inflação de -0,2 por cento".
A Comissão Europeia prevê que as remunerações médias reais por empregado, quando deflacionadas pela inflação, recuem 0,4% este ano, reflectindo o forte aumento do desemprego e o efeito de mecanismos de ajustamento salariais negociados entre empresas e trabalhadores, como por exemplo, o lay-off, onde se prevê uma suspensão temporária da produção, com consequente redução de horas de trabalho.

Aung San Suu Kyi


Aung San Suu Kyi, lider pró-democracia e vencedora do Prémio Nobel da Paz, acabou de receber novas acusações, dias antes do fim do cumprimento de 13 anos de prisão.
Mesmo correndo o risco de sofrer uma retaliação dos militares, os activistas da Birmânia estão a organizar um movimento para a sua libertação.

Que quiser assinar esta petição, pode fazê-lo em:

http:www.avaaz.org/po/free

Ascenção

Antigamente, em maio, eu virava anjo.
A mãe me punha o vestido, as asas,
me encalcava a coroa na cabeça e encomendava:
"canta alto, espevita as palavras bem".
Eu levantava voo rua acima.
Adélia Prado, in Poesia Reunida

20 maio 2009

Cidadania

Educação para a delinquência

A notícia veio em tudo o que é jornal e TV: uma professora da Escola EB 2,3 Sá Couto, em Espinho - que dezenas de alunos seus consideram "a mais espectacular da escola" e uma "segunda mãe" - foi suspensa "após afirmações de cariz sexual". A suspensão foi ditada pelo Conselho Directivo depois de duas alunas terem gravado afirmações suas numa aula, alunas que, segundo vários colegas, "fizeram aquilo de propósito e provocaram a conversa toda porque sabiam que estavam a gravar".
A Associação de Pais e a DREN acharam muito bem. Ninguém, nem pais, nem Conselho Directivo, nem DREN "acharam mal" o facto de duas jovens de 12 anos terem cometido um crime (se calhar encomendado) para alcançarem os seus fins. O Código Penal pune com prisão até 1 ano "quem, sem consentimento, gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas", punição agravada de um terço "quando o facto for praticado para causar prejuízo a outra pessoa". Educadas desde jovens para a bufaria e a delinquência e sabendo que o crime compensa, que género de cidadãos vão ser aquelas miúdas?

Manuel António Pina, aqui
........................................
A capacidade de nos levar a ver para lá daquilo querem que vejamos.
M.A. Pina na sua trincheira de combate pela cidadania.

19 maio 2009

Chicken à La Carte

Mão amiga fez-nos ver este documento que aqui partilhamos.
Uma Curta Metragem apresentada no Festival de Cinema de Berlim em 2006. Nela,
Ferdinand Dimadura, compositor, escritor e cineasta das Filipinas, faz uma denúncia da fome e da miséria extrema na época da globalização.
5 minutos que são como um murro no estômago ( no nosso, que está cheio...).

18 maio 2009

Opiniões



Ai, Carla, assim já entendo...

Primeira mão


Ontem fui beber um copo com um amigo que já não via há algum tempo. Não era minha intenção falar-lhe dos meus problemas pessoais, mas conversa puxa conversa e, ao fim da terceira taça de branco, não me contive e pu-lo ao corrente do imbróglio em que andava metido.
Como se já não bastassem os problemas no trabalho e em casa, tinha ainda uns tipos atrás de mim, por causa de uns dinheiros que ficara a dever. Há dois dias quase tinha sido atropelado por uma carrinha cinzenta e não me surpreenderia se, de repente, levasse um tiro.
"Não te preocupes tanto", reconfortou-me o meu amigo. "Tens é de olhar para as coisas com um espírito positivo. Só os paranóicos vêem indícios de ameaça em tudo o que mexe".
Tentei explicar-lhe que os meus problemas eram reais. O empréstimo, a dívida. Aquilo era gente que não brincava. Mas ele sorriu e continuou:
"Nós temos de fazer exactamente o contrário. Não ceder ao medo. Ser positivo. Se um pessimista vir um copo com água até metade, diz que ele está meio vazio. Nós temos de ver é que ele está meio cheio, percebes?".
Percebia. Não sou estúpido. Mas - e se tivermos problemas a sério? Se os nossos problemas forem tão reais como o risco de uma catástrofe nuclear?
Ele abriu ainda mais o sorriso. Era meu amigo, mas já me começava a irritar. Pôs-me a mão no ombro, num gesto mais paternal que fraternal.
"Mesmo que estejamos verdadeiramente ameaçados, cercados de inimigos por todos os lados, temos de ignorar essa ameaça. Se a ignorarmos, por mais real que ela seja, desvanece-se nesse instante".
Mostrei-me incrédulo:
"Assim, clic?" Ele era o Karma em pessoa
"Assim, clic. Deixa completamente de existir. Tal é o poder da mente".
Que é que eu podia dizer perante uma tal filosofia? Fiz sinal a pedir outro copo. E mais cheio que o outro, que tinha vindo meio vazio. E ele na dele, embalado: "Sei o que estás a pensar e não, não é o mesmo que a avestruz, a meter a cabeça na areia para ignorar o perigo. É diferente. Nós não ignoramos o perigo. Nós eliminamos o perigo. Percebes?"
Sim percebia. E por acaso, não sei se da conversa, se do vinho, fiquei mais calmo. E percebi ainda mais quando, à saída do bar, a bala acertou na cabeça dele, e não na minha. Tive de dar a mão à palmatória, a fómula do meu amigo funcionava. Bastava não pensar nos problemas para eles nos passarem ao lado.

Rui Zink in A Realidade Agora a Cores, (Publicações Europa América)

17 maio 2009

Menina da Ria


Caetano Veloso cumpriu a promessa e escreveu a canção sobre Aveiro e a sua Ria.

Numa entrevista divulgada pela editora Universal, Caetano Veloso recordou que "Menina da Ria" resulta de uma promessa feita ao público que esteve num concerto seu em Aveiro em 2008. A Ria "é uma característica da cidade. É muito bonita. Todo o mundo fala 'a Ria'. Eu comentei na hora do show, só de violão: eu vou fazer uma música chamada 'Menina da ria'. Eles riram muito, aplaudiram, fiquei com esse compromisso, cheguei no Brasil e fiz", explicou Caetano Veloso.
A letra faz referência aos barcos da Ria, aos ovos-moles, aos prédios art-nouveau.
"Uma moça de lá do outro lado da poça/Numa aparição transatlântica/Me encheu de elegante alegria/(Ai Portugal, ovos moles, Aveiro)/E uma preta (parece que eu estou na Bahia)/Tão linda quanto ela e dizia/No seu português lusitano:/'Pode o Caetano tirar uma foto?'", canta o músico baiano.
(foto de Luis Darocha)

Viver

Aos 10 anos todos nos dizem que somos espertos, mas que nos faltam ideias próprias. Aos 20 anos dizem que somos muito espertos, mas que não venhamos com ideias. Aos 30 anos pensamos que ninguém mais tem ideias. Aos 40 achamos que as ideias dos outros são todas nossas. Aos 50 pensamos com suficiente sabedoria para já não ter ideias. Aos 60 ainda temos ideias, mas esquecemos do que estavamos a pensar. Aos 70 só pensar já nos faz dormir. Aos 80 só pensamos quando dormimos.
Fala de Bartolomeu Sozinho, Venenos de Deus, Remédios do Diabo, Mia Couto. Ed.Caminho

A vida e o seu fascínio

341 Porque não há-de surpreender-te, como se pela primeira vez, o sol que te entra pela janela? Dói-te à mesma uma dor que te doeu, como se te não tivesse ainda doído, se voltar a doer. E que é que te há de encantamento no banal de uma janela iluminada? Não o sabes, porque não é do que se pode saber. Há a transfiguração do esplendor, a energia da própria luz, a levitação do que ela ilumina, a transmutação da matéria para o mistério do seu interior, a plausibilidade da sua transcendência. O fulgor de nós próprios na sua contemplação, a nossa divinização. A luz. De que mais precisas para ser verdade que existes? ou que aguentas o insuportável? O próprio moribundo deve sorrir quando a vê. Ou chorar, porque é de mais...
Virgílio Ferreira, in Pensar, (Bertrand 1992)
Foto aqui

16 maio 2009

Para se sentir...

arranca ao maço de linho o fio enxuto,
nascido assim, ali, na roca, o fio,
e que gire no fuso para dentro do que fica pronto,
e vá até ao fim o trabalho que brilha,
o toque transitivo,
que a luz se mova nas pupilas,
e se ficares cego é para veres tudo unido,
escuta então como te chamam pelo nome
daquilo que te cerca,
mas não acumules nada,
amaina o fio bravio quando irrompe
e,
pálpebras cerradas,
sente com estremece tudo, o centrípeto e o centrífugo,
e morre de ti mesmo
Herberto Helder, in A faca não corta o fogo (Assírio & Alvim 2008)

15 maio 2009

"Ambrósio, hoje apetece-me algo..."

" A Natureza nunca concentrou tanto alimento e bem estar
num tão pequeno espaço, como quando criou o grão de cacau
Alexander von Humboldt (1769-1859)"
163 mulheres residentes no norte de Itália participaram, durante alguns meses, num estudo sobre as relações entre o chocolate a sua saúde sexual.
Todas foram entrevistadas sobre os seus hábitos recreativos: café, doces e álcool; preencheram os 19 itens do IFSF (Índice de Função Sexual Feminina); a EDSF (Escala de Disfunção Sexual Feminina) e foram também classificadas na EVED (Escala de Vigilância Epidemiológica da Depressão).
O projecto, realizado por um Instituto Universitário de Milão, revelou que as mulheres que consomem chocolate têm níveis mais altos de IFSF do que as que não o fazem.
Concluíram, pois, ser aliciante a possibilidade de que o chocolate tenha um impacto positivo na FSF, quer no plano biológico, quer no plano psicológico.
Estudos mais pormenorizados são aguardados.
(The Journal of Sexual Medicine)
(... e agora até já temos justificação científica para oferecermos bombons)

Prémio Nobel na Prisão

Aung San Sun Kyi, vítima de novas acusações por parte do governo de Mianmar (antiga Birmânia) , foi presa, por ter sido visitada por um jornalista americano.
Foi levada de sua casa em Rangum para a prisão, onde estão detidos outros dissidentes políticos.
O estado de saúde de Aung Kyi continua preocupante.

14 maio 2009

Ev'ry Time We Say Goodbye


Canção de Cole Porter, criada em 1944. Já foi cantada por Ella Fitzgerald,John Coltrane e Nina Simone. Esta é a magnífica versão de Mike Hucknall (Simply Red), aqui cantada na celebração dos 40 anos do desastre aéreo de Munique (1958), quando a queda de um avião comercial em que morreram 23 dos 44 passageiros, entre eles a equipa de futebol do Manchester United.

Língua, liberdade e servidão

Cada língua tem as suas próprias estratégias de negação e de imaginação. Estas permitem-lhe dizer não às limitações físicas e materiais que constrangem a nossa existência... Graça à(s) língua(s), podemos desafiar ou atenuar o monocromatismo da mortalidade predestinada. Cada uma destas negações tem a sua própria transcendência obstinada. É este escândalo de uma inextinguível "esperança contra a esperança" que nos permite suportar, recuperar de tudo o que perpetuamente se mantém de mortífero e absurdo na nossa condição material e histórica. É a profusão aparentemente perdulária das línguas que nos permite formularmos alternativas à realidade, dizer a liberdade no interior da servidão, programar a plenitude no interior da destruição. (...)
Daí que haja uma perda verdadeiramente irreparável, uma diminuição dos possíveis humanos, quando uma língua morre. Com a sua morte, não é só uma memória de gerações única e vital - os tempos do passado ou os seus equivalentes -, não é só uma paisagem, realista ou mítica, ou um calendário que se apaga, mas também as suas configurações de um futuro concebível. (...)
A extinção das línguas que hoje testemunhamos - todos os anos dúzias delas se calam sem remédio - é precisamente homóloga da devastação da fauna e da flora, mas em termos ainda mais definitivos. (...) O resultado é um empobrecimento drástico na ecologia do psiquismo humano. A verdadeira catástrofe de Babel não é a divisão das línguas: é a redução do discurso humano a meia dúzia de línguas "multinacionais" planetárias.
George Steiner, in Os livros que não escrevi, Gradiva 2008

13 maio 2009

Fibromialgia


-Está?
É do Instituto Português de Reumatologia?
(música)
_Sim, faz favor
-Bom dia, queria marcar uma consulta...
-Neste momento, não marcamos consultas, estamos muito congestionados.
Desligo.
-Está?
-É dos Hospitais da Universidade de Coimbra?
-Sim, faz favor.
-Desejava saber como marcar uma consulta de reumatologia...
-Desculpe, mas a lista de espera é de três anos.
-Está?
É da associação de apoio aos doentes de fibromialgia?
-O numero que marcou não está disponível
Vou à net.
Associações, conversa, jantares de apoio.
Médicos, não consta.
Apenas e insistente, um aviso:
É uma doença muito mal compreendida.
Prepare-se, vão dizer-lhe que são manias, que é a doença da moda.
Prepare-se!

O que poderíamos ter sido?

Sir Ken Robinson, especialista em criatividade, desafia a forma como temos vindo a educar as nossas crianças. Os seus trabalhos são mundialmente conhecidos e esta temática tem sido objecto de reflexão nos vários livros que tem publicado.
Quanto aos vídeos, apesar de o segundo ser mais explicativo, carece da introdução feita no primeiro, onde Robinson justifica a importância da criatividade. Bem inspirado e com humor inteligente. A tradução não é das melhores mas...
E estaremos mesmo a impedir a flor de crescer?



São estilos...( e este não é o do Leonard Cohen)

11 maio 2009

A Conferência

Sábado houve festa na nossa agência. Um dos mais conhecidos e, seguramente, o funcionário mais bem sucedido, veio fazer-nos uma visita e integrar-se numa acção de formação prevista nos novos contratos individuais de trabalho.
Tratou-se de fazer uma breve palestra onde falasse das razões do seu sucesso. Tipo, façam como eu e vejam no que dá…
Foi da maior importância a preparação desta vinda, toda a agência se mobilizou e todos acharam necessário ter um ar engravatado e bem vestido. O sector feminino teve a ida ao cabeleireiro facilitada pelas chefias.
Era preciso que a assembleia tivesse um ar selecto, fino, que se mostrasse ser um target prestável e integrado nos objectivos da lógica gestionária da empresa.
E assim foi.
Sentados e alinhados na sala ampla e bem iluminada, alcatifa espessa abafando os passos, sentia-se no ar um cheiro a perfumes caros e a laca barata.
Em minha opinião, a participação do dito cujo na formação foi um sucesso.
Achei-o enfatuado, petulante e um tanto vaidoso. Mas eficaz no que nos propôs, isso sim.
E, além disso, foi, para os colaboradores da empresa, toda uma aprendizagem de como comunicar. Tudo pensado, desde a melena caída na testa até ao tira-e-põe dos óculos, sobretudo o “tira”, nos momentos chave, quando era preciso virar-se para a plateia com o olhar baço dos míopes, fazendo um estudado trejeito com o lábio superior….
O começo foi, logo, arrasador: “a partir de agora, nada de doutor ou senhor, usem só o meu nome, chamem-me simplesmente… Aníbal" disse, enquanto arregaçava as mangas da camisa.
Dali para a frente foi sempre a “subir”.
As mulheres ficam a olhá-lo extáticas, embriagadas das propostas que tem e que são, na sua opinião, a base de todo o sucesso. Os homens, querem todos ser como ele e as chefias sentem-se recompensadas e compreendidas. Afinal, se todos os funcionários o copiassem, outro retorno haveria nos balcões… sobretudo em época de crise.
Não ficou para o almoço. Ainda tentei um contacto, quando à saída me estendeu a mão com ar ausente e disse-lhe com o tom que tinha absorvido na conferência:
- Sabe,Aníbal, descobri hoje, consigo, que este é também o meu “cup of tea”…
Não respondeu, suponho que tinha de estar em breve numa outra agência.
O tempo para os excelentes é sempre curto.

Quando a noite chega

Em Portugal (nos Coliseus) esta e na próxima semana!

14 Lisboa; 18 no Porto.

Na sombra e no silêncio

A Cinemateca Portuguesa (Rua Barata Salgueiro,39-Lisboa) faz até 31 de Maio uma retrospectiva de Robert Mulligan.
Destaco aqui, aquele que é um dos "filmes da minha vida".

Pela manhã



Com uma sweet and tender interpretação do Dave Brubeck Quartet. Tenham um bom dia!

10 maio 2009

Significados

"As concepções punitivas da doença têm uma longa história e são particularmente activas no caso do cancro. Trava-se um "combate" ou uma "cruzada" contra o cancro; o cancro é uma doença "assassina"; as pessoas que sofrem de cancro são "vítimas" de cancro. Ostensivamente, aponta-se a doença como um culpado. Mas é também o doente que se torna culpado. As bem aceites teorias psicológicas da doença atribuem ao infortunado doente a responsabilidade final, tanto pela sua doença como pela sua cura. E as convenções que querem que se trate o cancro não como uma mera doença, mas como um inimigo diabólico, tornam-no não apenas uma doença letal, mas também vergonhosa.
(...) Nada é mais repressivo do que atribuir um significado a uma doença - sendo tal significado invariavelmente moralista. Qualquer doença importante cujas causas sejam obscuras e se mostre rebelde a qualquer tratamento, tende a tornar-se objecto de um significado que a envolve. A principio, os aspectos que inspiram maior terror (corrupção, podridão, poluição, fraqueza) são identificados com a doença. (...). Depois, em nome da doença (ou seja, usando-a como metáfora) esse horror transmite-se a outras coisas. A doença passa a adjectivo.
Em francês, uma fachada degradada é ainda hoje qualificada de "lépreuse". As epidemias são uma figura comum para designar a desordem social. Em inglês, "pestilence" (peste bubónica) deu origem a "pestilent", que em sentido figurado, quer dizer (...) "prejudicial à religião, à moral, ou à paz pública"; e "pestilential" tem o significado de " moralmento funesto ou pernicioso".
Os sentimentos em relação ao mal projectam-se na doença. E a doença (enriquecida com tal significado) projecta-se no mundo."

Susan Sontag, in A Doença como Metáfora... Queztal Editores,1998
Pintura: Christina's World, Andrew Wyeth

09 maio 2009

O Mistério da Princesa


Joana, Princesa de Portugal, filha de D.AfonsoV e de D.Isabel, nasceu em Lisboa a 6 de fevereiro de 1452 e morreu em Aveiro a 12 de Maio de 1490.

Perdeu a mãe com apenas quatro anos.
Como seu pai estava ausente na Tomada de Arzila e Tânger, foi regente do Reino, com uma corte organizada e todos os poderes reais conferidos.
Em 1471, voltando D. Afonso e D. João, seu filho, das referidas batalhas, foi destituída de Regente e retirada da Corte. Para isso, poderá ter contribuído o poder que então já detinha e que não agradou ao monarca, bem como o episódio passado com D. Duarte de Sousa, fidalgo que frequentaria os aposentos da princesa e que, numa fuga precipitada do palácio, terá perdido um sapato identificador. Seria condenado à morte e degolado.
Foi então D. Joana internada no Convento de Odivelas e, seguidamente, no Convento de Aveiro.
Sendo bastante religiosa, lutaria toda a vida por receber o hábito de freira, nunca consentido, por lhe terem sido destinados vários casamentos régios, que sempre recusou.
O povo de Aveiro dignificou-a como santa, por actos de caridade e alegados milagres.
Foi senhora da vila de Aveiro e seus limites, de todas as rendas, direitos reais, dízimos do pescado com a sisa e imposição do sal.
D. Jorge de Lencastre, filho bastardo de seu irmão D.João II, foi por ela educado como filho no Convento.
Canonizada em 1693 pelo Papa Inocêncio XII, tornar-se-ía padroeira de Aveiro e venerada pelas suas gentes.
O dia 12 de Maio, data da sua morte, em que terão caído flores do céu, é o dia da cidade.
Para mim será sempre uma princesa misteriosa.

Quando a noite chega

08 maio 2009

Quando a noite chega

(Rufus dá largas à sua admiração por Judy Garland. Aqui, acompanhado ao piano pela mãe. Para mim, melhor que o original)

Norte / Sul

A observação atenta do caso da "possível pandemia"de gripe e todo o envolvimento em torno dos vários interesses a ela ligados, levaram à re-leitura de um interessante livro do historiador David S. Landes. Aqui se deixa um pequeno trecho sobre os interesses que, muitas vezes, presidem ao desenvolvimento dos tratamentos de algumas doenças, essas sim, endémicas
"... Por enquanto a prevenção é cara e o tratamento acarreta, com frequência, um regime prolongado de medicação que as instituições locais não podem garantir e que os pacientes têm dificuldade em seguir. Em 1990, a maioria das pessoas com doenças tropicais vivia em países com um rendimento médio inferior a 400 dólares. Os seus governos gastavam com a saúde menos de 4 dólares por pessoa. Não é de surpreender, portanto, que as companhias farmacêuticas, que afirmam custar cerca de 100 milhões de dólares desenvolver um remédio ou vacina e proceder à sua comercialização, se mostrem relutantes em servir este tipo de clientela. Mesmo em países ricos, o custo da medicaçãopode exceder os recursos dos pacientes e a tolerância do seguro de saúde. As mais recentes terapias para SIDA, por exemplo, custam entre 10.000 a 15.000 dólares por ano durante a vida inteira- uma fortuna impensável para as vítimas do terceiro mundo..."
David S. Landes in A Riqueza e a Pobreza das Nações (Gradiva 2005)

07 maio 2009

Aventura e Heterodoxia



Uma narrativa encantatória, de um autor cujo percurso merece ser conhecido (mais aqui)

Raras vezes retirei a luva da minha mão esquerda, que a esconde, mesmo quando durmo. Poucos a viram, marquês de Villanueva de Barcarrota, embora muitos tenham sentido os seus efeitos. Quando a virdes, no final do meu relato, talvez vos assusteis, pelo aspecto. Tem cinco dedos, presumo que vinte e sete ossos, e tantos carpos, metacarpos e falanges como os que possuo na minha mão direita e como os que vós tendes em cada uma de vossas mãos. Porém, em tudo o resto encontrareis dissemelhanças.

A Mão Esquerda de Deus, Pedro Almeida Vieira, Ed. Dom Quixote, 2009

Polémica


Está lançada a polémica:
As associações e movimentos cívicos têm feito acusações sobre os circos que usam animais.
Dizem eles, e digo eu, já agora, que os animais selvagens não deveriam ser sujeitos à humilhação de reproduzir mimeticamente os comportamentos humanos.
Que não devem ser retirados do seu habitat natural, nem domados, sabe-se lá como, a fim de fazerem figuras tristes para gáudio da pequenada.
Claro está, o inefável Miguel Sousa Tavares tinha que vir defender essa tortura, ele que é caçador, pois claro!
Pois, se nós os comemos, tudo será permitido?
O mundo terá que mudar, também nesse aspecto. O comportamento em relação aos animais diz muito acerca de um ser humano.
Já agora, vamos pensar nisto?

Azul Mediterrâneo

Carlos Martins saxofone tenor, Alexandre Frazão bateria, André Fernandes guitarra, Nelson Cascais, baixo e Júlio Resende no piano.

As fotografias são de Lisboa e Barcelona, do fotógrafo alemão Guenter Eh. Pode ver-se o seu trabalho em http://www.pbase.com/guenter123/street

New Deal

Na sequência da crise de 1929 que arruinou a economia americana e, consequentemente a mundial, Franklin Roosevelt, eleito Presidente dos Estados Unidos em 1932,tomou uma série de medidas, baseado nas propostas do economista John Keynes.
Para ler e reflectir:
"Empréstimos ilimitados aos bancos para que pudessem disponibilizar uma linha de crédito controlado àqueles que tivessem em dificuldades e pudessem voltar às actividades produtivas; pagamento aos agricultores de uma indemnização que cobrisse os prejuízos com a queima do excesso de produção. Tinha por finalidade equilibrar a oferta de produtos fazendo assim os preços subirem; auxílio aos Estados, concedendo-lhes subsídios para que pudessem aumentar
os salários dos empregados e criar um seguro-desemprego. Esta medida visava fortalecer o mercado consumidor;controle da jornada de trabalho, fixando-se um salário mínimo; proibição do emprego de crianças e das horas-extras; legalização dos sindicatos, para que pudessem negociar contratos colectivos de trabalho; promoção de um amplo programa de obras públicas (estradas, portos, barragens), para dar emprego à massa de desempregados; ampliação e estatização do sistema de previdência social, ficando o governo responsável pelo amparo ao trabalhador em caso de invalidez, velhice e desemprego; controle severo sobre os preços dos produtos; cobrança de taxas sobre bebidas e sobre outros produtos supérfluos.
"

06 maio 2009

Era uma vez...

*


imagem do Google

A história começa onde começa a vida a escrevê-la.
Sê bem-vinda, Catarina!

* Numa uma ocasião tão especial, a interpretação fabulosa de Nigel Kennedy para a Primavera, de Vivaldi.

Nasceu

Catarina


Chegaste na hora escolhida
pelas estrelas.
Trazes nos olhos
a luz, o brilho,
o sonho
e o mar
nascidos no coração de
outras, nossas
mães.

Nascer


Quando Nasci
Quando eu nasci,
ficou tudo como estava,
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais…
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém…
P’ra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe… (José Régio)

05 maio 2009

O começo

"...Se não existe uma árvore suficientemente fiável para a origem de todas as línguas, também não é seguro que tenha havido uma só origem para a linguagem. A maior parte dos linguistas considera este último problema insolúvel. É um pouco como o problema de saber se houve uma só origem para a vida na Terra; muitos biólogos pensam que sim, uma vez que existe um único tipo de aminoácidos sintetizados pelas células vivas, quando poderiam existir dois, de estrutura química oposta. De qualquer modo, Greenberg chamou a atenção para o facto de existir pelo menos uma etimologia comum a todas as famílias linguísticas: trata-se da raíz tik, que pode indicar quer um dedo, quer o número um (uma variação semântica que não precisa ser explicada, se pensarmos o modo como indicamos o número um com um gesto); nalgumas línguas encontram-se outras mudanças semânticas que ainda parecem aceitáveis, por exemplo mão ou até braço. Em França tem-se doigt, que vem da raíz latina digit, em italiano dito, em português dedo.
Com base neste exemplo, dois linguistas americanos (Bengston e Ruhlen) propuseram outras raízes universais ou quase. Mas será, indubitavelmente, necessário muito tempo para que estas recentíssimas investigações tenham o aval de outros linguistas. Infelizmente, o número de palavras com que se pode contar para estas investigações é limitado. Geralmente, trata-se de palavras que indicam partes de corpo, pronomes pessoais, alguns advérbios, os números um, dois, três e poucas outras. Não é surpreendente que sejam os nomes altamente conservados na evolução linguística, o que se aprende primeiro (a mãe ensina ao filho: olhos, nariz, boca, etc)..."
Luigi Luca Cavalli-Sforza in Genes, Povos e Línguas

Maravilha

Uma peça maravilhosa ao serviço de uma causa nobre. Deliciemo-nos, com emoção...

04 maio 2009

Das (In)certezas

O Pinto e o Cabé eram os mestres. Os outros, quatro ou cinco, não mais de seis, ouvíamos deslumbrados. Afinal, tinham mais dois anos do que a maioria, e nós aos 12, considerávamos já a experiência dos mais velhos.
Por isso os escutávamos atentamente, olhos semi-cerrados, deitados na sombra, em intermináveis Férias Grandes, enquanto mastigávamos a palhinha com que antes tínhamos feito sair os grilos da toca - “mija na palha” - orientava o Pinto.
Uma das noções mais marcantes do tempo, como todas apenas assente nas sábias garantias daqueles dois, era de que poderíamos adivinhar facilmente a virgindade de uma mulher através da sua forma de andar…
Nunca falha”, instituía o Cabé, superior, desfazendo dúvidas e hesitações.
Se andam com os pés pra fora, já experimentaram, se andam com eles direitos … estão à espera!” e riam os dois.
Excluímos de imediato do programa de observação e confirmação, irmãs, primas mais chegadas e, naturalmente, mães e tias, avós e a irmã do sargento Morais porque era coxa e isso fazia-nos impressão.
Toda a fase posterior feita de análise atenta e minuciosa foi, para nós, extremamente reveladora das potencialidades teóricas dos nossos companheiros.
Nunca foi possível àquele grupo comprovar cientificamente os apontamentos de observação que iam anotando num caderno de vinte e cinco linhas.
Depois, o tempo, a vida e as suas voltas trouxeram a distância, a diferença e o esquecimento.
Mas aquele verão de 64 existiu para todos.