"Nunca se tinha demorado nos prazeres da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vividas; o vermelhão de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, de que tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de rasgar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza o mel mitigava, podiam abarcar por inteiro a sua alma.
Conhecia o terror mas também a cólera e a coragem, e uma vez foi o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curioso, casual, sem outra lei que a fruição e a indiferença imediata, percorreu a terra vária e olhou, numa e noutra margem do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou no sopé de uma montanha de cume incerto, em que bem podia haver sátiros, tinha escutado complicadas histórias, que recebeu como recebia a realidade, sem imaginar se eram verdadeiras ou falsas.
Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma teimosa nebelina confundiu-lhe as linhas da mão, a noite despovoou-se de estrelas, a terra era insegura sob os seus pés. Tudo se afastava e confundia. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o pudor estóico não tinha sido inventado e Heitor podia fugir sem deslustre. Já não verei (percebeu) nem o céu cheio de pavor mitológico, nem esta cara que os anos transformarão. Dias e noites passaram sobre esse desespero da sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem assombro) as indistintas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que tudo isso já lhe tinha acontecido e que o havia encarado com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Então desceu à sua memória, que lhe pareceu interminável, e conseguiu tirar daquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moeda sob a chuva, talvez porque nunca a tivesse olhado, salvo, quem sabe, num sonho..."
Jorge Luis Borges, in O Fazedor, (Difel 2002)
Fotografia G. Crewdson
2 comentários:
Este blog, está cada vez melhor, é o que é :)
:):):)...um babete para esta mesa! Obrigado Marta.
Enviar um comentário