10 maio 2009

Significados

"As concepções punitivas da doença têm uma longa história e são particularmente activas no caso do cancro. Trava-se um "combate" ou uma "cruzada" contra o cancro; o cancro é uma doença "assassina"; as pessoas que sofrem de cancro são "vítimas" de cancro. Ostensivamente, aponta-se a doença como um culpado. Mas é também o doente que se torna culpado. As bem aceites teorias psicológicas da doença atribuem ao infortunado doente a responsabilidade final, tanto pela sua doença como pela sua cura. E as convenções que querem que se trate o cancro não como uma mera doença, mas como um inimigo diabólico, tornam-no não apenas uma doença letal, mas também vergonhosa.
(...) Nada é mais repressivo do que atribuir um significado a uma doença - sendo tal significado invariavelmente moralista. Qualquer doença importante cujas causas sejam obscuras e se mostre rebelde a qualquer tratamento, tende a tornar-se objecto de um significado que a envolve. A principio, os aspectos que inspiram maior terror (corrupção, podridão, poluição, fraqueza) são identificados com a doença. (...). Depois, em nome da doença (ou seja, usando-a como metáfora) esse horror transmite-se a outras coisas. A doença passa a adjectivo.
Em francês, uma fachada degradada é ainda hoje qualificada de "lépreuse". As epidemias são uma figura comum para designar a desordem social. Em inglês, "pestilence" (peste bubónica) deu origem a "pestilent", que em sentido figurado, quer dizer (...) "prejudicial à religião, à moral, ou à paz pública"; e "pestilential" tem o significado de " moralmento funesto ou pernicioso".
Os sentimentos em relação ao mal projectam-se na doença. E a doença (enriquecida com tal significado) projecta-se no mundo."

Susan Sontag, in A Doença como Metáfora... Queztal Editores,1998
Pintura: Christina's World, Andrew Wyeth

6 comentários:

clara disse...

Aqui está um assunto limite, o limiar de todas as dores.
Ninguém vai ter coragem de comentar...

Marta disse...

é de facto difícil comentar! principalmente, por por tocar com o dedo na ferida de quem passou, directa ou indirectamente, por uma experiência assim. é muito difícil perder alguém. perder alguém para um cancro é traumático! e se esse alguém tem apenas 22 anos e muita vontade de continuar por cá, a dor pode não ter fim...«projecta-se no mundo». é TÃO verdade.

Paulo disse...

...e depois a hipocrisia é tal (de todos) que, perante alguém numa situação limite destas, quase a obrigamos a ser "positiva", a encarar "de frente" a morte, a não se revoltar...enfim, creio que o que não queremos, definitivamente, é (re)vermo-nos nela.

Sonia Potrich disse...

Paulo... primeiramente parabéns pelo tema abordado e pela bela fotografia!
Esse assunto é intenso e triste quando transferimos para nossa família, para nossos amigos, enfim, para pessoas que temos algum laço afetivo. Principalmente quando lembramos que perdemos alguém por essa doença devastadora que não pede licença, apenas chega e se instala dento do corpo humano e vai avançando a cada dia um pedacinho! Foi desta forma que perdi três dos meus quatro avós!

Abraços
Sonia

Anónimo disse...

Uma imagem fabulosa, para um tema que me é muito querido, por muitas e variadas razões
Gostei...
CM

Paulo disse...

Creio que é um tema que nos confronta (alguns diariamente) connosco próprios e os nossos limites. Exigente, pedindo constantemente doses equilibradas de atenção, revolta, empenhamento e humanidade. Sem nunca cairmos na banalização e no desprezopela dor alheia.
Clara, Marta e Sónia, obrigado pela presença. CM, muito obrigado